23.12.21

Carlos Drummond de Andrade: "A vida passada a limpo"

 



A vida passada a limpo



Ó esplêndida lua, debruçada

sobre Joaquim Nabuco, 81.

Tu não banhas apenas a fachada

e o quarto de dormir, prenda comum.


Baixas a um vago em mim, onde nenhum

halo humano ou divino fez pousada,

e me penetras, lâmina de Ogum,

e sou uma lagoa iluminada.


Tudo branco, no tempo. Que limpeza

nos resíduos e vozes e na cor

que era sinistra, e agora, flor surpresa,


já não destila mágoa nem furor:

fruto de aceitação da natureza,

essa alvura de morte lembra amor.


 



ANDRADE, Carlos Drummond de. “A. vida passada a limpo”. In:_____ “A vida passada a limpo”. In:_____, Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

19.12.21

Manuel Bandeira: "Tema e voltas"

 



Tema e voltas




Mas para quê

Tanto sofrimento

Se nos céus há o lento

Deslizar da noite?


Mas para quê

tanto sofrimento

Se lá fora o vento

É um canto na noite?



Mas para quê

tanto sofrimento

Se agora, ao relento,

Cheira a flor da noite?


Mas para quê

tanto sofrimento

Se o meu pensamento

É livre na noite?





BANDEIRA, Manuel. “Tema e voltas”. In:_____ “Belo belo”. In:_____ Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967.

15.12.21

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro (heterônimo): "O luar através dos altos ramos"




O luar através dos altos ramos,

Dizem os poetas todos que ele é mais

Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,

O que o luar através dos altos ramos

É, além de ser

O luar através dos altos ramos,

É não ser mais

Que o luar através dos altos ramos.




PESSOA, Fernando / CAEIRO, Alberto (heterônimo). “O luar através dos altos ramos”. In:_____. “O guardador de rebanhos”. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (0rgs.). Poemas portugueses. Antologia da poesia portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI. Porto: Porto Editora, 2009.

11.12.21

Rainer Maria Rilke: "Wir genen um mit Blume, Weinblatt, Frucht" / "Ligamo-nos à flor, ao pâmpano e à fruta": trad. por José Paulo Paes

 


Ligamo-nos à flor, ao pâmpano e à fruta


Ligamo-nos à flor, ao pâmpano e à fruta.

Não falam só a fala das quatro estações.

Do escuro surdem vívidas irisações,

onde o brilho da inveja talvez repercuta


dos mortos que refazem a força da terra.

Que sabemos de sua parte em cada messe?

Há muito, livre, o cerne deles transparece

no próprio barro que os despojos lhes encerra.


Fazem-no de bom grado? é o que nos perguntamos.

Esses frutos intensos, trabalho de escravos,

repontam porventura para nós, seus amos?


Ou serão eles os amos, que dormem ignavos

sob as raízes e nos dão, do seu sobejo,

esse dom entre a muda força bruta e o beijo?





Wir gehen um mit Blume, Weinblatt, Frucht


Wir gehen um mit Blume, Weinblatt, Frucht.

Sie sprechen nicht die Sprache nur des Jahres.

Aus Dunkel steigt ein buntes Offenbares

und hat vielleicht den Glanz der Eifersucht


der Toten an sich, die die Erde stärken.

Was wissen wir von ihrem Teil an dem?

Es ist seit lange ihre Art, den Lehm

mit ihrem freien Marke zu durchmärken.


Nun fragt sich nur: tun sie es gern? …

Drängt diese Frucht, ein Werk von schweren Sklaven,

geballt zu uns empor, zu ihren Herrn?


Sind sie die Herrn, die bei den Wurzeln schlafen,

und gönnen uns aus ihren Uberflüssen

dies Zwischending aus stummer Kraft und Küssen?









RILKE, Rainer Maria. "Wir gehen um mit Blume, Weinblatt, Frucht" / "Ligamo-nos à flor, ao pâmpano e à fruta". In: "Os sonetos a Orfeu". In: R.M. Rilke: Poemas. Org. e trad. por José Paulo Paes. São Paulo: Companhhia das Letras, 1993.




9.12.21

Stéphane Mallarmé: "Renouveau" / "Primavera"

 



Primavera



 A primavera enferma expulsou sem clemência

 O inverno lúcido, estação de arte serena,

 E no meu ser, que ao sangue obscuro se condena,

 Num longo bocejar se espreguiça a impotência.


 Crepúsculos sem cor amornam-me a cabeça,

 Velha tumba que cinge um círculo de ferro,

 E, amargo, atrás de um sonho vago e belo eu erro

 Pelos trigais, onde se exibe a seiva espessa.


 Exausto, eu tombo enfim entre árvores e olores,

 E, cavando uma fossa para o sonho, a boca

 Mordendo a terra quente onde germinam flores,


 Espero que o meu tédio, aos poucos, vá-se embora…

 –  Porém, do alto, o Azul ri sobre a revoada louca

 Dos pássaros em flor que gorjeiam à aurora.






Renouveau


Le printemps maladif a chassé tristement

L'hiver, saison de l'art serein, l'hiver lucide,

Et, dans mon être à qui le sang morne préside

L'impuissance s'étire en un long bâillement.


Des crépuscules blancs tiédissent sous mon crâne

Qu'un cercle de fer serre ainsi qu'un vieux tombeau

Et triste, j'erre après un rêve vague et beau,

Par les champs où la sève immense se pavane


Puis je tombe énervé de parfums d'arbres, las,

Et creusant de ma face une fosse à mon rêve,

Mordant la terre chaude où poussent les lilas,


J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève...

- Cependant l'Azur rit sur la haie et l'éveil

De tant d'oiseaux en fleur gazouillant au soleil.





MALLARMÉ, Stéphane. "Renouveau" / "Primavera". In: CAMPOS, Augusto. (Org. e trad.) Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.




7.12.21

Jacques Prévert: "Le temps perdu" / "O tempo perdido". trad. por Silviano Santiago

 



O tempo perdido


Diante do portão da fábrica

o operário de repente para

o dia lindo agarrou-o pelo paletó

e como ele se volta

e olha o sol

vermelhinho redondinho

sorrindo no céu de chumbo

pisca-lhe o olho

familiarmente

Pois é camarada Sol

você não acha

que é babaquice

dar um dia destes 

para um patrão?





Le temps perdu



Devant la porte de l'usine

le travailleur soudain s'arrête

le beau temps l'a tiré par la veste

et comme il se retourne

et regarde le soleil

tout rouge tout rond

souriant dans son ciel de plomb

il cligne de l'œil

familièrement

Dis donc camarade Soleil

tu ne trouves pas

que c'est plutôt con

de donner une journée pareille

à un patron ?








PRÉVERT, Jacques. "Le temps perdu" / "O tempo perdido". In: PRÉVERT,  Jacques. Poemas.. Org. e trad. por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


3.12.21

Daniel Maia-Pinto Rodrigues: "A sorte favorece os rapazes"

 



A sorte favorece os rapazes.




RODRIGUES, Daniel Maia-Pinto. "A sorte favorece os rapazes". In: A sorte favorece os rapazes. Fundação Ciência e Desenvolvimento / Teatro do Campo Alegre, 2001.

28.11.21

Mário de Andrade: "São Paulo pela noite"

 



São Paulo pela noite.

Meu espírito alerta

Baila em festa e metrópole.


São Paulo na manhã.

Meu coração aberto

Dilui-se em corpos flácidos.


São Paulo pela noite.

O coração alçado

Se expande em luz sinfônica.


São Paulo na manhã.

O espírito cansado

Se arrasta em marchas fúnebres.


São Paulo noite e dia...


 A forma do futuro

Define as alvoradas:

Sou bom. E tudo é glória.


O crime do presente

Enoitece o arvoredo:

Sou bom. E tudo é cólera.




ANDRADE, Mário de. "São Paulo pela noite". In: "Lira paulistana". In: Poesias completas. Org. por Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizaonte, Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.


22.11.21

Ângelo de Lima: "Eu ontem vi-te..."

 



Eu ontem vi-te...


Eu ontem vi-te...

Andava a luz

Do teu olhar,

Que me seduz

A divagar

Em torno de mim.

E então pedi-te,

Não que me olhasses,

Mas que afastasses,

Um poucochinho,

Do meu caminho

Um tal fulgor

De medo, amor,

Que me cegasse,

Me deslumbrasse

Fulgor assim.







