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6.5.14

João Ubaldo Ribeiro: "O negro e o macaco"


A seguir, reproduzo um excelente artigo que João Ubaldo Ribeiro publicou em sua coluna dominical de O Globo, no dia 4 do corrente mês:


O negro e o macaco

Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista


Uma das mais clamorosas — e para mim enervantes — manifestações do atraso da espécie humana é esse negócio de raça. A importância que damos à raça, a ponto de odiar-se, matar-se e morrer-se por causa dela, leva inevitavelmente ao lugar-comum: seria ridícula, se não fosse trágica. É difícil encontrar um assunto sobre o qual se digam tantas besteiras quanto este, sempre ignorando não só evidências antropológicas como dados da própria realidade cotidiana. E é também bastante difícil falar sobre ele ou debatê-lo. Muita gente perde o controle, espuma de raiva e afoga o debate em gritos e denúncias.

Começa pela ligação, que aqui sempre se faz, entre escravidão e raça. Falou em escravos, falou em negros. Mas a maior parte dos escravos na história da humanidade não era de negros, o que lá seja isto. A escravidão, para generalizar razoavelmente, era o destino dos vencidos de qualquer raça, que não fossem exterminados. Inclusive, é claro, pois do contrário é que não seriam humanos, os da raça negra vencidos por outros da mesma raça, caso dos escravos vendidos ao Brasil. É comum a noção de que “negro é negro”, como se as incontáveis etnias negras se considerassem iguais. Isso equivale a entender que um alemão é igual a um polonês, um sueco igual a um italiano ou um espanhol igual a um russo. Não pode haver disparate maior — e, se bem olhado, racista — do que achar que, num continente gigantesco e diversificado como a África, todos os negros são iguais e, mais bobamente ainda, irmãos. Irmãos em Cristo e, assim mesmo, se não forem muçulmanos. Vão perguntar se as minorias negras massacradas por nações também negras se consideram irmãs de seus algozes, ou estes daquelas. Ou aos escravos negros de outros negros, situação até hoje existente na África. Há até quem se escandalize com guerras e genocídios entre nações negras. Ué, e guerra de branco contra branco?

Desculpem se atropelo argumentos, mas é que o assunto me deixa nervoso também e me dá uma certa exasperação. Agora me ocorre interromper o que vinha dizendo para lembrar outra prática enervante: falar em cultura africana. Não existe, nem pode existir, uma cultura africana, em nenhum sentido. Aplica um reducionismo grotesco aquele que — e lembro outra vez o tamanho e a complexidade da África — acha que só existe uma cultura negra ou africana. De novo, é um argumento que, se bem olhado, pode ser considerado racista. Existe a cultura africana dos povos a que pertenciam os que foram trazidos para o Brasil como escravos, o que é muito diferente de dizer que ela é “a cultura africana”. Experimentem convidar um zulu para jantar e servir a ele comida ioruba, como na Bahia. Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista.

Aplicar padrões sociológicos americanos para o problema, no Brasil, é outra prática difícil de aturar. E faço a ressalva sempre exigida de que claro que no Brasil há racismo, patati-patatá. Mas a Bahia não é o Alabama. Já na década de 60, um casal, numa das Virgínias do Sul dos Estados Unidos, foi condenado a dois anos de prisão porque era inter-racial, ou seja, um dos dois era negro. As Forças Armadas só foram integradas na Guerra da Coreia e qualquer um que tenha vivido nos Estados Unidos sabe que lá é diferente e ou criamos nossas próprias categorias para examinar nossa realidade, ou prosseguiremos macaqueando até mesmo o racismo alheio.

Escrevi “macaqueando” aí em cima, sem de início lembrar a alusão a macacos em recentes incidentes de racismo no futebol. Mas ela vem a calhar, nesta salada que estou servindo hoje. É curioso como não paramos para pensar e notar que, quesito por quesito, algum racista negro teria razões para alegar que macaco é o branco e não o negro, o qual pode ser visto como muito mais distante do macaco que o branco. Se é verdade, não sei, nem isto tem importância alguma, mas pensem aqui num par de coisas. Imaginem, por exemplo, um ser inteligente de outro planeta, portanto não sujeito aos nossos condicionamentos, a quem incumbíssemos de esclarecer qual das duas raças é mais próxima do macaco. Para tanto, poríamos diante dele um branco nu, um negro nu e um chimpanzé, nosso primo próximo.

