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14.8.12
"Por que escreve?"
Remexendo no meu computador, achei a resposta que, em janeiro de 2011, dei ao Marcos Lopes, professor do Departamento de Teoria Literária da UNICAMP, quando ele me fez a pergunta: "Por que escreve?". Hoje, por ocasião do lançamento do meu novo livro de poemas, Porventura, achei interessante publicá-la.
Marcos Lopes: Por que escreve?
Antonio Cicero: Evidentemente, a pergunta não diz respeito à razão pela qual escrevo coisas tais como e-mails, currículos, listas de compras etc. O que se quer saber é por que escrevo as coisas pelas quais sou considerado escritor, isto é, por que escrevo poemas e ensaios. Ora, escrevo poemas por umas razões e ensaios por outras.
Mas há, de fato, uma razão pela qual escrevo tanto poemas quanto ensaios: uma razão pela qual me tornei escritor. É que toda fala – inclusive a fala (o desenrolar) do pensamento – parece-me deficiente. É através da escrita que adquiro posse real do meu próprio pensamento. Assim, para mim, a fala, quando não tem um sentido meramente utilitário, é uma espécie de protorrascunho da escrita.
No que diz respeito à teoria, isso quer dizer que não se consegue ser suficientemente preciso a menos que se use a escrita para tornar as ideias claras e distintas, como queria Descartes. Só a escrita permite a revisão, a análise e a correção do discurso. A fala é o domínio privilegiado da falácia retórica. A escrita falaciosa é a que está impregnada de fala. Através da escrita e da reescritura tento captar e eliminar ao máximo as falácias: em primeiro lugar, as do meu próprio pensamento; em segundo lugar, as dos pensamentos alheios.
Quanto à poesia, considero um poema como uma obra de arte elaborada com palavras. Ora, é a escrita que permite a elaboração mais cuidadosa. Para produzir uma obra de arte elaborada com palavras é preciso – tendo em vista finalidades inteiramente diferentes das teóricas – rever, analisar e corrigir o seu esboço tantas vezes quantas se fizerem necessárias.
A fala – inclusive, como eu já disse, a do pensamento – constitui um protorrascunho. A partir desse protorrascunho, escreve-se o primeiro rascunho. É preciso passá-lo a limpo, isto é, retirar-lhe tudo o que não lhe pertence por direito, modificar o que deve ser modificado, adicionar o que falta, reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser. Nesse procedimento, vários rascunhos se sucedem. Sem a escrita isso seria impossível.
Mas talvez a pergunta seja: Por que escrevo poemas? A resposta se encontra guardada no meu poema Guardar. Seu final diz:
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se
declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
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Escritura,
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Retórica
5.4.09
Os vídeos poéticos de Carlos Nader
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 4 de abril.
Os vídeos poéticos de Carlos Nader
POR OCASIÃO da mostra, ainda em cartaz, "Carlos Nader: Ensaios Audiovisuais", cuja curadoria é de Bernardo Vorobow, participei, quarta-feira, de um debate com Carlos Adriano, Caetano Veloso e o próprio Carlos Nader. Conheço e admiro Carlos Nader e o seu trabalho há muito tempo, e já tive a honra de aparecer em dois dos seus vídeos, bem como no filme "Pan-Cinema Permanente". Por isso, cheguei à Cinemateca com algumas ideias sobre o que dizer durante o bate-papo. Entretanto, antes da mesa, assistimos aos vídeos "Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser", "Carlos Nader" e "Concepção".
No vídeo "Carlos Nader", do qual participo, digo algumas coisas sobre a questão da subjetividade, a respeito da qual ele me pedira que falasse. Exatamente por ter aparecido nesse vídeo, porém, eu não havia conseguido apreciá-lo serenamente na época em que ficou pronto, mais de dez anos atrás.