LIMA, Ângelo de. "Eu ontem vi-te...". In: Poemas de amor. Antologia de  poesia portuguesa. Org. por Inês Pedrosa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005.

19.11.21

Dênis Rubra: "fazer um poema"

 



fazer um poema



fazer um poema

não é como pintar um quadro.

é desfazer a tela

é trocar as cores

refazer as formas

que o pintor pensou.

fazer um poema ressignifica o mundo

transignifica tudo

                mas não muda nada.

tudo continua

                 como tudo sempre foi.

como no fim da canção.

como depois de comer

                  a fome vem de novo.

como depois da eleição

o mesmo povo.

sem esperanças.

apenas

fazer um poema


é fazer um poema.








RUBRA, Dênis. "fazer um poema". In:_____. é muito cedo pra pensar. Rio de Janeiro: Rubra Editora, 2017.

15.11.21

Dante Milano: "Ao tempo"

 



Ao tempo



Tempo, vais para trás ou para diante?

O passado carrega a minha vida

Para trás e eu de mim fiquei distante,


Ou existir é uma contínua ida

E eu me persigo nunca me alcançando?

A hora da despedida é a da partida


A um tempo aproximando e distanciando...

Sem saber de onde vens e aonde irás,

Andando andando andando andando andando


Tempo, vais para diante ou para trás?






MILANO, Dante. "Ao tempo". In:Os melhores poemas de Dante Milano. Org. por Ivan Junqueira. São Paulo: Global, 1998.

12.11.21

Ana Luísa Amaral: "Ligeiríssimo apontamento grafológico"

 



Ligeiríssimo apontamento grafológico


Até aquela letra me seduz:
a música menor

que lhe sustenta os pontos
quebrados pela tinta,

pela luz:

pousares certos da mão,

pensares incertos,

e carregadas pausas


Não me penses grafóloga solene
a analisar-lhe o corpo:

falha-me a precisão do cientista,
o seu sábio rigor

desaprendendo a vida

Interesse de amador

é só o meu,

e um pudor (inocente)

de me sentar defronte à coisa amada,

ao meu olhar:

 

despida –







AMARAL, Ana Luísa. "Ligeiríssimo apontamento frafológico". In:_____. Entre dois rios e outras noites. Poerto: Campo das Letras, 2007.

9.11.21

Paulo Henriques Britto: "Ao leitor"

 



Ao leitor


Se fosse o Ser quem fala no poema

eu calaria a boca, e é até possível

que o escutasse, um pouco. Sem problema;

seria, eu sei, um papo de alto nível.


Mas esta fala aqui — garanto — vem

de um mero estar, minúsculo, mortal,

prosaico e costumeiro, a voz de alguém

que embora sonhe no condicional


habita — na vigília — o indicativo,

e fala sempre, sempre, na primeira

e singular pessoa que está sendo


agora e aqui, como qualquer ser vivo

com o dom da palavra (a trapaceira),

tal qual faz quem me lê neste momento.





BRITTO, Paulo Henriques. "Ao leitor". In: Medida do silêncio. Uma antologia comemorativa. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.


6.11.21

Bruno Darcoleto Malavolta: "Quase"

 



Quase



fazer o poema diante do não poema

é tarefa de homens travestidos


invertidos

divertidos


o homem que faz o poema diante do não poema

é o não homem


travestido de homem no não poema

ele é quase


homem como

é quase


não poema

o poema






MALAVOLTA,  Bruno Darcoleto. "Quase". In:_____. Quase. São Paulo: Patuá, 2018.

3.11.21

Karin Kiwus: "An die Dichter" / "Aos poetas": trad. por Markus J. Weininger e Roswitha Friesen Blume

 



Aos poetas



O mundo adormeceu

na hora em que vocês nasceram


somente com os sonhos diurnos

vocês o despertam de novo


cru e doce e louco

por uma aventura


pelo tempo duma partida de realidade

imbatível no jogo.






An die Dichter



Die Welt ist eingeschlafen

in der Stunde eurer Geburt


allein mit den Tagträumen

erweckt ihr sie wieder


roh und süß und wild

auf ein Abenteuer


eine Partie Wirklichkeit lang

unbesiegbar im Spiel








KIWUS, Karin. "An die Dichter" / "Aos poetas". Trad. por Markus J. Weininger e Rosvitha Friesen Blume. In: BLUME, Roswitha Friesen; WEININGER, Markus J. Seis décadas de poesia alemã. Do pós-guerra ao início do século XXI. Florianópolis: Editora da UFSC.

1.11.21

Geraldo Carneiro: "ó malarmada idolatrada"

 



ó malarmada idolatrada



UM CU

DE DEUS

NÃO ABOLIRÁ

JAMAIS

O AZAR?





CARNEIRO, Geraldo. "ó malarmada idolatrada"._____  In: "almanaque de espetáculos (parapsicologia da composição II)". In: _____ Poemas reunidos de Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.


29.10.21

Eugénio de Andrade: "Improviso na madrugada"

 



Improviso na madrugada



Húmido de beijos e de lágrimas,

ardor da terra com saber a mar,

o teu corpo perdia-se no meu.


(Vontade de ser barco ou de cantar.)






ANDRADE, Eugénio de. "Improviso na madrugada". In:_____ Primeiros poemas, As mãos e os frutos, Os amantes sem dinheiro. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006. 

26.10.21

Konstantinos Kaváfis: "Iwnikon" / "Iônica"

 



Iônica


Esmigalhamos – em verdade – suas estátuas,

os expulsamos – em verdade – dos santuários,

porém dos deuses – nem por isso – pereceram.

Eles, os deuses, Terra Iônica, ainda te adoram,

no íntimo, sua psiquê ainda te rememora.

Quando a manhã de agosto sobre ti alvora,

a vida deles deixa, na atmosfera, um sopro,

e uma figura etérea, um exsurgir de efebo,

como se evanescente no seu passo leve,

vela obre ti, no alto da colina, às vezes.





Iwnikon


Γιατί τα σπάσαμε τ’ αγάλματά των

γιατί τους διώξαμεν απ’ τους ναούς των,

διόλου δεν πέθαναν γι’ αυτό οι θεοί.

Ω γη της Ιωνίας, σένα αγαπούν ακόμη,

σένα η ψυχές των ενθυμούνται ακόμη.

Σαν ξημερώνει επάνω σου πρωί αυγουστιάτικο

την ατμοσφαίρα σου περνά σφρίγος απ’ την ζωή των·

και κάποτ’ αιθερία εφηβική μορφή,

αόριστη, με διάβα γρήγορο,

επάνω από τους λόφους σου περνά.





CAVÁFIS, Constantinos. "Iwnikon" / "Iônica". In: Konstantinos Haroldo Kaváfis de Campos. Poemas de Konstantinos Kaváfis; trad. de Haroldo de Campos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



22.10.21

Antonio Cicero: "Definição ostensiva"

 



Definição ostensiva


Cerúleo:

o céu

o mar

os olhos dos alemães

os cabelos dos indianos

a noite

a morte





CICERO, Antonio. "Cerúleo". In:_____ Definição ostensiva. In: Porventura.   Rio de Janeiro: Record, 2012.



20.10.21

Jaime Gil de Biedma: "Volver" / "Voltar"

 



                Voltar



Minha lembrança eram imagens,

no instante, de ti:

essa expressão e um matiz

dos olhos, um pouco suave


na inflexão de tua voz,

e teus bocejos furtivos

de lebréu que dormiu mal

toda a noite em meu quarto.


Voltar, passados os anos,

rumo à felicidade

—para ver-se e recordar

que estou também mudado.





               Volver



Mi recuerdo eran imágenes,

en el instante, de ti:

esa expresión y un matiz

de los ojos, algo suave

 

en la inflexión de la voz,

y tus bostezos furtivos

de lebrel que ha maldormido

la noche en mi habitación.

 

Volver, pasados los años,

hacia la felicidad

—para verse y recordar

que yo también he cambiado.









BIEDMA, Jaime Gil de. "Volver" / "Voltar". In:_____ Antologia poética. Org. e trad. por José Bento. Lisboa: Cotovia, 2003.

17.10.21

Pedro Tamen: "Não me deste o retrato"

 



Não me deste o retrato

do que hoje ou ontem se passou.

Não sei a cor, as dimensões,

as palavras exactas.

Não tenho apontados no diário

os factos com cê pronunciado,

as caras das pessoas,

donde vinham. Se estava

chuva ou sol, ou ventania.

A História de Cantù.



Ter o que foi, em mim,

é ter esquecido.






