30.11.09

Philip Larkin: "This be the poem" / "Este seja o poema": tradução de Nelson Ascher




Este seja o poema


Teu pai e mãe fodem contigo.
Que não o queiram, tanto faz.
Legam-te cada podre antigo,
além de uns novos, especiais.

Mas de cartola e fraque, outrora,
fodera-os já do mesmo modo,
gente ora austero-piegas,
ora se engalfinhando cega de ódio.

Passa-se a dor adiante: fossas
num mar que só fica mais fundo.
Dá o fora, pois, tão logo possas
sem pôr nenhum filho no mundo.




This be the verse


They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
And half at one another's throats.

Man hands on misery to man.
It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
And don't have any kids yourself.


29.11.09

Sobre a lei contra a homofobia

O seguinte artigo foi publicado sábado, 28 de novembro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:


Sobre a lei contra a homofobia


ENCONTRA-SE em tramitação no Senado Federal o projeto de lei (PLC 122/ 2006) que pune a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão. A aprovação dessa lei representará sem dúvida um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado.

Por que digo "civilizado"? Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás. Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade -ou até da humanidade- qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.

Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.

Pois bem, o fato de que uma pessoa manifeste determinada orientação sexual não impede que outras pessoas manifestem outras orientações sexuais ou que exerçam qualquer outro direito legítimo. Consequentemente, trata-se de um direito inquestionável. Ora, a lei em questão tem o sentido de garantir a cada qual o exercício pleno desse direito. Ela visa garantir que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa não a sujeite -como tão frequentemente ocorre hoje- a sofrer discriminação, agressão verbal, humilhação, violência física ou mesmo assassinato, enquanto seus agressores gozem de impunidade. Nisso reside seu sentido civilizatório.

É claro que a barbárie, na forma, por exemplo, do fanatismo de zelotes ou fundamentalistas religiosos, não deixa de apelar a todo tipo de sofisma para tentar desclassificar esse projeto de lei.

Semelhante sofisma é, por exemplo, a tese de que o sexo não reprodutivo contraria uma pretensa lei natural. Já falei sobre tal "lei" noutro artigo, mas não posso deixar de me repetir neste ponto. É um erro confundir as leis da natureza, que são descritivas, isto é, dizem o que realmente acontece, com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.

De todo modo, tanto a física contemporânea quanto a lei da evolução das espécies já mostraram que a natureza está em constante mutação. O ser humano mesmo talvez seja a mais radical dessas mutações, de modo que não apenas a espécie humana mas cada indivíduo humano é quase infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Substituindo o instinto pela experimentação, o ser humano já há muito foi capaz de separar radicalmente sexo de reprodução. Diante de tudo isso, a invocação de uma "lei natural" para tentar tolher o seu comportamento é simplesmente ridícula.

Finalmente, é falso que a lei em questão restringiria a liberdade de expressão simplesmente porque proibiria praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero. Afinal, a lei 7.716, no seu artigo 20º, já faz exatamente isso em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, e não é considerada prejudicial à liberdade de expressão.

Esperemos que o Senado Federal, rejeitando o fanatismo e a barbárie, escolha para o Brasil o caminho da razão e da civilização.

28.11.09

Armando Freitas Filho: "Por esta fresta te espreito"


FREITAS FILHO, Armando. Mademoiselle Furta-Cor. Oito poemas eróticos ilustrados por Rubens Gerchman. Florianópolis: Noa Noa, 1977.

27.11.09

Caetano Veloso: trecho de entrevista

A julgar pelo ódio que se manifestou em alguns dos comentários (que não publiquei por considerá-los ofensivos) ao artigo do Ferreria Gullar que eu aqui postara na segunda-feira, Caetano Veloso tem razão no seguinte trecho da entrevista que deu a O Globo na quinta-feira, 26:


As críticas não o incomodam?