É que, no filme, minha fala é improvisada. Ora, minhas falas improvisadas são, para usar a expressão de Homero, "palavras aladas", não porque sejam excelsas, mas porque merecem rapidamente voar para o passado e serem esquecidas. Repletas de anacolutos, repetições e imprecisões, não passam de rascunhos do que um dia eu talvez escreva, ou de arremedos do que um dia já escrevi. Além disso, desconfio que eu também, como o poeta Henri Michaux, tornei-me escritor "para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim". Mas volta e meia um amigo me pede -por razões que me são absolutamente ininteligíveis- que faça uma ponta num filme seu e, como nesse caso, acabo cedendo.
O fato é que, não tendo conseguido ver direito o "Carlos Nader" dez anos atrás, na época do seu lançamento, vi-o quarta-feira passada como se o estivesse a ver pela primeira vez. Depois de tanto tempo, já sou quase outra pessoa. Pela primeira vez, apreciei-o como merece ser apreciado: como obra de arte. E ele, como os outros dois que passaram na mesma noite, é belíssimo.
Resultado: fiquei tão emocionado que, na mesa, esqueci o que havia pretendido dizer e falei apenas sobre o que tinha acabado de sentir. E o que me ocorreu foi que essas obras, que se apresentam como documentários, devem ser vistas -lidas- como poemas. Eles não se restringem a documentar pessoas e fatos, mas, através do estabelecimento de um certo modo de olhar e de uma certa sintaxe espaço-temporal produzida pela montagem, revelam-nos, à maneira de poemas verbais, um novo mundo, a sair do já conhecido. Caetano, a quem tampouco havia escapado a natureza poética desses vídeos, explicou brilhantemente de que modos concretos a sintaxe espaço-temporal a que me refiro é análoga a recursos da poesia verbal como ritmos, rimas etc.
"Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser" fala de um homem cuja patetice nunca me interessara muito. O vídeo, porém, não só mostra na figura patética desse homem uma complexidade maior e mais interessante do que imaginávamos, mas, através do páthos que nele descobre, solicita-nos a pensar mais profundamente sobre os aspectos cômicos e trágicos das relações entre a busca do reconhecimento, a fama e o anonimato no mundo em que vivemos.
Em "Concepção", repete-se de vez em quando, por escrito, um trocadilho com as palavras "estranho" e "entranho". Esse jogo verbal é visualmente traduzido por uma cena que consiste numa endoscopia do próprio Carlos Nader: e quanto mais nele nos entranhamos, mais nos distanciamos dele, que mais estranho nos parece. É claro que exibir o lado de dentro de alguma coisa é fazer dela algo da mesma ordem dos objetos que se encontram do lado de fora. Nesse sentido, a endoscopia transforma o interior em exterior. E estranhamos as entranhas assim exteriorizadas.
Por outro lado, entranhamos, por assim dizer, os estranhos, como o beijoqueiro, pois, ao mesmo tempo em que percebemos sua verdadeira estranheza, criamos alguma empatia com eles, quando nos são exibidos em todas as suas verdadeiras dimensões, inclusive profundidade ou interioridade.
O vídeo "Carlos Nader" me lembrou os versos de Fernando Pessoa que dizem: "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim". Logo no início, encarando a câmera, o diretor afirma que vai confessar um grande segredo. Quando começa a contá-lo, não se ouve o que diz. O segredo não pode ser dito em linguagem prosaica. O vídeo prossegue. O segredo está no mundo. O vídeo é a prova.
Os vídeos poéticos de Carlos Nader
POR OCASIÃO da mostra, ainda em cartaz, "Carlos Nader: Ensaios Audiovisuais", cuja curadoria é de Bernardo Vorobow, participei, quarta-feira, de um debate com Carlos Adriano, Caetano Veloso e o próprio Carlos Nader. Conheço e admiro Carlos Nader e o seu trabalho há muito tempo, e já tive a honra de aparecer em dois dos seus vídeos, bem como no filme "Pan-Cinema Permanente". Por isso, cheguei à Cinemateca com algumas ideias sobre o que dizer durante o bate-papo. Entretanto, antes da mesa, assistimos aos vídeos "Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser", "Carlos Nader" e "Concepção".
