29.10.13

28.10.13

Carlos Pena Filho: "As dádivas do amante"






As dádivas do amante


Deu-lhe a mais limpa manhã
que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
e mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
deu-lhe o verde da ramagem,
deu-lhe o sol do meio dia
e uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
e a que ainda estava por vir,
deu-lhe a bruma dissipada
que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
em que uma rosa floriu
nascida do próprio vento;
ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
e um amanhecer violento
que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
e mais não podia dar.




PENA FILHO, Carlos. Livro geral -- poemas. Org. e seleção de textos por Tânia Carneiro Leão. Recife: Liceu, 2004.

26.10.13

Adriano Nunes: "O espantalho"




Obrigado, Adriano, pelo belo poema que me dedicou.
                                                                              A.C.




O espantalho

                                    para Antonio Cicero

Não mais tenho os meus 
Artelhos de palha
Velha, nem a mente
A voar co' os corvos.

Quase a chuva e sol 
Cegaram-me. Uns pelos,
Do espelho de orvalho,
Vão-se, longe, sinto-os,

De mim, como folhas
Que levar se deixam,
Além, espalhando-me.
Sou esta fagulha

Que aos poucos se esvai, 
Tralha sobre tralha,
Trapo sobre trapo...
Perdi-me, entre agulhas, 

As pilhas de milhos,
As ilhas de emendas,
As trilhas das traças
E o que partilhei

Com todos,  meu ser
De pano e propósito,
O espantalho à espera
Da grã primavera.

Abro bem os braços
E em mim embaralho-me.
Um dia terei
Cabelos grisalhos?

Espanto-me. Encanto-me.
Em um salto mágico,
Todo o cosmo varro, e a
Dizer que me adora


Ouço o vento agora.





24.10.13

Carlos de Oliveira: "O viandante"






O viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.



OLIVEIRA, Carlos de. Mãe pobre. Coimbra: Coimbra Editora, 1945.

21.10.13

Gustavo Binenbojm: "Falso dilema"




Creio que o melhor artigo que li sobre a questão das biografias foi o seguinte, do professor Gustavo Binenbojm, publicado ontem em O Globo:




Falso dilema
Gustavo Binenbojm
(de O Globo - 20/10/2013)

O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de  obras biográficas sem o consentimento dos personagens biografados  tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada.

O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim. Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade. Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.

Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós. Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias:

( 1) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras;

(II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.

Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento. Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.

Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!”. O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo. É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.

A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.



Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade de  Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  e advogado da Associação Nacional dos Editores de  Livros

18.10.13

Hans Peter Keller: "Komm gehn wir" / "Vem vamos": trad. Antonio Cicero





Vem vamos

Eu
perdi o fio
tu perdeste o fio
o fato é que nós perdemos
o fio

vem
deixemos o fio não passar de um fio
vem isso será nosso
fio condutor
vamos.



Komm gehn wir

Ich habe
den Faden verloren
du hast den Faden verloren
nun haben wir also den Faden
verloren

Komm wir
lassen den Faden Faden sein
kom das wird unser
Leitfaden sein
gehn wir.




KELLER, Hans Peter. Stichwörter, Flickwörter. Wisbaden: Limes Verlag, 1969.



16.10.13

Alberto da Costa e Silva: "Hoje: gaiola sem paisagem"





Hoje: gaiola sem paisagem

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos
enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas, por exemplo.




COSTA E SILVA, Alberto da. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

13.10.13

Vinícius de Moraes: "O mosquito"






O mosquito

Parece mentira
De tão esquisito:
Mas sobre o papel
O feio mosquito
Fez sombra de lira!



MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Org. de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

10.10.13

Rose Ausländer: "Erfahrung" / "Experiência": trad. Antonio Cicero





Experiência

Colher experiência
em florestas montanhas
cidades

Nos olhos
das pessoas

Em conversas
no silêncio




Erfahrung

Erfahrung sammeln
in Wäldern Bergen
Städten

In den Augen
der Menschen

In Gesprächen
im Schweigen




AUSLÄNDER, Rose. Poèmes. Baillé: URSA, 1988.

6.10.13

Rainer Maria Rilke: "Sonette an Orpheus (I.19)" / "Sonetos a Orfeu (II.19)": trad. Augusto de Campos






I.19

Mesmo que o mundo mude com rapidez,
como nuvens em movimento,
tudo volta outra vez
ao primeiro momento.

Sobre as mudanças, quanto
mais livre ainda se estira
e dura o teu pré-canto,
deus com a lira!

Não se compreende a dor,
não se aprende o amor,
e ao que na morte nos desterra

a mente é muda.
Só o canto sobre a terra
salva e saúda.




I.19

Wandelt sich rasch auch die Welt
wie Wolkengestalten,
alles Vollendete fällt
heim zum Uralten.

Über dem Wandel und Gang,
weiter und freier,
währt noch dein Vor-Gesang,
Gott mit der Leier.

Nicht sind die Leiden erkannt,
nicht ist die Liebe gelernt,
und was im Tod uns entfernt,

ist nicht entschleiert.
Einzig das Lied überm Land
heiligt und feiert.




RILKE, Rainer Maria. "Sonette an Orpheus". In: CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.



4.10.13

Fernando Sabino: "O homem nu"




Li e fiquei maravilhado com a seguinte crônica de Fernando Sabino quando eu era ainda adolescente. Ainda a amo. Clássicos não envelhecem. Vejam: 



O homem nu


Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.


Não era: era o cobrador da televisão.




SABINO, Fernando. O homem nu. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.

2.10.13

Jorge de Sousa Braga: "Poema de amor"





Poema de amor

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que ele não
                      te coubesse no dedo.




BRAGA, Jorge de Sousa. "Poema de amor". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005.