CAETANO: Eu não me incomodo, por exemplo, que esteja todo mundo me xingando porque eu disse que Lula fala como um analfabeto, como se fosse uma novidade. Não me incomodo que um monte de gente esteja me xingando, porque eu não quero a aprovação de todo mundo. Eu acho que querer a aprovação de todo mundo é péssimo. Isso é um problema. Eu acho ruim, no Brasil hoje, ninguém poder dizer nenhuma palavra que pareça ser antipática, crítica ou hostil a Lula. Por que não pode? É muito ruim, isso. Isso é um projeto que aconteceu na União Soviética, com Stálin, na China, com Mao Tsé-Tung, acontece ainda em Cuba, com Fidel. Não se pode dizer, só se pode adular o líder. Isso para mim é o que há de pior. Nesse ponto, eu nem me incomodo de o jornal ter distorcido o que eu disse, botando, na primeira página, como se eu tivesse querido agredir o Lula e compará-lo com Marina. Eu estava comparando Marina com Lula e com Obama. Como Lula, ela é de origem humilde etc; como Obama - e diferentemente de Lula -, ela escreve bem, fala bem. Lula, de fato, usa metáforas cafonas, linguagem grosseira e erra a gramática do português, a norma culta. Todo mundo sabe que é assim. Os linguistas aplaudem, o povo acha bom, eu também acho bom, eu votei em Lula chorando, para se eleger - não para se reeleger. Eu chorei dentro da cabine. Chorei de emoção. Pode ser que eu chore quando vir esse filme, porque eu chorei vendo "2 filhos de Francisco" e possivelmente chorarei vendo "Lula, o filho do Brasil". Mas talvez não chore tanto quanto chorei no dia em que votei em Lula para presidente.

26.11.09

Camilo Pessanha: "Inscrição"




Inscrição

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...



PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Estabelecimento de texto, introdução e notas por Paulo Franchetti. Lisboa: Relógio d'Água, 1995.

24.11.09

Rainer Maria Rilke: "Herbsttag" / Tradução de Nelson Ascher: "Dia de outono"




Sou grato a Nelson Ascher por me ter autorizado a postar aqui a sua belíssima tradução inédita da obra-prima de Rilke, "Herbsttag":



Dia de outono


Senhor, foi um verão imenso: é hora.
Estende as tuas sombras nos relógios
de sol e solta os ventos prado afora.

Instiga a sazonarem, com dois dias
a mais de sul, as frutas que, tardias,
conduzes rumo à plenitude, e apura,
no vinho denso, a última doçura.

Quem não tem lar já não terá; quem mora
sozinho há de velar e ler sozinho,
escrever longas cartas e, a caminho
de nada, há de trilhar ruas agora,
enquanto as folhas caem em torvelinho



Herbsttag


Herr: es ist Zeit. Der Sommer war sehr groß.
Leg deinen Schatten auf die Sonnenuhren,
und auf den Fluren laß die Winde los.

Befiel den letzten Früchten voll zu sein;
gib ihnen noch zwei südlichere Tage,
dränge sie zur Vollendung hin und jage
die letzte Süße in den schweren Wein.

Wer jetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr.
Wer jetzt allein ist, wird es lange bleiben,
wird wachen, lesen, lange Briefe schreiben
und wird in den Alleen hin und her
unruhig wandern, wenn die Blätter treiben.

22.11.09

Carlos Alberto Machado: "Achei no lixo..."





Achei no lixo um velho caderno de significados
sem nome e com todas as páginas em branco
ando agora a preenchê-lo com as minhas dúvidas
por exemplo dor alegria distracção partilha dádiva
ou com respostas para as perguntas ainda por fazer
por exemplo dor alegria distracção partilha dádiva
logo que esteja completamente preenchido devolvo-o
ao lixo de onde o trouxe com pena de quem o encontrar
velho e usado e com todas as páginas em branco.



MACHADO, Carlos Alberto. Talismã. Lisboa: A&A, 2004.