O primeiro impacto talvez fosse a cor e, de fato, o pelo do chimpanzé, assim como a pele do negro, é preto. Mas o bom observador não ia deixar-se levar por essa aparência. Façamos um exame cuidadoso e uma listazinha, junto com ele. O macaco é todo coberto de pelos, o corpo do negro é glabro, o branco pode ser o Tony Ramos; os pelos do macaco são lisos, os cabelos do branco também, os cabelos dos negros são crespos; raspado o pelo, a pele do macaco por baixo se revela branca e não preta; os lábios do macaco são finos, os do branco também, os dos negros são grossos; o macaco não tem bunda, o branco tem bunda chata, o negro tem bunda almofadada; até — perdão, senhoras — os renomados atributos masculinos dos negros são mais distantes do macaco, que é tipo piu-piu. Como se vê, basta escolher o que se quer levar em conta e, pelo menos neste exemplo perfeitamente plausível, o extraterrestre poderia concluir que o branco está bem mais perto do macaco que o negro.

Tudo bobagem, discussão que não leva a nada, somente ao ódio e à intolerância. Vamos parar de procurar modelos, ao menos nisto não sejamos tão colonizados, não permitamos que mais lixo contamine nosso pensamento. Os americanos é que têm obsessão por raça (lá nós, brasileiros, somos “hispânicos”), nós temos é a glória e o privilégio de ser o único país em que homens e mulheres de todas as raças se misturaram e misturam e onde a raça, Deus há de ser servido, ainda terá o lugar que merece, ou seja, nenhum.

30.7.08

Demétrio Magnoli: "Visita à 'terra dos negros'"

O seguinte artigo de Demétrio Magnoli foi publicado em O Estado de São Paulo, em 24 do corrente:


Visita à 'terra dos negros'


Milton Gonçalves encarna um personagem protagonista na novela do horário nobre da Rede Globo. É uma boa notícia para todos os que apreciam a arte do grande ator. Devia ser motivo de celebração pelos grupos do movimento negro que apontam, com razão, a persistência de uma regra racial oculta na seleção de elencos no Brasil. Mas eles não gostaram, pois o personagem de Milton Gonçalves é um político corrupto. O deputado estadual José Candido (PT-SP) acusou o ator de prestar um “desserviço” ao movimento negro, passando “uma má impressão do negro à população”. Se entendi direito, o corpo negro é imune à corrupção.

Numa entrevista a este jornal, o ator não se limitou a responder a Candido, mas ofereceu uma aula singela. Disse ele: “Algumas coisas mudaram na minha cabeça” depois de visitar a África: “Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro. Descobri que não sou africano, sou brasileiro.” São descobertas incompreensíveis para os que nos governam.

Uma lei de 2003 tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira e africana” nas escolas brasileiras. A determinação não se circunscreve a indicar uma temática, mas pretende orientar uma abordagem. Num parecer de março de 2004, destinado a esclarecer o espírito da lei, o Conselho Nacional de Educação afirma que o “fortalecimento de identidades e de direitos deve conduzir para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Segundo a palavra impressa do Estado brasileiro, a humanidade se divide em raças e as crianças devem aprender que uma ponte racial liga os negros do Brasil a uma pátria ancestral africana.

“Não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro.” O ator está dizendo que a sua identidade principal emana da esfera política e tem como referência o conceito de cidadania, não o de raça. Os brasileiros, de todos os tons de pele, formam uma nação única, alicerçada sobre o contrato da igualdade perante a lei. A identidade brasileira constitui nossa identidade pública. No espaço privado, segundo opções pessoais, podemo-nos definir como negros, brancos, mestiços, gays ou corintianos.

“Não sou africano, sou brasileiro”. A segunda descoberta esclarece a primeira - e esclarece muito mais. A África está no Brasil, de mil maneiras, e há inúmeros bons motivos para se falar mais da África na escola. O melhor foi explicado pela antropóloga Yvonne Maggie, no seu O Medo do Feitiço: Relações entre Magia e Poder no Brasil (RJ, Arquivo Nacional, 1992). Analisando a perseguição judicial contra as religiões mediúnicas, Maggie comprova a hipótese de que a crença na magia afeta pessoas de todas as cores e classes sociais no Brasil. Isso forma uma ponte essencial entre nós e a África. Mas essa ponte também conecta todos os brasileiros e faz de nossa mestiçagem algo mais profundo que o intercâmbio de genes. Mesmo assim, não somos africanos.