TAMEN,  Pedro. "Não me deste o retrato". In:_____ Memória indescritível. Lisboa: Gótica, 2000.

15.10.21

Pietro Arentino: "Questo è un libro d'altro que sonetti" / "Mais que sonetos este livro aninha": trad. José Paulo Paes

 



I


Mais que sonetos este livro aninha,

Mais que éclogas, capítulos, canções.

Tu, Bembo ou Sannazaro, aqui não pões

Nem líquidos cristais e nem florinhas.


Marignan madrigais não escrevinha

Aqui, onde há caralhos sem bridões,

Que em cu ou cona lépidos dispõem-se

Como confeitos dentro da caixinha.


Gente aqui há que fode e que é fodida,

De conas e caralhos há caudal

E pelo cu muita alma já perdida.


Fode-se aqui com graça sem igual,

Alhures nunca assaz reproduzida

Por toda a jerarquia putanal.


                          Enfim loucura tal

Que até dá nojo essa iguaria toda,

E Deus perdoe a quem no cu não foda.





I


Questo è un libro d’altro che sonetti,

Di capitoli, d’egloghe o canzone,

Qui il Sannazaro o il Bembo non compone

Nè liquidi cristalli, nè fioretti.


Qui il Marignan non v’ha madrigaletti,

Ma vi son cazzi senza discrizione

E v’è la potta e ‘ l cul, che li ripone

Appunto come in scatole confetti.


Vi son genti fottenti e fottute

E di potte e di cazzi notomie

E ne’ culi molt’anime perdute.


Qui vi si fotte in più leggiadre vie,

Ch’in alcun loco si sien mai vedute

Infra le puttanesche gerarchie;


                       In fin sono pazzie

A farsi schifo di si buon bocconi

E chi non fotte in cul, Dio gliel perdoni.







ARENTINO, Pietro. "Questo è un libro d'altro que sonetti" / "Mais que sonetos este livro aninha". In:_____ Sonetos luxuriosos.  Org. e trad. de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Record, 1981.



12.10.21

Jorge de Lima: "Solilóquio sem fim e rio revolto"

 



Solilóquio sem fim e rio revolto


Solilóquio sem fim e rio revolto

mas em voz alta, e sempre os lábios duros

ruminando as palavras, e escutando

o que é consciência, lógica ou absurdo.


A memória em vigília alcança o solto

perpassar de episódios, uns futuros

e outros passados, vagos, ondulando

num implacável estribilho surdo.


E tudo num refrão atormentado:

memória, raciocínio, descalabro...

Há também a janela da amplidão;


e depois da janela esse esperado

postigo, esse último portão que eu abro

para a fuga completa da razão.





LIMA, Jorge de. "Solilóquio sem fim e rio revolto". In: Antologia poética. Org. por Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro: Joséo Olympiio, 1978.

7.10.21

Jacques Prévert: "La brouette ou les grandes inventions" / "O carrinho de mão ou as grandes invenções": trad. por Silviano Santiago

 



O carrinho de mão ou as grndes invenções


O pavão abre o leque

o acaso faz o resto

Deus toma assento

e o homem empurra.






La brouette ou les grandes inventions


Le paon fait la roue

le hasard fait le reste

Dieu s'assoit dedans

et l'homme le pousse.





PRÉVERT, Jacques. "La brouette ou les grandes inventions" / "O carrinho de mão ou as grandes invenções". In:_____ Poemas. Org. e trad. por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

4.10.21

Fernando Assis Pacheco. "Tentas, de longe"

 



Tentas, de longe



Tentas, de longe, dizer que estás aqui.

Com peso triste caminha na rua o Outono.

O meu coração debruça-se à janela

a ver pessoas e carros, e as folhas caindo.


Mastigo esta solidão

como quando era pequeno e jantava

diante dos pais zangados:

devagar, ausente.







PACHECO, Fernando Assis. "Tentas, de longe". In:_____. Cuidar dos vivos. Coimbra: Ed. do Autor, 1963.

30.9.21

Percy Bysshe Shelley: "A lament" / "Um lamento": trad. por Adriano Scandolara

 



Um lamento


Ó mundo! Ó vida! Ó tempo!

cujos degraus, tremendo,

de novo escalo e chego aos teus finais;

quando retorna a glória do momento?

não mais – ah, nunca mais!


Pela noite e o dia,

fugaz prazer fugia;

frescor do estio e alvores hibernais

ferem meu peito em dor, mas de alegria

não mais – ah, nunca mais!





A lament


O world! O life! O time!

On whose last steps I climb,

Trembling at that where I had stood before;

When will return the glory of your prime?

No more—Oh, never more!


Out of the day and night

A joy has taken flight;

Fresh spring, and summer, and winter hoar,

Move my faint heart with grief, but with delight

No more – Oh, never more!










SHELLEY, Percy Bysshe. "A lament" / "Um lamento". In: Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. por Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

25.9.21

Mário Quintana: "Poeminha do contra"

 



Poeminha do contra


Todos estes que aí estão

atravancando o meu caminhho,

Eles passarão.

Eu passarinho!




QUINTANA, Mário. "Poeminha do contra". In: COHN, Sérgio (org.). Poesia.br: modernismo. Rio de Janeiro:Beco do Azougue, 2012.


23.9.21

Antonio Cicero: "O emigrante"

 



O emigrante


Buscando o ocidente com o olhar,

que desde sempre foi límpido e grávido,

chegou à terra ao fim de todo mar.

Sem planos certos foi e até sem roupa,

sem cada dia o pão e sem família,

sem nem saber o que era o ocidente,

chegou chorando assim como quem nasce

e o mundo alumbra um segundo e assombra.






CICERO, Antonio. "O emigrante". In:_____ Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

19.9.21

João Cabral de Melo Neto: "Autocrítica"

 



Autocrítica


Só duas coisas conseguiram

(des)feri-lo até a poesia:

o Pernambuco de onde veio

e o aonde foi, a Andaluzia.

Um, o vacinou do falar rico

e deu-lhe a outra, fêmea e viva,

desafio demente: em verso 

dar a ver Sertão e Sevilha.






MELO NETO, João Cabral de. "Autocrítica". In:_____. "A escola das facas".  In: Poesia completa. Org. por Antonio Carlos Secchin. Lisboa: Glaciar, 2014.

16.9.21

Paul Verlaine: "C'est l'extase langoureuse..." / "É o êxtase langoroso...": trad. por Guilherme de Almeida

 



É o êxtase langoroso...



É o êxtase langoroso,

É o cansaço amoroso,

É todo o bosque a vibrar

Ao enlace das aragens,

São, nas grisalhas ramagens,

Mil vozes a cochichar.


Óh! o fino e fresco cicio!

É chilreio e balbucio,

Parece esses doces ais

Que a relva móvel suspira ...

Dirias, na água que gira,

Rolar de seixos casuais.


Essa alma que se lamenta

Nessa queixa sonolenta

Não será a nossa, ai de nós?

A minha à tua enlaçada,

Exalando a humilde toada

Nesta tarde, a meia voz?






C'est l'extase langoureuse...



C'est l'extase langoureuse,

C'est la fatigue amoureuse,

C'est tous les frissons des bois

Parmi l'étreinte des brises,

C'est, vers les ramures grises,

Le choeur des petites voix.


O le frêle et frais murmure !

Cela gazouille et susurre,

Cela ressemble au cri doux

Que l'herbe agitée expire...

Tu dirais, sous l'eau qui vire,

Le roulis sourd des cailloux.


Cette âme qui se lamente

En cette plainte dormante,

C'est la nôtre, n'est-ce pas ?

La mienne, dis, et la tienne,

Dont s'exhale l'humble antienne

Par ce tiède soir, tout bas ?






VERLAINE, Paul. "C'est l'extase langoureuse..." / "É o êxtase langoroso..." In: ALMEIDA, Guilherme de. Poetas de França. São Paulo: Babel, s.d.


13.9.21

Eugénio de Andrade: "Canção"

 



Canção



Tu eras neve. 

Branca neve acariciada. 

Lágrima e jasmim 

no limiar da madrugada.


Tu eras água. 

Água do mar se te beijava. 

Alta torre, alma, navio, 

adeus que não começa nem acaba.


Eras o fruto 

nos meus dedos a tremer. 

Podíamos cantar 

ou voar, podíamos morrer.


Mas do nome 

que maio decorou, 

nem a cor 

nem o gosto me ficou.