19.11.09

Jorge Luis Borges: "Los justos"




Los justos

Un hombre que cultiva su jardín, como quería Voltaire.
El que agradece que en la tierra haya música.
El que descubre con placer una etimología.
Dos empleados que en un café del Sur juegan un silencioso ajedrez.
El ceramista que premedita un color y una forma.
El tipógrafo que compone bien esta página, que tal vez no le agrada.
Una mujer y un hombre que leen los tercetos finales de cierto canto.
El que acaricia a un animal dormido.
El que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho.
El que agradece que en la tierra haya Stevenson.
El que prefiere que los otros tengan razón.
Esas personas, que se ignoran, están salvando el mundo.


Os justos

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.



BORGES, Jorge Luís. "La cifra". Obras completas II. Buenos Aires: Emecé, 1989.

18.11.09

Ferreira Gullar: "Retrocesso à vista"

Recomendo ao leitor que, pondo de lado os seus eventuais preconceitos, reflita sobriamente sobre o importante artigo de Ferreira Gullar abaixo reproduzido, que foi originalmente publicado domingo, 15 de novembro, na "Ilustrada", da Folha de São Paulo:



Retrocesso à vista


O FIM DA utopia marxista, que apostava na derrota do capitalismo, deu lugar, na América Latina, ao neopopulismo que, fazendo-se passar por socialista, explora, em vez da contradição classe operária versus burguesia, a oposição entre pobres e ricos. Se, no caso anterior, os sindicatos funcionavam como instrumento de organização e mobilização do operariado para a tomada revolucionária do poder, agora constituem uma burocracia de neopelegos, que passaram a ocupar posições estratégicas no aparelho de Estado e na máquina política.

Assim, pressionam o governo e os patrões para que façam pequenas concessões aos trabalhadores, com a condição de mantê-los quietos, enquanto eles, os neopelegos, enriquecem a se fortalecem politicamente. A ascensão de Lula à Presidência da República foi resultado desse jogo e, ao mesmo tempo, um salto qualitativo para a elite sindicalista.

As consequências disso para a democracia brasileira podem ser as mais desastrosas, como procurou mostrar Fernando Henrique Cardoso, num artigo recente, intitulado "Para onde vamos?"

O neopopulismo nada tem de revolucionário, como alardeia Hugo Chávez, travestido de líder esquerdista, mas que, na verdade, se apoia no voto do venezuelano pobre. Sustentado pelos vultosos rendimentos do petróleo, mantém programas sociais assistencialistas, que lhe garantem vasta popularidade.

Aparece, diante do povão desinformado, como seu providencial protetor, que o defende de um lobo mau chamado Estados Unidos. Seu verdadeiro projeto é manter-se indefinidamente no poder e, para consegui-lo, fez o Congresso aprovar a reeleição ilimitada.

Lula tentou seguir o mesmo caminho, mas teve sua pretensão rejeitada numa pesquisa de opinião. Precavido, mudou de tática e terminou adotando a candidatura de Dilma como a solução possível.

Invenção sua, se eleita, ela terá que fazer dele seu sucessor em 2014, e, assim, caso isso ocorra, teríamos mais oito anos de Lula na Presidência da República, o que somaria, no total, 20 anos de lulismo. Ou mais, muito mais, porque pode não parar aí, já que, àquela altura, as bases do neopeleguismo e do neopopulismo estariam amplamente assentadas em todo o país.

A ameaça é que, se já agora ele se rebela contra a ação fiscalizadora do Tribunal de Contas da União e pretende calar a imprensa, ou seja, não admite que ninguém critique ou cerceie suas decisões de governo, imaginem o que não fará durante tantos anos no poder.