O Brasil é o Novo Mundo, a África é o Velho Mundo. No Brasil, o que vale não é a ancestralidade, mas a posição e a renda. Na esperança de inventar uma Europa tropical, o Império do Brasil distribuiu títulos nobiliárquicos, mas tais signos da diferença circulavam como mercadorias especiais no bazar dos privilégios simbólicos. Na África, como em tantos lugares da Europa, a linhagem de sangue define posições e regula relações. Atrás de uma fachada política de Repúblicas, as sociedades africanas continuam a girar à volta de constelações de reis tradicionais e líderes ancestrais. Sob certos sentidos, não é o brasileiro, mas o europeu que está mais em casa na África.

“Não sou africano.” Ninguém é africano. África, no singular, é uma declaração de ignorância. As crianças dizem que algum lugar está na África, como se o continente fosse um país. Os europeus inventaram uma África singular para designar a “terra dos selvagens” e, mais tarde, a “terra dos negros”. Os intelectuais negros dos EUA e do Caribe que formularam a doutrina do pan-africanismo beberam no conceito racial europeu para desenhar no céu dos seus sonhos a África singular. No início do século 21, o Brasil oficial ainda não aprendeu que existem Áfricas incontáveis e pretende usar o nome do continente como metáfora para ensinar uma fábula racial às crianças.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, prometeu apresentar em agosto um plano nacional para a implementação da lei de 2003. Leonor Franco de Araújo, coordenadora-geral de Diversidade do MEC, identificou dificuldades na aplicação da lei e as atribuiu ao fato de que os professores “não recebem essa formação durante a graduação”. Deixem-me contribuir com o esforço de Haddad e Leonor na formação dos professores, oferecendo-lhes duas pequenas citações. A primeira: “As raças, como as famílias, são organismos e ordenações de Deus; e o sentimento racial, tal como o sentimento familiar, é de origem divina. A extinção do sentimento racial é tão possível quanto a extinção do sentimento familiar. Na verdade, a raça é uma família.” A segunda: “A história do mundo é a história não de indivíduos, mas de grupos, não de nações, mas de raças.” Os autores, pela ordem, são Alexander Crummell (1819-1898) e W. E. B. Du Bois (1868-1963), americanos, negros, pais fundadores do pan-africanismo.

O diagnóstico de Leonor está correto, mas de um modo que ela não suspeita. Há muito a fazer no campo da formação de professores. Contudo, no caso, as dificuldades de aplicação da lei de ensino racial não derivam da ignorância teórica dos mestres, mas do seu saber prático, vivido e experimentado. Como Milton Gonçalves, os professores sentem-se brasileiros e aprenderam, bem antes da graduação, que existe “uma identidade humana universal”. Eles têm dificuldades em narrar a história segundo o paradigma racial. Eles resistem à diretiva de dividir a humanidade e seus alunos em raças. O MEC terá de se esforçar mais.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

11.8.07

Antonio Cicero: O segredo grego

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007:


O segredo grego

VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da cultura clássica ao publicar "Black Athena" ("Atena Negra"), em que defende que grande parte da cultura grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo. A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro -de menor importância, mas que justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas idéias sejam absolutamente novas. Elas correspondem, de acordo com ele, a uma revisão do que denomina o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do Egito. O "modelo antigo", comenta Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa época, ao se constituir a disciplina moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da influência egípcia e semítica sobre a Grécia. Segundo Bernal, isso se deu principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia, agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por africanos e asiáticos, que, para a nova 'ciência racial', haviam passado a ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão. Como poderia esta influenciar aquela? Lembro que foi, de fato, esse o modelo que aprendi nas aulas de história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo ariano. Entretanto, o seu próprio "modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus momentos mais extremos, afirma, por exemplo, que a cultura grega foi roubada da egípcia. Pois bem, longe de se dissociar de tais tolices, Bernal declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que está na moda, "apropriação", mas a palavra "roubo" não é inteiramente inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação não é eufemismo para roubo. Roubo é uma apropriação ilícita, em que o proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas, tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa originalidade não se deveu a "raça" nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão sem dúvida fundido a outras etnias no verdadeiro crisol étnico que era o Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito sem lei e irreverente" dos príncipes aqueus da idade heróica deve-se ao fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral, ao mesmo tempo que desprezavam as religiões dos povos conquistados, exatamente por serem religiões de povos conquistados. Pois foi mais ou menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega, abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres, tanto de qualquer Igreja quanto de qualquer Estado central.