ANDRADE, Eugénio de. "Canção". In:_____ Até amanhã. Porto: Limiar, 1990.

10.9.21

Rainer Maria Rilke: "Einsamkeit" / "Solidão": trad. de Augusto de Campos

 



Solidão



A solidão é como a chuva que brota

do mar para o cair da tarde;

da planície distante e remota

para o céu, que sempre a adota.

E só então recai do céu sobre a cidade.


Ela chove, entre as horas, a seu despeito,

quando todos os becos buscam a madrugada

e quando os corpos, que não encontraram nada,

quedam-se juntos, tristes e frios,

e os que se odeiam, rosto contrafeito,

têm de dormir no mesmo leito:


aí a solidão flui como os rios...





Einsamkeit


Die Einsamkeit ist wie ein Regen.

Sie steigt vom Meer den Abenden entgegen;

von Ebenen, die fern sind und entlegen,

geht sie zum Himmel, der sie immer hat.

Und erst vom Himmel fällt sie auf die Stadt.


Regnet hernieder in den Zwitterstunden,

wenn sich nach Morgen wenden alle Gassen

und wenn die Leiber, welche nichts gefunden,

enttäuscht und traurig von einander lassen;

und wenn die Menschen, die einander hassen,

in einem Bett zusammen schlafen müssen:


dann geht die Einsamkeit mit den Flüssen...





RILKE, Rainer Maria. "Einsamkeit" / "Solidão". In: CAMPOS, Augusto de (trad. e org.). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013.

7.9.21

Rolf Dieter Brinkmann: "Zwischen" / "Entre": trad. por Markus J. Weininger e Rosvitha Friesen Blume

 



Entre

as linhas

não há nada

escrito.


Cada palavra

é preto

no branco

verificável.





Zwischen

den Zeilen

steht nichts

geschrieben.


Jedes Wort

ist schwarz

auf weiß

nachprüfbar.





BRINKMANN, Rolf Dieter. "Zwischen" / "Entre". In: BLUME, Rosvitha Friesen; WEININGER, Markus J. Seis décadas de poesia alemã: do pós-guera ao início do século XXI. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.


5.9.21

Dante Milano: "Saudade do tempo"

 



Saudade do tempo



Saudade do tempo

Do tempo passado,

O tempo feliz

Que não volta mais.


Deus queira que um dia

Eu encontre ainda

Aquela inocência

Feliz sem saber.


Mas hoje que eu sei

De toda a verdade

Já não acredito

Na felicidade,


E quando eu morrer

Então outra vez

Pode ser que eu seja

Feliz sem saber.






MILANO, Dante. "Saudade do tempo". In: BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira: seguida de uma antologia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

2.9.21

Antonio Cicero: "Canto XXIII: Desafogo"

 



Canto XXIII: Desafogo

                                      a Sérgio Luz                   

 

A ameaçar as naves do regresso

enquanto os deuses se distraem

o combate prossegue implacável,

os dardos e o bronze a perfurar

órgãos membros e sobretudo a pele

que sonhava acostumar-se a brisas sóis olhos ardentes.

 

Antes morrer de vez ou viver

que desgastar-se feito agora ante os navios

contra homens ignóbeis






CICERO, Antonio. "Canto XXIII: Desafogo". In:_____ Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

31.8.21

Friedrich Hölderlin: "Sokrates und Alcibiades" / "Sócrates e Alcibíades": trad. de Antonio Cicero

 



Sócrates e Alcibíades



Por que honras, divino Sócrates,

   Sempre esse mesmo jovem? Não conheces nada maior?

       Por que o apreendem com amor, 

   Como aos deuses, os teus olhos?


Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivaz

    Quem entende o nobre jovem é quem bem captou o mundo

          E, no fim das contas, o sábio

        Se curva bastante ao belo.





Sokrates und Alcibiades



»Warum huldigest du, heiliger Sokrates,

     Diesem Jünglinge stets? kennest du Größers nicht?

Warum siehet mit Liebe,

     Wie auf Götter, dein Aug' auf ihn?«


Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste,

     Hohe Jugend versteht, wer in die Welt geblickt,

 Und es neigen die Weisen

      Oft am Ende zu Schönem sich.





HÖLDERLIN, Friedrich. "Sokrates und Alcibiades" / "Sócrates e Alcibíades". In:_____ Sämtliche Gedichte. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 2005.





29.8.21

Adriana Calcanhotto: "Sobre a tarde"

 



Sobre a tarde

um e-mail para carlos drummond de andrade



Cai a tarde

Como sempre


Como sempre

Diferente


Cai a tarde

De onde não se sabe

Pela Farme

Sobre a gente


Cai a tarde

Sem parar


Cai a tarde

E tudo parda


Cai a tarde

Meu amor rega as plantas


Cai a tarde

A tarde toda

Na velocidade da luz





CALCANHOTTO, Adriana. "Sobre a tarde". In: Creio que foi o sorriso. Uma antologia. Org. por Jorge Reis Sá. A Casa dos Ceifeiros, 2020.

26.8.21

Alberto da Costa e Silva: "O amor aos sessenta"

 



O amor aos sessenta



Isto que é o amor (como se o amor não fosse

esperar o relâmpago clarear o degredo):

ir-se por tempo abaixo como grama em colina,

preso a cada torrão de minuto e desejo.


Ser contigo, não sendo como as fases da lua,

como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,

mas como numa rosa as pétalas fechadas,

como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos


contra o casco do barco que se vai, sem avanço

e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.

Ser assim quase eterno como o sonho e a roda

que se fecha no espaço deste sol às estrelas


e amar-te, sabendo que a velhice descobre

a mais bela beleza no teu rosto de jovem.





COSTA E SILVA, Alberto da. "O amor aos sessenta". In: Antonlogia poética da Academia Brasileira de Letras. Brasília: Edições Câmara,, 2020.


24.8.21

Felipe Fortuna




Corpo a corpo



Meu corpo se destina a muitos corpos

em que me enterro antes da morte.


Gosto de prová-los como quem veste a chuva,

e a confusão das águas me desnuda.


Meu corpo e os outros corpos sempre em luta:

caio dentro da arena de areia extensa


em que meu sangue e as palavras se misturam. 






FORTUNA, Felipe. "Corpo a corpo". In:_____ "Poemas da pele". In:_____ Em seu lugar. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2005.

22.8.21

Manuel António Pina: "O lado de fora"

 



O lado de fora



Eu não procuro nada em ti,

nem a mim próprio, é algo em ti

que procura algo em ti

no labirinto dos meus pensamentos.

 

Eu estou entre ti e ti,

a minha vida, os meus sentidos

(principalmente os meus sentidos)

toldam de sombras o teu rosto.

 

O meu rosto não reflete a tua imagem,

o meu silêncio não te deixa falar,

o meu corpo não deixa que se juntem

as partes dispersas de ti em mim.

 

Eu sou talvez

aquele que procuras,

e as minhas dúvidas a tua voz

chamando do fundo do meu coração.





PINA, Manuel António. "O lado de fora". In:_____. Poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.



20.8.21

Antonio Cicero: "Colono lacônico"

 



Colono lacônico


É propício que Afrodite sempre vença as primeiras batalhas

e Atena sempre as últimas.

Hera deve perder.


Jamais regressarei a Esparta.





CICERO, Antonio. "Colono lacônico". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 2012.

18.8.21

Luís Turiba: "Cachoeira"

 



Cachoeira


A vida

começa a correr

mais rápida

do que as

próprias pernas


não tropeçar nas mesmas

não se afogar nas perdas


vida é rio manso

a escorrer nas beiras

rumo a cachoeiras


descalço d'alma

com os pés no

riacho da ilusão




TURIBA, Luís. "Cachoeira". In: Correio Brasiliense. Brasília, 17 de agosto de 2021.


15.8.21

Eugénio de Andrade: "O amor"

 



O amor



Estou a amar-te como o frio

corta os lábios.


A arrancar a raiz

ao mais diminuto dos rios.


A inundar-te de facas,

de saliva esperma lume.


Estou a rodear de agulhas

a boca mais vulnerável.


A marcar sobre os teus flancos

itinerários da espuma.


Assim é o amor: mortal e navegável.








ANDRADE, Eugénio de. "O amor". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1015. 

12.8.21

Sá de Miranda: "Comigo me desavim"

 



Comigo me desavim



Comigo me desavim,

sou posto em todo perigo;

não posso viver comigo

nem posso fugir de mim.


