O seguinte artigo meu foi publicado na segunda-feira, 16 de setembro, em O Globo, na coluna de colunistas convidados intitulada "O Estado da Arte" (http://oglobo.globo.com/cultura/chega-de-fetiche-9969532#ixzz2fGcou558):
Chega de fetiche
RIO - Salta aos olhos a pluralidade formal da poesia contemporânea. Poemas concretos, sextinas, poemas em versos livres, sonetos, poemas em prosa, haikus... Para os poetas contemporâneos, não há nem tabus nem fetiches. Em princípio, nada é a priori exigido ou proibido.
Não me surpreende, porém, que haja versejadores e críticos que, rejeitando tal abertura, sejam nostálgicos do mundo fechado e tradicionalista, e condenem tudo o que não se conforme a padrões estabelecidos. Sempre haverá reacionários
O que acho estranho é o modo, digamos, pseudoprogressista de pensar daqueles que, no polo oposto, acreditam que a pluralidade formal seja efeito de uma espécie de pós-modernismo retrógrado ou de má-fé daqueles que valorizam a tradição acima da invenção.
A meu ver, como já observei em diferentes artigos, a pluralidade formal não é efeito de nenhum movimento “pós-modernista”. Trata-se, ao contrário, da plena realização da modernidade, no campo da poesia.
Pode-se dizer que tanto as culturas pré-modernas quanto o mundo incipientemente moderno haviam fetichizado (isto é, imaginariamente atribuído poderes mágicos a) determinadas formas poéticas, tais como a métrica, a rima e o verso, convencidos de que, fora delas, não era possível produzirem-se poemas de verdade.
De maneira geral, as vanguardas modernas, ao realizarem obras que ao longo do tempo foram reconhecidas como efetivamente poéticas, apesar de não se conformarem às formas fetichizadas, provaram o caráter meramente convencional de tais formas.
Por outro lado, se, tradicionalmente, as formas convencionais haviam sido tomadas como as únicas admissíveis na poesia, os poetas vanguardistas passaram a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis — verdadeiros tabus — na poesia. Sendo assim, pode-se dizer que, ao fazê-lo, esses poetas mantiveram tais formas fetichizadas, tendo apenas invertido o valor desse fetiche.
Com o tempo, porém, tendo aparecido poemas modernos e de grande qualidade que empregavam formas tabuizadas como sonetos — lembro, por exemplo, os de Carlos Drummond de Andrade (que, aliás, havia sido um poeta vanguardista) no livro “Claro enigma” — desmoralizou-se também esse fetiche negativo.
Pois bem, tanto, por um lado, o questionamento e a rejeição vanguardista do fetichismo das formas tradicionais quanto, por outro, o questionamento e a rejeição pós-vanguardista dos tabus vanguardistas fazem, evidentemente, parte do ceticismo moderno em relação a toda tese que não passa de preconceito, isto é, que não é capaz de se sustentar racionalmente. Por isso, afirmo que resulta da plena realização da modernidade no campo da poesia a consciência de que não há formas — experimentais ou tradicionais — que sejam, em princípio, incompatíveis com a produção de um poema.
Voltando aos “pseudoprogressistas”, inimigos da pluralidade formal contemporânea, lembro de ter lido textos que lamentam que as formas poéticas tenham deixado de ser valores que cobrem “adesão” à experiência histórica de sua época. Tais textos incorrem exatamente no fetichismo formal de que já se livraram quase todos os poetas contemporâneos. O fato é que as formas poéticas jamais cobram adesão nenhuma. Um soneto tinha um sentido para Petrarca, outro, completamente diferente, para Ronsard, e um terceiro, também completamente diferente, para Góngora; e o mesmo pode ser dito, em relação a seus predecessores, de um soneto de Baudelaire ou de Mário de Andrade ou de Drummond, ou de Paulo Henrique Britto. Ademais, o soneto de cada um deles tem a ver com a respectiva época, e não com as dos seus antecessores.
A verdade é que, em cada poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. É entre formas que se repetem e formas que não se repetem que se criam todos os poemas. A sintaxe do poema, seu ritmo, sua melodia, as relações paronomásticas das palavras que o compõem e as próprias palavras são formas/conteúdos. Em relação a tais formas, as formas fixas não possuem nenhum privilégio. Trata-se apenas de formas que foram catalogadas porque se repetiram com frequência. Nesse sentido, elas se assemelham às próprias palavras da língua. No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que, interagindo entre si, produzem os objetos absolutamente singulares que são os poemas. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons podem ser considerados experimentais.
Além disso, muitos poetas são capazes de usar as formas fixas simplesmente na qualidade de autoimposições formais arbitrárias que, contrapondo-se à espontaneidade criativa, imponham tensões estimulantes ao processo da produção do poema. Tal é o sentido, por exemplo, da afirmação de João Cabral de que a rima é necessária, pois, “para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo”. É muitas vezes com tal propósito que os poetas contemporâneos usam as formas fixas.
Sugiro, portanto, não apenas aos reacionários, mas sobretudo aos pseudoprogressistas, que abandonem seus preconceitos e observem melhor como trabalham e o que produzem os poetas contemporâneos.
Veja também, sobre poesia, a entrevista que concedi ao jornalista Arnaldo Bloch, em http://oglobo.globo.com/videos/t/todos-os-videos/v/antonio-cicero-fala-sobre-o-que-e-a-poesia-hoje/2822935/.