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28.6.22

Bela e profunda letra de Gilberto Gil: "Então vale a pena"

 



Então vale a pena



Se a morte faz parte da vida

E se vale a pena viver

Então morrer vale a pena

Se a gente teve o tempo para crescer

Crescer para viver de fato

O ato de amar e sofrer

Se a gente teve esse tempo

Então vale a pena morrer


Quem acordou no dia

Adormeceu na noite

Sorriu cada alegria sua

Quem andou pela rua

Atravessou a ponte

Pediu bênção à dindinha lua

Não teme a sua sorte

Abraça a sua morte

Como a uma linda ninfa nua




GIL, Gilberto. “Então vale a pena”. In: Todas as letras. Org. por Carlos.Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 

2.6.15

Adriano Nunes: "A música e Israel"




A música e Israel


Certamente os raivosos de plantão e os que levantam bandeiras para tudo (sem nem saber por que as levantam!) devem estar-se questionando: qual das atitudes seria a pequena e mais mesquinha: cantar ou não cantar em Israel. Aqui, pelos ditames da razão, derrubo as bandeiras e dou vez à arte, respondendo: pequeno e mesquinho é deixar de cantar em qualquer lugar! Levar a música onde quer que se possa não é ato de compactuar com formas e sistemas de governo. Ou ações governamentais. A arte é uma finalidade sem fim. E, por ser sem fim, é que pode atender a todas as expectativas humanas, pois através da sua amplidão e beleza é capaz de mudar o mundo, tornando-o civilizado e melhor. Assim, a música, não só atinge os ouvidos, mas o coração. Arte panfletária impregnada de política não é arte. É manifesto. A arte é livre e sempre será. Agrada gregos, troianos, palestinos, israelitas, árabes, russos, todos, de algum modo. Canta-se em momentos de alegria ou de dor. Evitar cantar em qualquer lugar é tomar o lugar como inexistente. É negar a um povo a dignidade humana. Logo, pedir a plenos pulmões que Caetano Veloso e Gilberto Gil não cantem em Israel é alimentar a discórdia e tomar partido, numa situação que não pode ser medida sob o simples olhar da retaliação. Só os israelitas e palestinos sabem bem quem eles são. E porque agem dessa maneira uns com os outros. Se a paz ainda não veio, é porque ainda há muito que se fazer por ela. E uma das formas da paz surgir é evitar esses bloqueios e campanhas mesquinhos, tanto pra um lado como para o outro. O artista é um ser livre. Sua liberdade consiste justamente em conseguir amar as diferenças. Respeitá-las. Bálsamo será o canto dos baianos em Israel. Talvez, alcance até os palestinos. Ambos não estarão, ali, a dizer que apoiam guerra alguma, pois como diz belamente Gil em "A paz": "a paz invadiu o meu coração/ de repente me encheu de paz/como se o vento de um tufão/arrancasse os meus pés do chão/onde já não me enterro mais". Esse "não me enterro mais" denota que nós, seres humanos, somos de todos os lugares. E, por não pertencermos a um só lugar, não temos que levantar bandeira contra um lugar específico. Que Gil e Caetano cantem. E que seus cantos ecoem cosmo afora e anulem os pensamentos mesquinhos e repletos de ódio e retaliações. A arte é uma mistura humana inclassificável.


Adriano Nunes

30.3.10

Entrevista: "A riqueza está nas diferenças"




Por ocasião da Conferência Internacional Sobre a Língua Portuguesa que, patrocinada pelo Itamaraty, teve lugar em Brasília, de 25 a 28 do corrente, o Correio Braziliense publicou, no domingo, a seguinte entrevista, concedida por mim a Severino Francisco:

Poesia é doença ou cura?

Nem uma coisa nem outra. Chamá-la de doença ou cura seria confundi-la com a vida do poeta. Poesia é arte: a produção de um objeto que é feito de linguagem e dotado de valor estético. Sendo um objeto, ele não se confunde com a vida daquele que o produz. E não é porque esteja doente ou porque queira se curar que o poeta faz um poema; se assim fosse, o poema só interessaria ao doente. Acontece que, ao contrário, ele interessa a muita gente cuja vida nada tem a ver com a do poeta.

A frase dita por Caetano Veloso, “Só é possível filosofar em alemão”, ainda vale nos dias de hoje?

Não, nunca valeu. Na verdade, a frase não é de Caetano, mas de Heidegger que, não nos esqueçamos, chegou a apoiar o nazismo. Caetano a citou numa canção, de modo irônico, pois ele próprio é leitor, por exemplo, do filósofo francês Jean-Paul Sartre. A letra diz: “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção/ Está provado que só é possível/ Filosofar em alemão”. Uma ideia incrível é, literalmente, uma ideia em que não se pode acreditar: uma ideia que não é crível ou lógica; mas uma ideia incrível é também uma ideia maravilhosa. Pois bem, se você tem uma ideia que, não sendo crível nem lógica, é maravilhosa, é melhor fazer uma canção do que fazer filosofia. Por quê? Porque fazer filosofia para provar uma ideia que não é crível nem lógica, como Heidegger fez com essa de que só é possível filosofar em alemão, é, além de ridículo, nocivo.