Com dor, da gente fugia,

antes que esta assim crescesse:

agora já fugiria

de mim, se de mim pudesse.

Que meo espero ou que fim

do vão trabalho que sigo,

pois que trago a mim comigo

tamanho imigo de mim?




SÁ  de Miranda. "Comigo me desavim". In:_____. Obras completas, vol.I. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976.


9.8.21

Paul Verlaine: "Le bruit des cabarets..." / "A voz dos botequins..."

 



A voz dos botequins...


A voz dos botequins, a lama das sarjetas,

Os plátanos largando no ar as folhas pretas,

O ônibus, furacão de ferragens e lodo,

Que entre as rodas se empina e desengonça todo,

Lentamente, o olhar verde e vermelho rodando;

Operários que vão para o grêmio fumando

Cachimbo sob o olhar de agentes de polícia,

Paredes e beirais transpirando imundícia,


A enxurrada entupindo o esgoto, o asfalto liso,

Eis meu caminho -- mas no fim há um paraíso.








Le bruit des cabarets...

Le bruit des cabarets, la fange du trottoir,

Les platanes déchus s'effeuillant dans l'air noir,

L'omnibus, ouragan de ferraille et de boues,

Qui grince, mal assis entre ses quatre roues,

Et roule ses yeux verts et rouges lentement,

Les ouvriers allant au club, tout en fumant

Leur brûle-gueule au nez des agents de police,

Toits qui dégouttent, murs suintants, pavé qui glisse,


Bitume défoncé, ruisseaux comblant l'égout,

Voilà ma route -- avec le paradis au bout.







VERLAINE, Paul. "Le bruit des cabarets..." / "A voz dos botequins...". In: Poetas de França. Trad. de Guilherme de Almeida. São Paulo: Babel, 1965.


6.8.21

Antonio Cicero: "Merde de poète"

 



Merde de poète


Quem gosta de poesia "visceral",

ou seja, porca, preguiçosa, lerda,

que vá ao fundo e seja literal,

pedindo ao poeta, em vez de poemas, merda.





CICERO, Antonio. "Merde de poète". In:_____ A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

4.8.21

Percy Shelley: "Sonnet: to Wordsworth" / "Soneto: a Wordsworth": trad. por Adriano Scandolara

 



Soneto: a Wordsworth


Poeta da Natureza, o dissabor

choraste, que o que parte não regressa:

viço, amizades, o primeiro amor,

só doces sonhos, que a tua mágoa expressa.

Tais dores também sinto. Uma delas

tu a sentiste, mas só eu a lamento.

Lançaste luz, mais erma das estrelas,

em frágil barca, ao hibernal relento:

resististe, rochoso bastião,

contra a cega e violenta multidão:

na pobreza mais nobre, dedicaste

o teu canto à verdade e liberdade, —

e eis-me de luto, porque as desertaste,

que, por tal razão, deixes-nos saudade.






Sonnet: to Wordsworth


Poet of Nature, thou hast wept to know

That things depart which never may return:

Childhood and youth, friendship and love's first glow,

Have fled like sweet dreams, leaving thee to mourn.

These common woes I feel. One loss is mine

Which thou too feel'st, yet I alone deplore.

Thou wert as a lone star, whose light did shine

On some frail bark in winter's midnight roar:

Thou hast like to a rock-built refuge stood

Above the blind and battling multitude:                                  

In honoured poverty thy voice did weave

Songs consecrate to truth and liberty, --

Deserting these, thou leavest me to grieve,

That having been, that thou shouldst cease to be.









SHELLEY, Percy. "Sonnet: to Wordsworth" / "Soneto: a Wordsworth". In:_____ Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. por Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

2.8.21

Marco Lucchesi: "Dalet"

 



Dalet



Mil 

rostos


nas sombras

do nada


descansam 

sseus olhos


e sangram

palavras...


as 

luminescentes


pupilas 

antigas


apagam

o fogo


nas águas

lustrais...


mil

rostos


descansam

os ohos


nas sombras

do nada


enquanto 

mil pedras


enquanto

mil homens


se perdem 

no abismo


por causa 

de um rosto





LUCCHESI, Marco. "Dalet". In:_____ "Alma Vênus". In:_____ Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 2000. 

30.7.21

Pedro Tamen: "Como se na boca da trompete"

 



Faleceu ontem o grande poeta português Pedro Tamen. Eu já admirava muito sua poesia quando o conheci, em 2006, na ocasião em que ambos, a convite do Centro Nacional de Cultura de Portugal, participamos de uma missão de poetas lusófonos a Macau. Desde então ficamos amigos, e lamento profundamente a sua morte.Eis um dos seus belos poemas:



Como se na boca da trompete

coloca-se a surdina sobre a vida

e a memória irrompe qual um vento

imitação de sons    de vozes    tiros

num escuro que nada mais já pode iluminar


Não há cheiro novo que resseja a planta

verdadeira    a genuína cor    o prato

a fumegar de uma sápida sopa inexistente

sopra-se na vida todo o ar que o tempo

nos pôs no peito em anos discorridos

e é cor de sombra agora o arco-íris





TAMEN,  Pedro. "Como se na boca da trompete". In:_____. Memória indescritível. Lisboa: Gótica, 2000. 

 



28.7.21

Daniel Jonas: "Composição a negro cinzento"

 



Composição a negro cinzento



Aquela além

recolhida, bravia


defenestrando 

o olhar, a razão, a fé,



pode ser a mãe de Whistler;

a minha não é.

*





JONAS,  Daniel. "Composição a negro cinzento". In:_____. "Bisonte". In:_____. Os fantasmas inquilinos.:Poemas escolhidos. Seleção por Mariano Marovatto. São Paulo: Todavia, 2019.

26.7.21

Manuel Bandeira: "A Antonio Nobre"

 



A Antônio Nobre



Tu que penaste tanto e em cujo canto

Há a ingenuidade santa do menino;

Que amaste os choupos, o dobrar do sino,

E cujo pranto faz correr o pranto:


Com que magoado olhar, magoado espanto

Revejo em teu destino o meu destino!

Essa dor de tossir bebendo o ar fino,

A esmorecer e desejando tanto...


Mas tu dormiste em paz como as crianças.

Sorriu a Glória às tuas esperanças

E beijou-te na boca... O lindo som!


Quem me dará o beijo que cobiço?

Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...

Eu, não terei a Glória... nem fui bom.




BANDEIRA, Manuel. "A Antônio Nobre". In: _____. "A cinza das horas". In:_____. Estrela da vida inteira -- poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.


23.7.21

Georg Trakl: "Gesang einer gefangenen Amsel" / "Canto dum melro preso": trad. de Paulo Quintela

 



Gesang einer gefangenen Amsel

                           Für Ludwig von Ficker

 

Dunkler Odem im grünen Gezweig.

Blaue Blümchen umschweben das Antlitz

Des Einsamen, den goldenen Schritt

Ersterbend unter dem Ölbaum.

Aufflattert mit trunknem Flügel die Nacht.

So leise blutet Demut,

Tau, der langsam tropft vom blühenden Dorn.

Strahlender Arme Erbarmen

Umfängt ein brechendes Herz.




Canto dum melro preso

                              A Ludwig von Ficker


Hálito escuro na verde ramaria.

Florinhas azuis pairam em volta da face

Do solitário, fazendo morrer o passo

Dourado sob a oliveira.

Levanta voo a noite em asa ébria.

Tão baixo sangra humildade,

Orvalho, que manso goteja do espinheiro em flor.

Compaixão de braços radiosos

Abraça um coração que quebra.







TRAKL, Georg. "Gesang einer gefangenen Amsel" / "Canto dum melro preso". In:_____. Poemas.
Antologia e versão portuguesa de Paulo Quintela. Porto: M. J. Costa & Ca., Ltda.

21.7.21

Antonio Cicero: "Nênia"

 



                                               NÊNIA


A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.

 

 



CICERO, Antonio. "Nênia". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

17.7.21

Bertolt Brecht: "Vom ertrunkenen Mädchen" / "A moça afogada"

 



A moça afogada


1

Quando ela se afogou e a boiar foi descendo 

Dos córregos para os rios mais caudalosos, 

Brilhava o céu de opala tão maravilhoso 

Qual se devesse recompensar o cadáver.

 

2

Sargaços e algas iam-na enleando,

De modo que ela aos poucos ficava com mais peso.

Frios os peixes nadavam-lhe pelas pernas,

Plantas e bichos faziam-lhe ainda mais lenta a última viagem.