A história tanto anda para frente como pode andar para trás. O propósito de, chegado ao poder, não sair mais, faz parte da ideologia petista, como deixou claro José Dirceu, em visita a Madri, logo após a posse de Lula, em 2003, ao afirmar que o projeto deles era ficar 20 anos no poder. Sim, porque, ao contrário dos outros partidos "burgueses", o partido dito revolucionário vem para salvar o povo e mudar o rumo da história. Logo, não pode se submeter às regras democráticas da alternância no poder. Se é verdade que, a esta altura, o petismo já abriu mão do revolucionarismo, não admite perder as posições conquistadas.

Lula, muito esperto, logo compreendeu que o Brasil não é a Venezuela. Sabe que, embora tenha maioria no Congresso, este jamais lhe concederia um terceiro mandato e muito menos a possibilidade de reeleição ilimitada. Por isso, adotou a tática de conseguir um mandato tampão para Dilma, enquanto, às carreiras, procura implantar o PAC e aparecer, diante da nação, como um presidente empreendedor, que visa elevar o país à condição de grande potência. Assim age Chávez e assim agiu nossa ditadura militar.

A fórmula é sempre aquela: inimigo dos poderosos e amigo dos pobres, defensor dos negros e mulatos, inimigo dos brancos de olhos azuis. Isso transparece, a todo momento, em suas declarações e discursos. Não faz muito tempo, falando aos catadores de lixo, criticou os ricos que, deliberadamente, sujam a cidade para que os lixeiros, humilhados por eles, a limpem.

É um presidente da República que, sem qualquer escrúpulo, faz questão de instigar ressentimentos e conflitos entre os cidadãos, jogar uns contra os outros. Isso no discurso, porque, de fato, usa a máquina do Estado para favorecer grandes empresas nacionais e estrangeiras.

O artigo de Fernando Henrique Cardoso chamou atenção para o perigo que o país corre. Em vez de desautorizá-lo, os formadores de opinião deveriam preocupar-se com o interesse maior da sociedade. É de se esperar, também, que Serra e Aécio assumam a responsabilidade que lhes cabe.

17.11.09

Weydson Barros Leal: "A praia"




A praia


Naquele tempo, o amor era um rio vertical
quando o corpo o bebia como uma boca marinha.
Os relógios não sabiam que suas espadas
contavam os mortos de cada farol, de cada
promessa, e que o tempo era só essa miragem -
a sede adiada da verdade. Ela perguntava:
"Você me ama ainda?", e tudo tremia
como um mapa de areia num barco de sal,
como um fogo esquecido na gruta do mar.
Às vezes, dizia: "Você nunca amou ninguém,
não sabe que o amor é uma coisa viva..."
Mas não via que o amor era o naufrágio
que alcançara a mesma praia
onde agora explodia a tempestade.



LEAL, Weydson Barros. A quarta cruz. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.

16.11.09

Lei contra a homofobia

Reproduzo abaixo uma mensagem que recebi por e-mail e que considero importante. Sugiro aos visitantes deste blog que votem contra a homofobia, e que copiem a mensagem abaixo e a distribuam por e-mails aos seus conhecidos.


O site do senado lançou uma enquete sobre o projeto de Lei que pune a homofobia como crime e estamos PERDENDO.

É decepcionante chegar lá e ver que os que votam contra a lei estão ganhando nesse momento com gritantes 53%.

Se todo simpatizante contra a homofobia fizer sua parte, temos como vencer esta pequena batalha.

Esta é uma forma de mostrar aos políticos como a aprovação desta lei é importante. Convoque todas as amigos, todos os parentes, todo mundo que você sabe que tem um mínimo de consciência, o mínimo de compaixão, o mínimo de bom senso e peça para votarem o máximo que puderem.

Acesse agora o site do Senado clicando aqui:

http://www.senado.gov.br/agencia/default.aspx?mob=0

Desça a página e procure no lado direito pela opção: Enquete e VOTE EM SIM, que significa que você é a favor da aprovação da lei.

Não podemos deixar a homofobia vencer mais esta!

Vote, divulgue e LUTE, porque isso sim é um verdadeiro problema SEU e de todos nós.