A poesia e a música ainda estão casadas? Há novos poetas interessados na palavra cantada? Esta conexão entre música e poesia é uma singularidade da cultura brasileira?

Creio que sempre haverá poetas interessados na palavra cantada. A letra de música é uma espécie de poesia, e alguns letristas são grandes poetas, como o próprio Caetano, que já citei. Mas isso não é uma singularidade da cultura brasileira. Afinal, na Grécia antiga, toda poesia lírica era cantada; os poetas provençais cantavam; e existem grandes poetas entre os letristas americanos, ingleses, mexicanos, cubanos, franceses, portugueses etc.

Apesar da revolução tecnológica e da invenção de novos meios de comunicação, há um descaso com o cultivo da palavra pelas novas gerações?
Isso tem a ver com um desinteresse pela poesia como um espaço da singularidade?


Não sei se realmente há maior descaso hoje do que outrora. A verdade é que, antigamente, as pessoas que não se interessavam pela poesia não se destacavam tanto quanto hoje, quando qualquer um pode publicar o que pensa num blog. De todo modo, penso que seria interessante que as pessoas aprendessem a ler poesia nas escolas. Não digo ler em voz alta, mas simplesmente ler. É grande o analfabetismo no que diz respeito à linguagem poética.

O rapper é o poeta do futuro?

Talvez. Do presente é que não é.

Fale da sua luta contra a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão.

É muito simples. Em particular, todo mundo tem o direito de ter o preconceito que quiser: não se pode negar a ninguém o direito à burrice. Em público, porém, a história é outra. Um país é tanto maior quanto mais for capaz de garantir a convivência do maior número possível de diferenças de ideias, comportamentos, projetos particulares, gostos, estilos de vida etc. Diferenças são riqueza. Absolutamente nada é mais importante do que isso. O único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento fira os iguais direitos de outras pessoas. Ora, o comportamento gay ou transexual não atropela os direitos alheios nem infringe lei brasileira nenhuma. Por isso, o gay deve ter o direito de existir e se manifestar publicamente sem temer repressão do Estado ou da sociedade.

Qual é sua relação artística com Marina Lima, sua irmã? Você dá palpite no trabalho dela e vice-versa?

Sim, mas mais antigamente do que hoje. Faço poucas letras hoje em dia, de modo que diminuíram as nossas parcerias.

Você viveu num Rio de Janeiro de sexo, drogas e rock ‘n’ roll. O que mais o marcou nesse período tão criativo e tão destrutivo?

A melhor coisa foi a liberação sexual; as piores coisas foram o surgimento da Aids e a disseminação da cocaína.

Hoje, você se considera um poeta de crachá, acadêmico ou um libertário?

Considero-me poeta, simplesmente: e isso, principalmente logo que termino de escrever um poema. Como dizia o poeta inglês W. H. Auden, é só nessa hora que a gente sabe que é poeta. Antes disso e depois disso, a gente não sabe se ainda é poeta.

Por que que a poesia marginal brasileira não é estudada e reverenciada nas universidades, como os beats foram nos Estados Unidos? Há preconceito?

Não sei se ainda é assim. Há muitas teses sobre Leminski, por exemplo, que era considerado marginal. O mesmo acontece com Waly Salomão. Também Chacal é objeto de teses. Agora mesmo, as obras reunidas de Roberto Piva, outro marginal, foram organizadas pelo professor de literatura Alcir Pécora.

Quem você gostaria de ver na Academia Brasileira de Letras, José Sarney ou Chacal?

Sarney já está na Academia há muito tempo, goste-se ou não disso. Quanto a Chacal, não creio que ele queira ser acadêmico, uma vez que se considera poeta marginal, e o poeta marginal se define exatamente por oposição ao acadêmico.

Como anda a política cultural do Brasil?

Já foi pior. Melhorou a partir de Gilberto Gil. Mas é claro que ainda tem muito a melhorar.

Por que é tão difícil publicar um livro?

É difcil publicar um livro porque poesia não vende. Leminski dizia que o fato de não vender era bom, pois isso quer dizer que se escreve poesia por amor, e não por dinheiro. Mesmo assim, parece que hoje se publicam mais livros de poesia do que jamais. E acontece que os poetas publicam também na Internet.

Quais os sinais positivos que você detecta na cultura nos dias de hoje?

Uma coisa que me parece muito positiva é o entrosamento cada vez maior entre o Brasil e Portugal; ou melhor, entre o Brasil e os demais países lusófonos. Por exemplo, cada vez se leem mais poetas portugueses, angolanos, moçambicanos etc. no Brasil e, por outro lado, poetas brasileiros em Portugal, Angola, Moçambique etc. Isso é enriquecedor para todos nós.