3

E o céu da tarde era escuro feito fumaça

Retendo à noite o brilho das estréias sobre o horizonte.

Mas cedo alvoreceu, a fim de que também

Manhã e tarde houvesse para ela.


4

Quando seu corpo branco apodreceu nas águas, 

Aconteceu (bem devagar) que Deus foi-a esquecendo:

Primeiro o rosto, as mãos depois e por fim os cabelos.

Então ela passou a ser no rio uma carniça igual a tantas outras.




BRECHT, Bertolt. "A moça afogada". In:_____. Poemas e canções. Seleção e tradução por Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. 




Vom ertrunkenen Mädchen


1

Als sie ertrunken war und hinunterschwamm

Von den Bächen in die größeren Flüsse

Schien der Opal des Himmels sehr wundersam

Als ob er die Leiche begütigen müsse.


2

Tang und Algen hielten sich an ihr ein

So daß sie langsam viel schwerer ward.

Kühl die Fische schwammen an ihrem Bein

Pflanzen und Tiere beschwerten noch ihre letzte Fahrt.


3

Und der Himmel ward abends dunkel wie Rauch

Und hielt nachts mit den Sternen das Licht in Schwebe.

 Aber früh ward er hell, daß es auch

Noch für sie Morgen und Abend gebe.


4

Als ihr bleicher Leib im Wasser verfaulet war

Geschah es (sehr langsam), daß Gott sie allmählich vergaß

Erst ihr Gesicht, dann die Hände und ganz zuletzt erst ihr Haar.

Dann ward sie Aas in Flüssen mit vielem Aas.





BRECHT, Bertolt. "Vom ertrunkenen Mädchen". In:_____. Die Gedichte von Bertot Brecht in einem Band. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.


15.7.21

Luís Miguel Nava: "Na pele"

 



Na pele



O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar

ao longo das falésias, o que sempre

me traz a exaltação desses rapazes que circulam

por Lisboa no verão.

O mar está-lhes na pele. Partilho

com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas

a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista

da pedra onde o mar vem largar a pele.





NAVA, Luís Miguel. "Na pele". In:_____. "Onde a nudez". In:_____. Poesia completa. 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa:  Publicações Dom Quixote, 2002.

11.7.21

ENTRE O MÍTICO, O FILOSÓFICO E O LITERÁRIO NO LIVRO ESTRANHA ALQUIMIA, DE ANTONIO CICERO

Ensaio de Alexandra Vieira de Almeida, Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)



Estranha alquimia (Penalux, 2020), primeira antologia de poemas do poeta, filósofo, crítico literário e letrista carioca Antonio Cicero, consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, foi organizada pelo incansável poeta Diego Mendes Sousa e com colaboração do escritor Fabio de Sousa Coutinho.* A coletânea integra o “Item do Colecionador” da editora paulista e é retirada dos livros Guardar (1996), A cidade e os livros (2002) e Porventura (2012). Com novo dimensionamento do organizador e colaborador, a obra é composta por quatro partes: Baú de nuvens, Alma Caiada, Poeta é uma África e Continente.

 

Em cada seção do livro, temos como poema de abertura, o título de cada capítulo. No poema “Baú de nuvens”, somos enovelados pelas urdiduras interrogativas do poeta, com indagações e reflexões sobre a vida, mas dando um tom diferenciado e irônico ao que é originário, reconstruindo as perguntas não em respostas facilitadoras, mas a novas perguntas, criando-se, assim, um círculo com um contorno em aberto, pois o primeiro verso se apresenta com uma interrogação, da mesma forma como o último verso. Vejamos: “Para onde vou, de onde vim? Não sei se me acho ou me extravio./Ariadne não fia o seu fio./à frente, mas atrás de mim?/Não será a saída um desvio/e o caminho o único fim?” Aqui, o poema não se conclui com a palavra “fim”. Com doses interpretativas, Cicero reconta literariamente o mito pelo viés filosófico, esta estranha alquimia, que perpassa todo o seu livro, ou seja, num amálgama entre a poesia, a lenda e a Sofia, o poeta não se fia no fio da crença, mas reconstrói o mito pela chama da poesia reflexiva, que faz de Ariadne a ponte para as questões mais abissais do ser, em seu teor de labirinto intelectivo, porém estruturado pelo tecido vertiginoso do literário em seu mais alto grau.

 

Nos seus versos, somos levados para a perplexidade entre o antigo e o contemporâneo, o cosmopolitismo e o particular, numa tessitura poliglota e multilingual, onde encontramos várias línguas, vários continentes e nações. Entre o estrangeiro e o nacional, seu olhar dinâmico e interrogativo transita pelas avenidas e ruas do passado e do presente. Flertando com os monumentos do berço civilizatório ocidental, a cultura greco-romana, não deixa de lado a presença da África, palavra que dá título uma das seções da obra. Perpassando as ruínas do antigo, passeia pelas lentes do asfalto citadino. Natureza e urbe se revelam como a outra alquimia, que mistura, no atanor, belas e originais metáforas. O casamento alquímico na sua coletânea não se dá de forma harmônica, há uma ruptura e uma tensão que fazem dos elementos um enroscar de camadas plurais e desiguais, como o panejamento de uma escultura barroca, que nos conduz a movimentos ondulatórios e com diferentes tons e dobras.

 

No meio dos poemas, encontramos letras de músicas, escritas para vários cantores, como sua irmã Marina Lima e Adriana Calcanhotto, como exemplos. Assim, nós nos perguntaríamos, letras de música também não seriam poemas? E, assim, somos conduzidos para a dialética tão acirrada pelos teóricos mais rígidos, que criam uma fronteira, um abismo entre ambos. Se fosse dessa forma, Bob Dylan não teria ganho o prêmio Nobel de Literatura por suas letras musicadas. Poesia pode se revelar na música, assim como a música na poesia. Estamos falando da relação entre ritmo e o trabalho com a linguagem, algo que Cicero conhece profundamente. Nesse sentido, as artes podem ser vasos comunicantes, e, nesse sentido, é mais do que importante e notório, colocar as letras de músicas numa antologia de poemas, pois ambas trabalham com a mesma linguagem, unindo palavra e sonoridade, aspectos que são estruturados de forma primordial na sua poética. No caso de Estranha alquimia, temos poemas que foram musicados e letras de canções, numa variedade que afirma a junção entre as ideias, as imagens e os sons.

 

No poema “Inverno”, por exemplo, composta para melodia de Calcanhotto, temos a dimensão intertextual da palavra enquanto verbo potencial e germinativo, que abrange outras significações nos matizes polissêmicos do novo texto. Num dos versos, temos: “sem amarras, barco embriagado ao mar”. Como não percebermos aqui os ecos do poeta francês Rimbaud, com seu “barco bêbado”? O mesmo ocorre no seu poema “Canção da alma caiada”, poema musicado por Marina Lima, com o nome de “Alma caiada”. Aqui, novamente, encontramos a faceta do literário, pois todos os versos do texto começam por letra maiúscula, característica muito recorrente no Parnasianismo e Simbolismo, enfatizando a introdução dos versos. Em outros poemas do escritor, temos a alternância entre minúsculas e maiúsculas, dando diversidade à forma poética, não se prendendo a padrões exclusivistas. Em “Água Perrier”, como outro exemplo em que se apresenta o jogo textual e literário, entre forma e conteúdo, o poeta Antonio Cicero cria uma rica rima em que no verso anterior temos o substantivo “clichês”, que rima, no plural, com o adjetivo no singular, “blasé”, fazendo um efeito ímpar, num olhar, não ofuscado pelas sombras da dissonância, mas de uma assonância que equaciona a movência da pluralidade na unidade. A sua música não se atém à facilidade e ao óbvio, o que prepondera na atualidade, mas pela força do pensamento, a “poeticidade” mergulhada no mar turbulento da “reflexão”. Mas não deixa de unir o formal e o informal, o que está no centro e na periferia, a língua normativa à oralidade, criando um jogo dinâmico entre a estrutura padrão em “banir-se-ão”, com o semantismo do que é descentralizado: “do centro rumo a um logrador/subúrbio desse coração”, em poema musicado por Orlando Moraes.