No vídeo "Carlos Nader", do qual participo, digo algumas coisas sobre a questão da subjetividade, a respeito da qual ele me pedira que falasse. Exatamente por ter aparecido nesse vídeo, porém, eu não havia conseguido apreciá-lo serenamente na época em que ficou pronto, mais de dez anos atrás.
É que, no filme, minha fala é improvisada. Ora, minhas falas improvisadas são, para usar a expressão de Homero, "palavras aladas", não porque sejam excelsas, mas porque merecem rapidamente voar para o passado e serem esquecidas. Repletas de anacolutos, repetições e imprecisões, não passam de rascunhos do que um dia eu talvez escreva, ou de arremedos do que um dia já escrevi. Além disso, desconfio que eu também, como o poeta Henri Michaux, tornei-me escritor "para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim". Mas volta e meia um amigo me pede -por razões que me são absolutamente ininteligíveis- que faça uma ponta num filme seu e, como nesse caso, acabo cedendo.
O fato é que, não tendo conseguido ver direito o "Carlos Nader" dez anos atrás, na época do seu lançamento, vi-o quarta-feira passada como se o estivesse a ver pela primeira vez. Depois de tanto tempo, já sou quase outra pessoa. Pela primeira vez, apreciei-o como merece ser apreciado: como obra de arte. E ele, como os outros dois que passaram na mesma noite, é belíssimo.
Resultado: fiquei tão emocionado que, na mesa, esqueci o que havia pretendido dizer e falei apenas sobre o que tinha acabado de sentir. E o que me ocorreu foi que essas obras, que se apresentam como documentários, devem ser vistas -lidas- como poemas. Eles não se restringem a documentar pessoas e fatos, mas, através do estabelecimento de um certo modo de olhar e de uma certa sintaxe espaço-temporal produzida pela montagem, revelam-nos, à maneira de poemas verbais, um novo mundo, a sair do já conhecido. Caetano, a quem tampouco havia escapado a natureza poética desses vídeos, explicou brilhantemente de que modos concretos a sintaxe espaço-temporal a que me refiro é análoga a recursos da poesia verbal como ritmos, rimas etc.
"Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser" fala de um homem cuja patetice nunca me interessara muito. O vídeo, porém, não só mostra na figura patética desse homem uma complexidade maior e mais interessante do que imaginávamos, mas, através do páthos que nele descobre, solicita-nos a pensar mais profundamente sobre os aspectos cômicos e trágicos das relações entre a busca do reconhecimento, a fama e o anonimato no mundo em que vivemos.
Em "Concepção", repete-se de vez em quando, por escrito, um trocadilho com as palavras "estranho" e "entranho". Esse jogo verbal é visualmente traduzido por uma cena que consiste numa endoscopia do próprio Carlos Nader: e quanto mais nele nos entranhamos, mais nos distanciamos dele, que mais estranho nos parece. É claro que exibir o lado de dentro de alguma coisa é fazer dela algo da mesma ordem dos objetos que se encontram do lado de fora. Nesse sentido, a endoscopia transforma o interior em exterior. E estranhamos as entranhas assim exteriorizadas.
Por outro lado, entranhamos, por assim dizer, os estranhos, como o beijoqueiro, pois, ao mesmo tempo em que percebemos sua verdadeira estranheza, criamos alguma empatia com eles, quando nos são exibidos em todas as suas verdadeiras dimensões, inclusive profundidade ou interioridade.
O vídeo "Carlos Nader" me lembrou os versos de Fernando Pessoa que dizem: "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim". Logo no início, encarando a câmera, o diretor afirma que vai confessar um grande segredo. Quando começa a contá-lo, não se ouve o que diz. O segredo não pode ser dito em linguagem prosaica. O vídeo prossegue. O segredo está no mundo. O vídeo é a prova.
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