Parece pequeno, mas é a ponta de um grande ICEBERG!

Cabe a nós reverter esse resultado.

15.11.09

A tuberculose do faraó




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 14 de novembro de 2009:


A tuberculose do faraó


POR OCASIÃO da morte de Lévi-Strauss, o antropólogo francês Philippe Descola, interrogado sobre "quem seriam os gênios de hoje", citou, em primeiro lugar, Bruno Latour. Mal pude crer que estava lendo aquilo. A primeira coisa que me vem à mente, sempre que leio ou ouço o nome de Latour, é o título do excelente livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais".

E, embora ele tenha merecido todo um capítulo nessa obra, esse título me vem à cabeça por outra razão: é que, anos atrás, caiu-me nas mãos um exemplar de um dos mais ridículos livros que já li: o "Jamais Fomos Modernos (Ensaio de Antropologia Simétrica)", de Latour, do qual me poupo -e ao leitor- de falar.

Estaria Descola sendo sarcástico? Não. Ele pretendia estar sério. Isso me pareceu lamentável, tratando-se do diretor do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France. Entretanto, lembrei-me de duas teses de Latour que, de tão grotescas, chegam até a ser engraçadas. Uma é sobre os dinossauros; a outra, sobre Ramsés 2º. O leitor talvez já as conheça, pois não são novas. Mas, na dúvida, vou contar ao menos a que fala de Ramsés 2º.

Antes, observo que Latour é frequentemente classificado de "construtivista -ou melhor, construcionista- social". Isso não é surpreendente, já que seu livro "Vida de Laboratório", de 1979, escrito em parceria com o sociólogo inglês Steve Woolgar, tem como subtítulo "A Construção Social dos Fatos Científicos". Em 1986, porém, o subtítulo foi removido e Latour passou a recusar essa classificação.

Contudo, sua recusa diz mais respeito ao adjetivo "social" do que ao substantivo "construção", pois ele continua acreditando que os fatos científicos são construídos. Para o idealista Latour, em última análise, a natureza e a realidade são aquilo que cientistas decidem que sejam, e não algo que preexista à investigação científica.

Mas vamos à história. Em 1976, a múmia de Ramsés 2º, acometida por fungos e mofo, foi enviada à França para ser tratada. As fotos de sua chegada foram publicadas pela revista "Paris-Match", com a legenda: "Nossos cientistas socorrem Ramsés 2º, que adoeceu 3.000 anos após sua morte".

Ao ler essa legenda, Latour precipitadamente pensou que ela se referia a outro fato: o de que os cientistas, tendo examinado os restos mortais do faraó, haviam anunciado a descoberta de que ele morrera de tuberculose. "Profundo filósofo", escreveu então, "aquele que redigiu essa legenda admirável". Por que "profundo filósofo"?

Porque, ao contrário dos seres humanos que se guiam pelo bom senso, o autor dessa legenda teria "compreendido" que Ramsés 2º não poderia, no ano 1213 a.C., ter morrido de um bacilo que foi descoberto por Robert Koch somente em 1882...

Para o bom senso "grosseiro", é claro que o bacilo já existia muitíssimo antes de Koch o descobrir. Já para o "sutil" Latour, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real. [...] Os pesquisadores não se contentam com "des-cobrir': eles produzem, fabricam, constroem". Assim, o bacilo da tuberculose foi "construído" na época moderna.

Mas, então, como é que ele pode ter causado a morte do faraó, em 1213 a.C.? "Afirmar, sem outras formalidades, que o faraó morreu de tuberculose", diz Latour, "significa cometer o pecado cardeal do historiador, o do anacronismo". Se fosse assim, seria anacronismo afirmar, "sem outras formalidades", que a lei da relatividade tivesse vigência antes de Einstein a demonstrar; ou que a lei da evolução das espécies vigorasse antes de ser enunciada por Darwin.