 

No poema “Diamante”, o amor é metaforizado por um símbolo elementar, mineral. Algo do âmbito do concreto passa a ter valor existencial, o amor e sua mineralidade. Criando choques linguísticos nessa poesia, Cicero extrai das palavras mais brutas, elevando a dureza, a dor, para patamares fulgurantes e acesos pela chama prometeica dos versos, que crescem numa gradação avassaladora, fundindo as sombras e a luz: “onde é mais funda a escuridão;/e volta indecente esplendor/e loucura e tesão e dor”. O amor é, ao mesmo tempo, elementar e solar, adquirindo o paradoxo bravio dos signos linguísticos. Passa de carvão a diamante, tem que ser burilado, para que a maldade dos anos não apague as altas temperaturas da combustão erótica das origens, fundando e fundindo o fogo perpétuo de uma eternidade que pode virar pó.

 

Já no poema “O grito”, nos deparamos com a releitura do mito de Prometeu. Este personagem não está além, é o próprio eu-lírico que se espelha e se mira no espelho da linguagem, em que temos o embate entre prisão e liberdade, o mundo dos deuses e o ceticismo, a crença e a descrença. Sem seguir uma pontuação tradicional, como exemplo, no verso seguinte, em que falta uma vírgula, “e uma ponta do fígado mas digo”, esta subversão linguística serve para se discutir a problemática que existe entre necessidade e libertação, entre o mito e o logos, entre o não-ser e o ser, entre o coletivo e o individual. O poema “Sair”, de forma ainda mais radical, utiliza-se do verbo para representar algo que foge do comum, fora do tradicional, o ateísmo e o desmoronamento de tudo o que nos causa conforto e amparo: “Largar o cobertor, a cama, o/ medo, o terço, o quarto, largar/toda simbologia e religião...” Essa ruptura também é formal, desconstruindo a estrutura sistemática tanto conceitual quanto linguística, pois Cicero quebra palavras entre os versos. O que importa para este eu-lírico é toda a physis em sua dimensão natural, em que o artifício seria desmascarado pelo sol que anima a Terra.

 

No poema “Maresia’, Cicero realiza a difícil proeza de unir, alquimicamente, o conceptismo com o cultismo, num jogo de ideias e palavras, como na seguinte estrofe: “Ah, se eu fosse marinheiro/Era eu quem tinha partido/Mas meu coração ligeiro/Não se teria partido”. E no poema musicado por Philip Glass, todo em inglês, o grande compositor da música contemporânea erudita, há um paralelismo entre céu e mar, sendo o texto intitulado “Ignorant sky”, em que num dos versos temos: “There is no God among us anymore”. A natureza desafia mais uma vez a crença teológica e o poeta, a partir da natura, ganha na queda de braço com Deus. Sky e ocean se espelham como Imago Dei que se esfacelam perante o enigma mágico do mundo em sua vertente mais do que humana nas suas simbologias não mais ofuscadas pela luz do alto. Esse blue pode nadar nas águas cambiantes da existência.

Outra temática que perpassa sua poesia é o homoerotismo. No poema “Eco”, jogando de forma lúdica e irônica com o título, em que o ritmo e sonoridade representam esse ecoar dos versos que se unem pela sua musicalidade e representação simbólica, há uma relação erótica entre o ser e a natureza, Narciso e o mar, este elemento natural que é masculino: “A pele salgada daquele surfista/parece doce de leite condensado/Com seu olhar, o mar é narcisista/e, na vista de um, o outro é espelhado”. O jogo entre salgado e doce revela a dimensão andrógina desse ser, que transita entre o universo arquetípico antigo ao mundo contemporâneo, fazendo o elo, a ponte, entre o passado e o momento do ato da escrita, como reveladora do espanto perante as coisas inominadas.

 

Em Antonio Cicero, temos o diálogo com o mito, com os nomes proeminentes da filosofia, da matemática, como no poema “Arquimedes de Siracusa” e, também, a pluralidade das artes em seus múltiplos entrelaçamentos. Em “As flores da cidade”, podemos perceber uma ponte com “As flores do mal”, de Baudelaire, em que este poeta citadino revelou os conflitos entre natureza e artifício, tão bem trabalhados nesse poema de Cicero. O poeta carioca diz: “Há flores pelo caminho através/da cidade à cidade: naturais/em canteiros e em árvores, mas quase todos artificiais/nos cabelos dos bebês, em cachorros/mimados, em vitrines e revistas/femininas, em cartazes e outdoors...” Em outras artes, cita por exemplo, no poema “Museu de arte contemporânea”, a arquitetura através de Niemeyer, em que conclui, em versos de rico lirismo: “um céu na terra, quase nada, aire,/a flor de concreto do Niemeyer”. Em vários de seus poemas, também, a estranha alquimia se verte a partir da relação entre o mito e a técnica, tão bem pensados pelo filósofo Heidegger. A linguagem da tecnologia, sai de sua gênese mitológica para se inserir no mundo contemporâneo, misturando o antigo e o novo, o estrangeiro e o local.

 

A realidade concreta é entremesclada ao tom mítico e, também, filosófico, criando-se, um amálgama precioso, que se cava no fundo da terra. Encontramos em sua poesia o diálogo entre o asfalto e a grandeza do encantamento lírico. Regiões antigas não mais existentes que perfuram as ruas movimentadas da urbe selvagem, com seus barulhos, assombros e ônibus. No poema “Transparências”, Cicero joga com os sentidos do título do texto, pois o que é turvo é trazido à luz, pela análise dos versos. Os poetas e mitógrafos caminham por uma estrada de errância, sendo que “nada é certo nada claro”. Nos seus versos, saem dos subterrâneos o delírio, o caos, o trágico, a morte, o desejo, o sagrado, o ceticismo, numa dança exótica e híbrida.

 

Para concluir nosso estudo, vamos arrematar com a análise de três poemas, da quarta parte, “Continente”, que são: “Amazônia”, a bem conhecida poesia metalinguística “Guardar” e o texto poético que fecha o livro, “Medusa”. Em “Amazônia”, percebemos a mescla entre prosa e poesia, pois nos deparamos com a contação de uma longa história, com um enredo que reúne os sentidos da nossa brasilidade ao mito universal. Se no início, o poeta nos narra sobre a “Amazônia”, ele, num processo de recordação (com digressões), a partir da ancestralidade, se volta para o universo do mito greco-romano. Mas a flora e a fauna da Amazônia lhe fascinam. A floresta de nossa Terra Brasilis também tem um encantamento mítico, voltando-se para a figura das amazonas e, também, Orellana. Assim, Cicero une, nos seus versos, numa alquimia perfeita, o mito e a história. A história enquanto narração e aquela como fatos que se sucederam no tempo. E, num processo de autorreflexão e autoironia, o poeta faz uma análise interpretativa de seu próprio fazer poético, pois o eu-lírico diz, comparando-se ao antigo: “A Amazônia quer versos heroicos e épicos,/não os meus líricos, eróticos, céticos/e tão frívolos...” E se espelha no passado, ao relatar os mitos de Ares, Afrodite e Hefesto, o Olimpo invade a nossa selva, através da dimensão da memória e do esquecimento, utilizando até o verbo específico para isso, “recordar”: “Recordo-os/e esqueço a que ponto me perdi da selva/dos meus ancestrais”.

 

No famoso poema “Guardar”, muito bem estruturado, com sua metalinguagem ímpar e imaginária, o verbo é metamorfoseado pelo canto lírico. O dom de guardar ultrapassa as fronteiras de seu significado exposto para adquirir uma conotação latente e escondida, como o a literatura assim requer. Guardar não é esconder algo num cofre, mas olhar, fitar e iluminar alguma coisa. Aqui, temos uma rica interpretação e metáfora do labor poético, este que produz uma iluminação nas coisas, faz com que algo externo adquira uma luminosidade pelas palavras incandescentes e plenas de vitalidade. E, para isso, Cicero utiliza a bela imagem do voo do pássaro, como a potência imaginativa do poeta, que não prende e represa os dons do poético, mas os guarda dos olhos enviesados e sem a sabedoria necessária para compreendê-lo. Ele diz: “Por isso melhor se guardar o voo de um pássaro/Do que pássaros sem voos”. Portanto, ele conclui que para se guardar o poema, algo que indica o zelo, ele deve ser declarado no terreno da referência. O embate entre o guardar e o escrever, o zelo e o que se torna público, o particular, o privado, na sua realização enquanto materialidade no coletivo.

