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1.7.13

Drauzio Varella: "Gays e heterossexuais incuráveis"






O seguinte -- excelente -- artigo de Drauzio Varella foi publicado no domingo, 30 de junho, na "Ilustrada" da Folha de São Paulo.




Gays e heterossexuais incuráveis

Apesar dos anos vividos, ainda me surpreendo com a estupidez humana.

Os crentes dizem que Deus houve por bem limitar-nos a inteligência, para impedir que bisbilhotássemos seus domínios. Se assim agiu, pena não lhe ter ocorrido impor limites para a burrice dos seres que criou à sua imagem e semelhança.

Um grupo de deputados reunidos na Comissão de Direitos Humanos, presidida por um evangélico sem nenhuma aparência de homem fervoroso, aprovou o projeto conhecido como "cura gay", que assegura aos psicólogos o direito de aplicar métodos de tratamento destinados a transformar homo em heterossexuais, e de apregoar aos incautos a cura da homossexualidade, práticas condenadas pelo Conselho Federal de Psicologia e por todas as pessoas com um mínimo de discernimento.

Em todos os povos conhecidos, uma parcela de indivíduos em alguma fase da vida experimentou orgasmo por meio da estimulação dos genitais realizada por uma pessoa do mesmo sexo.

A incidência da homossexualidade varia de acordo com o grupo social. Um estudo clássico dos anos 1950 mostrou que em cerca de 60% das populações pesquisadas o comportamento homossexual é aceito sem restrições. Na África, entre os povos Siwan, e no sudoeste do Pacífico, entre os melanésios, virtualmente todos os homens praticaram sexo com outros homens em algum estágio da vida.

As 40% restantes vivem em países nos quais a homossexualidade é objeto de tabu social. As nações industrializadas se enquadram nesse grupo minoritário.

Embora os dados nem sempre confirmem com exatidão, a homossexualidade masculina parece ser duas a três vezes mais prevalente do que a feminina, em todas as sociedades até hoje avaliadas.

A maioria esmagadora dos indivíduos que experimentam orgasmos com pessoas do mesmo sexo são bissexuais. No Ocidente, homossexualidade pura, caracterizada pela ausência de práticas sexuais com o sexo oposto durante a vida inteira, ocorre em apenas 1% da população.

Comportamento homossexual tem sido descrito em répteis, pássaros e mamíferos, animais que na evolução divergiram há mais de 100 milhões de anos. Uma parte dos machos e fêmeas de todas as espécies de aves estudadas têm relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo. Em muitas ocasiões, essas práticas terminam em orgasmo de apenas um ou dois dos parceiros.

Nos mamíferos, a maioria das relações homossexuais entre as fêmeas acontece quando uma parceira monta sobre a outra, comportamento já documentado em pelo menos 70 espécies: ratos, hamsters, coelhos, martas, gado, carneiros, cavalos, antílopes, porcos, macacos, chimpanzés, bonobos, leões etc.

Há mais de um século e meio, Charles Darwin nos ensinou que uma caraterística presente em diversas espécies distintas indica que foi herdada de um ancestral comum, portador do mesmo traço. Podemos garantir que o ancestral que deu origem aos vertebrados tinha dois globos oculares, caraterística herdada por todos os animais com esqueleto.

O paralelismo é óbvio, prezadíssimo leitor: se o comportamento homossexual está documentado em animais tão distintos quanto répteis, aves e mamíferos, é porque a homossexualidade é mais antiga do que a humanidade.

Certamente, já existiam hominídeos homo e bissexuais 5 a 7 milhões de anos atrás, quando nossos ancestrais resolveram descer das árvores nas savanas da África. Está coberta de razão a sabedoria popular ao dizer que a homossexualidade é mais velha do que andar a pé.

Sempre houve e haverá mulheres e homens que desejam pessoas do mesmo sexo, porque essa é uma característica inerente à condição humana. Com persistência e determinação, eles podem controlar o comportamento sexual, mas o desejo não. O desejo é uma força da natureza mais íntima de cada um de nós; é água que corre montanha abaixo.

Os fatores genéticos e as interações sociais envolvidas no comportamento sexual são de tal complexidade que só a ignorância crassa é capaz de propor simplificações.

Eu, que sempre coloquei em dúvida a masculinidade daqueles excessivamente preocupados ou ofendidos com a homossexualidade alheia, gostaria de saber em que porta de botequim os nobres deputados ouviram falar que o homossexual é um doente à espera de tratamento psicológico.

5.12.10

Drauzio Varella: "Violência contra homossexuais"

O seguinte artigo de Drauzio Varella foi publicado na sua coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 4 de dezembro. Republico-o por considerá-lo um dos textos mais lúcidos e inteligentes que já li sobre o assunto.


Violência contra homossexuais

A HOMOSSEXUALIDADE é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.

Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência a mulheres e a homens homossexuais. Apesar de tal constatação, esse comportamento ainda é chamado de antinatural.

Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (leia-se Deus) criou os órgãos sexuais para a procriação; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).

Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?

Se a homossexualidade fosse apenas uma perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.

Em alguma fase da vida de virtualmente todas as espécies de pássaros, ocorrem interações homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.

Comportamento homossexual foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.

A homossexualidade entre primatas não humanos está fartamente documentada na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no "Journal of Animal Behaviour" um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre os machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.

Masturbação mútua e penetração anal estão no repertório sexual de todos os primatas já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.

Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas.

Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por mero capricho. Quer dizer, num belo dia, pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas, como sou sem-vergonha, prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.

Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.

A sexualidade não admite opções, simplesmente se impõe. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.

Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países o fazem com o racismo.

Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais que procurem no âmago das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal aceitam a alheia com respeito e naturalidade.

Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.

Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser nazistas a ponto de pretender impor sua vontade aos mais esclarecidos.

Afinal, caro leitor, a menos que suas noites sejam atormentadas por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu por 30 anos?