E quais são as "outras formalidades"? Suponho que consistam em fazer a ressalva de que, para nós, que vivemos depois de 1976, o faraó morreu de tuberculose, mas não para quem viveu antes de 1976. Ora, se isso quer dizer simplesmente que antes de 1976 não sabíamos que o faraó em 1213 a.C. morreu de tuberculose, então é uma verdade: mas não passa precisamente da verdade trivial que o bom senso já conhecia, de modo que, nesse caso, Latour nada diz de novo.

Se, por outro lado, quer dizer que, antes de 1976, o faraó, em 1213 a.C., não morrera de tuberculose, então é um disparate: é "nonsense", e é sem dúvida o que ele pensa, ao afirmar que, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real".

Mas devemos reconhecer ao menos um mérito ao artigo de Latour sobre Ramsés 2º: ele inadvertidamente efetua uma redução ao absurdo não só das suas próprias teses mas de todo o construcionismo contemporâneo.

14.11.09

Blaise Pascal: da 16ª carta provincial

Pascal escreveu, ao final de sua 16ª Carta provincial:


Je n'ai fait celle-ci plus longue que parce que je n'ai pas eu le loisir de la faire plus courte.


Fiz esta mais longa somente porque não tive o lazer para fazê-la mais curta.



PASCAL, Blaise. Les lettres provinciales. Seizième lettre. Paris: Armand Colin, 1962.

12.11.09

Gastão Cruz: "Palavras"




Palavras


Palavras não existem
fora da nossa voz as
palavras não assistem
palavras somos nós



CRUZ, Gastão. "A doença". Os poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

11.11.09

Blog do Nonato Gurgel




Hoje, visitando o excelente blog do meu amigo Nonato Gurgel, que é professor de literatura na UFRRJ, tive a grata surpresa de ver publicada uma entrevista que ele fez comigo alguns anos atrás, precedida de uma generosa introdução.

Mas não recomendo o blog do Nonato apenas pela entrevista. Há muita coisa boa por lá. O blog se chama "Arquivo de Formas". O endereço é: http://arquivodeformas.blogspot.com/

8.11.09

A questão dos valores




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 31 de outubro (sábado). Normalmente, eu o teria postado aqui no dia 1º de novembro, mas simplesmente me esqueci. Agradecendo a Flávio por me ter chamado atenção para esse esquecimento, posto-o hoje.



A questão dos valores


FALANDO DE obras literárias, a influente crítica norte-americana Barbara Herrnstein Smith afirma que "o valor de uma entidade para um sujeito individual, assim como o seu preço no mercado, é também o produto da dinâmica de um sistema econômico, especificamente da economia pessoal constituída pelas necessidades, pelos interesses e recursos – biológicos, psicológicos, materiais e empíricos – do sujeito".

Se fosse assim, dado que as necessidades, os interesses e os recursos dos indivíduos são bastante diversos, seria inadmissível afirmar simplesmente que uma obra fosse melhor e mais memorável do que outra. "Melhor e mais memorável para quem?", Herrnstein Smith perguntaria. "Com que direito considerar o poema "Os Lusíadas", digamos, melhor ou mais memorável que a canção "A Eguinha Pocotó", quando muita gente prefere esta?"

À pergunta sobre se não há juízos mais valiosos do que outros, ela responderia que também o valor do juízo ou da opinião de uma pessoa varia com as necessidades, os interesses e os recursos de cada uma das pessoas que o avaliam. "O valor -o "ser boa" ou "ser ruim'- de uma avaliação", diz ela, "como de qualquer outra coisa (inclusive qualquer outro tipo de enunciado), é ele próprio contingente, logo, não é uma questão de seu "valor-verdade" abstrato, mas da eficácia com que desempenha várias funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com ele".

Aparentemente, Herrnstein Smith nem sequer se dá conta de que, ao dizer tais coisas, incorre em paradoxos que solapam suas próprias teses. Com efeito, aplicando-se o que ela diz a suas teses, deve-se dizer que elas não podem ter um valor-verdade "abstrato", isto é, não podem ser simplesmente verdadeiras. No máximo, têm alguma eficácia no desempenho de algumas funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com elas.