 

Por fim, temos o poema “Medusa”, onde o mito é utilizado para suas reflexões filosóficas, num processo de recognição. Uma reconstrução do originário na força poética do novo. Aqui, também, encontramos mais uma vez, a reunião entre o narrativo e o lírico, reorganizando as coisas pelas palavras que tecem um jogo duplo entre a petrificação perfurante e o mergulho nos aspectos mais diáfanos da poiesis. O eu-lírico mesmo corta a cabeça da Medusa, apresentando seus motivos e nos revelando a poeticidade existente na força mítica.  Uma nova versão do mito é apresentada por Cicero, em sua dimensão simbólica e, ao mesmo tempo, analítica, pois reflete sobre temas como a finitude e a morte. Entre deuses e seres, a imortalidade se cobre com o manto da carnalidade e da transitoriedade. O trabalho genial de reconto progride em tons cada vez maiores e Cicero nos mostra, de forma lúcida e perfeita, os olhos como metáforas para os espelhos do ser em seu aspecto reflexivo e de crítica corrosiva. O final do poema é surpreendente, sendo uma síntese de um dos momentos cruciais do texto, em que o mito nos espanta pela sua força de fabulação metafórica: “A ser não sendo, de madrugada/levanto com sede dessa água”.

 

Portanto, Antonio Cicero, em Estranha alquimia, mescla as diferentes áreas de conhecimento, de temáticas e gêneros, guardando um tesouro a sete chaves que serão usadas pela abertura de seus leitores com o mecanismo interpretativo da poesia. Num trabalho de interlocução, aquilo que se guarda se queima pela ardência inventiva de seus receptores num processo de doação recíproca, em que o eu e o outro, ora silenciam, ora comunicam as mais belas imagens. Um livro para não se esquecer, mas para ser guardado para a eternidade das eras e do tempo sempre em desenvolvimento crescente de ideias e reflexões. Guardar é ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço, das cronologias e das fronteiras, fazendo-se conhecido e enaltecido pela leitura e pela crítica especializada, adquirindo voos cada vez mais altos e expansivos.




* Para aquisição:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/estranha-alquimia


10.7.21

Christovam de Chevalier: "Paisagem noturna"

 



Paisagem noturna



Os homens na noite

rumam ao relento.

Nas costas o açoite

do rugir do tempo.


Caminham pela noite

arrastados pelo vento.

Camuflam o desgaste

de rumarem a esmo.


Corre noite, gazela

lépida, afoita, faceira

Inteira na sua mazela

de dar-se a si rameira.


Os homens e a noite

num só escuro intenso

estão entregues à sorte

e estão ali por inteiro.


No baticum da boite

todos trocam olhares

misturam-se na noite

sons, salivas e suores.


ACorre a noite, cadela

trôpega, trapaceira...

Os que ficaram de vela

pedem no bar a saideira







CHEVALIER, Christovam de. "Paisagem noturna". In:_____. Inventário de esperanças. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021.

8.7.21

Lêdo Ivo: "A inspiração"

 



A inspiração


Não creio na inspiração

essa bruxa radiosa

que sopra a canção

e te faz alegre ou triste.

Mas que ela existe, existe!





IVO, Lêdo. "A inspiração", In:_____. "O soldado raso". In:_____.  Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

6.7.21

José Régio: "Testamento do poeta"

 



Testamento do poeta



Todo esse vosso esforço é vão, amigos:

Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.

Demais, já desisti de quaisquer portos;

Não peço a vossa esmola de mendigos.


O mesmo vos direi, sonhos antigos

De amor! olhos nos meus outrora absortos!

Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,

Que fostes o melhor dos meus pascigos!


E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje

Que tudo e todos vejo reduzidos,

E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.


Para reaver, porém, todo o Universo,

E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....

Basta-me o gesto de contar um verso.




RÉGIO, José. "Testamento do poeta". In: BERARDINELLI, Cleonice (org.).Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

3.7.21

António Machado: "`Plaza" / "Praça": Trad. de Antonio Cicero

 




Praça


A praça tem uma torre

a torre tem um balcão,

o balcão tem uma dama,

a dama uma branca flor.

Pois passou um cavalheiro

-- quem sabe por que passou? --

e levou consigo a praça,

com sua torre e o balcão, 

com o balcão e a dama,

a dama e a branca flor.






Plaza


La plaza tiene una torre,

la torre tiene un balcón,

el balcón tiene una dama,

la dama una blanca flor.

ha pasado un caballero

– ¿ quién sabe por qué pasó ?–,

y se ha llevado la plaza,

con su torre y su balcón,

con su balcón y su dama

su dama y su blanca flor.





MACHADO, António. "Plaza". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Franfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 2002. Tradução de Antonio Cicero.


1.7.21

Adriano Nunes: "O peito, algo me diz"

 



Adriano Nunes é poeta e tradutor, fluente em grego antigo, latim, francês, italiano, espanhol, inglês, inglês elisabetano, alemão. Formado em Medicina (UFAL) e em Direito (UFAL). Mestre em Sociologia (UFAL). Cinco livros de poemas publicados: Laringes de grafite (Vidráguas, 2012); Antípodas tropicais (Vidráguas, 2014), Quarenta contente cantante (Vidráguas, 2015); Mitorragias (Patuá, 2019); Escombros do infinito (Amazon, 2020). Canções com Frejat, Leoni, Péricles Cavalcanti, entre outros.

 

 

 

O peito, algo me diz

 

certamente feliz

quase tudo já fui

quase tudo já fiz

abriga-me tal luz:

 

vingo por ser poeta

e vivo por um triz!

quando uma mágoa aperta

o peito, algo me diz

 

em segredo: ‘que mundo

não é seu, aprendiz

de Proteu? Mas no fundo...

a que voz satisfiz?





NUNES, Adriano. "O peito, algo me diz". In: Academia Brasileira de Letras. Revista Brasileira. Rio de Janeiro, fase IX. Janeiro-Fevereiro-Março 2021. Ano IV, nº106. 

25.6.21

Waly Salomão: "Olho de lince"

 



Olho de lince


quem fala que sou esquisito hermético

é porque não dou sopa estou sempre elétrico

nada que se aproxima nada me é estranho

                fulano sicrano e beltrano

seja pedra seja planta seja bicho seja humano

quando quero saber o que ocorre à minha volta

ligo a tomada abro a janela escancaro a porta

experimento invento tudo nunca jamais me iludo

quero crer no que vem por beco escuro

me iludo passado presente futuro

                    urro arre i urro

viro balanço reviro na palma da mão o dado

                       futuro presente passado

tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão

na seqüência de diferentes naipes

                       quem fala de mim tem paixão








SALOMÃO, Waly. "Olho de lince". In:_____. "Waly Salomão". In: MORICONI, Ítalo (org.). Destino poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

21.6.21

Régis Bonvicino: "Suor"

 



Suor

 


O mar o mormaço o meio-dia

um cão se delicia

nas ondas do mar

verde, a mata


verde avança

no rochedo

o esqueleto de um peixe

na areia da praia


a brisa

o que tenho a dizer?

o que ela diz

 

o rouco marulho das ondas

sim

e nada além de ser



                                                                              Trindade,       1/2003       



BONVICINO, Régis. "Suor". In:_____. "Remorso do cosmos (de ter vindo ao sol). In:_____. Até agora: poemas reunidos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.


19.6.21

Carlos Drummond de Andrade: "lembrete"

 



lembrete


Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida




ANDRADE, Carlos Drummond de. "lembrete". In:_____. "Corpo". In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.


16.6.21

Charles Baudelaire: "Correspondances" / "Correspondências": trad. por Ivan Junqueira

 



Correspondências



A Natureza é um templo onde vivos pilares 

Deixam filtrar não raro insólitos enredos; 

O homem o cruza em meio a um bosque de segredos 

Que ali o espreitam com seus olhos familiares. 


Como ecos longos que à distância se matizam 

Numa vertiginosa e lúgubre unidade, 

Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, 

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. 


Há aromas frescos como a carne dos infantes, 

Doces como o oboé, verdes como a campina, 

E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, 


Com a fluidez daquilo que jamais termina, 

Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, 

Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. 






Correspondances



La Nature est un temple où de vivants piliers 

Laissent parfois sortir de confuses paroles; 

L'homme y passe à travers des forêts de symboles 

Qui l'observent avec des regards familiers. 


Comme de longs échos qui de loin se confondent 

Dans une ténébreuse et profonde unité, 

Vaste comme la nuit et comme la clarté, 

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. 


Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants, 

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, 

–  Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, 


Ayant l'expansion des choses infinies, 

Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, 

Qui chantent les transports de l'esprit et des sens. 





BAUDELAIRE, Charles. "Correspondances" / "Correspondências". In:_____. As flores do mal. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.