O mais estranho é que essa atitude de desprezo em relação à verdade e a qualquer valor – atitude que poderia ao menos ter o efeito benigno de conduzi-la à humildade que lhe conviria – súbito converte-se, ao contrário, em petulância pseudocientificista e pseudodesmistificadora, às vezes bem grosseira.

Tentando, por exemplo, atacar a tese do caráter desinteressado do juízo estético, Herrnstein Smith afirma que "uma contabilidade estrita de qualquer uma dessas atividades aparentemente gratuitas levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua utilidade biológica e/ou ao seu valor para a sobrevivência (e sem dúvida a algo muito parecido com "necessidades animais'). [...] Fazê-lo aparentemente produz um lucro a longo prazo, em termos de desenvolvimento cognitivo, flexibilidade comportamental e, portanto, preparo biológico, e nossa tendência geral a praticá-las é, muito provavelmente, produto de mecanismos evolutivos".

Ou seja, embora seus argumentos constituam uma malsucedida tentativa de solapar a possibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro, Herrnstein Smith aceita piamente as teses vulgares do determinismo biologista mais rasteiro e questionável, apto a fazer qualquer marxista sério morrer de vergonha, e as toma por aríetes capazes de demolir a "Crítica do Juízo".

Pergunto-me que pertinaz preconceito positivista leva hoje tantos professores de literatura a preferir sempre dar a razão às mais rasas das "ciências cognitivas", psicologias, sociologias ou antropologias, contra a filosofia.

Ao leitor que -para falar como a própria Barbara Herrnstein Smith- queira investigar quais são os interesses capazes de conduzir alguém a pensar como ela, recomendo a leitura de Arthur Schopenhauer, que explica, por exemplo, que a obra de arte "só fala a cada um segundo a medida de seu próprio valor intelectual; razão pela qual precisamente as obras mais excelentes de cada arte, as produções mais nobres do gênio devem permanecer um livro eternamente fechado à estúpida maioria dos seres humanos, inacessíveis a eles, deles separadas por um largo abismo. [...] É verdade que mesmo os mais tolos deixam as grandes obras valerem por confiarem na autoridade, para não trair a sua própria fraqueza: porém por dentro estão sempre prontos a exprimir o seu juízo condenatório, desde que lhes seja permitido esperar que podem fazê-lo sem se desmascarar: e então descarregam com deleite seu ódio há muito represado contra tudo o que é grande e belo e que, jamais lhes tendo dito coisa alguma, por isso mesmo humilhou-os, e contra os seus realizadores".

7.11.09

Paulo Leminski: "Amor bastante"





AMOR BASTANTE

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você
caminhando junto



LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.

3.11.09

Paul Eluard: "À peine défigurée"

Apenas desfigurada

Adeus tristeza
Bom dia tristeza
Estás inscrita nas linhas do teto
Estás inscrita nos olhos que amo
Não chegas a ser a miséria
Pois os lábios mais pobres te denunciam
Por um sorriso

Bom dia tristeza
Amor dos corpos amáveis
Potência do amor
Cuja amabilidade surge
Como um monstro sem corpo
Cabeça desapontada
tristeza belo rosto



À peine défiguré

Adieu tristesse
Bonjour tristesse
Tu es inscrite dans les lignes du plafond
Tu es inscrite dans les yeux que j'aime
Tu n'es pas tout à fait la misère
Car les lèvres les plus pauvres te dénoncent
Par un sourire

Bonjour tristesse
Amour des corps aimables
Puissance de l'amour
Dont l'amabilité surgit
Comme un monstre sans corps
Tête désappointée
Tristesse beau visage.



ÉLUARD, Paul. La vie immédiate. Paris: Gallimard, 1981.