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22.2.09

Zizek, Fukuyama e o "fim da história"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 21 de fevereiro:


Zizek, Fukuyama e o "fim da história"


"É FÁCIL zombar da ideia do ‘fim da história’ de Francis Fukuyama", diz Slavoj Zizek, "mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.". À primeira vista, Zizek pretende, ao contrário da "maioria" que despreza, ser antifukuyamista. Será?

Uma semelhança óbvia entre eles é que ambos são hegelianos ou pretendem sê-lo. Assim, ninguém ignora que a própria tese do fim da história, de Fukuyama, origina-se no pensamento de Hegel. Quanto a Zizek, ele mesmo declarou, em entrevista recente, ser "profundamente hegeliano". Mas há uma ligação ainda mais profunda entre o pensamento de Zizek e o de Fukuyama. É que ambos se entediam com a época em que vivemos.

Fukuyama pensa, como diz com inconfundível sotaque hegeliano, que não há mais lugar para "a luta pelo reconhecimento, a disposição de arriscar a vida por um fim puramente abstrato, a luta ideológica mundial, que havia suscitado audácia, coragem, imaginação e idealismo". Comentando que, além de sentir em si próprio "poderosa nostalgia pelo tempo em que a história existia", percebe esse mesmo sentimento nos outros, arremata: "Talvez a própria perspectiva de séculos de tédio ao fim da história servirá para fazer a história recomeçar".

Observo, en passant, que, assim como não entendo que haja quem precise acreditar no sobrenatural para não achar a vida tediosa, tampouco entendo que haja quem, para o mesmo fim, precise acreditar na História (com agá maiúsculo). Então tais pessoas não se admiram com o mistério já da própria existência, do próprio ser? Não se espantam com o excesso de terror e de esplendor a que estão expostos pelo mero fato de existirem? Ou o percebem e renegam, ocultando-o por trás da cortina do tédio? E será que não sabem que a noção de história está longe de ser universal? A maior parte das culturas jamais produziu tal noção. Devemos supor que quase toda a humanidade sempre se tenha sentido brutalmente entediada com a vida?

Pois bem, Zizek, ostentando tédio, manifesta nos seus textos o desejo de fazer a história "recomeçar". Julgando que a lógica interna do capitalismo não levará automaticamente à sua própria superação, ele crê que, de certo modo, "Fukuyama ESTAVA certo, o capitalismo global É o ‘fim da história’”, de modo que teme que, "no interior da nossa clausura tardo-capitalista do fim da história", já não sejamos capazes de experimentar o "impacto assustador" de uma "abertura histórica autêntica".

De que maneira Zizek, que despreza a "democracia liberal global", cujo verdadeiro conteúdo lhe parece ser, como para Foucault, a "administração biopolítica da vida", imagina que seja possível "fazer a história começar de novo"?

A resposta é clara: por meio da pura vontade "revolucionária". Trata-se da apologia do voluntarismo, da violência e do terror. Segundo ele, a incapacidade de aceitar a violência e de suspender a ética constituem limitações da posição liberal. São esses os limites que quer superar, para recomeçar a história.

Não admira, portanto, que Zizek chame os direitos humanos de "obscenos" ou que faça a apologia de Robespierre, Lênin, Stálin e Mao. Isso mostra porém que, no fundo, a "abertura histórica autêntica" que busca não passa da lamentável -e reacionária- tentativa não só de reabilitar, mas de tornar paradigmáticas algumas das mais abomináveis experiências políticas dos tempos modernos.

Ora, é em parte como repúdio ao horror dessas experiências que hoje se dá o reconhecimento crescente do caráter universal dos direitos humanos; e é a partir desse reconhecimento que todo ser humano é capaz de se sentir autorizado a criticar qualquer manifestação de barbárie, quer esta se manifeste na Coreia do Norte, no Irã ou nos Estados Unidos. O verdadeiro progresso jamais poderia estar em ignorar ou limitar esses direitos, mas sim em reconhecer que eles incluem, como quer Amartya Sen, direitos não apenas políticos, mas também direitos à segurança social, ao trabalho, à educação, à proteção contra o desemprego, à sindicalização e mesmo a uma remuneração justa e favorável.

Só mesmo uma espantosa cegueira ideológica pode levar Zizek a considerar enclausuradas as sociedades em que tem lugar a luta pelo reconhecimento e pela aplicação de tais direitos; e só a mesma razão pode levá-lo a considerar aistórico um mundo em incessante e evidente transformação, como este em que vivemos.

15.6.08

Sobre "Identidade e violência"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008:


Sobre "Identidade e violência"

NO LIVRO "Identidade e violência" (SEN, Amartya. Identity and Violence. London: W.W. Norton & Company, 2006) , o economista indiano Amartya Sen, detentor do Prêmio Nobel, chama atenção para os perigos da chamada "política da identidade".

Esta consiste em reduzir, para fins políticos, os seres humanos a membros de exatamente um grupo: seja de um sexo, de uma etnia, de uma nacionalidade, de uma classe social, de uma cultura, de uma religião etc.

Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que "os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho", o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas.

Os "artífices do ódio" que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa.

Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas. "Posso ser ao mesmo tempo", diz, no que é sem dúvida uma auto-descrição, "asiático, cidadão indiano, bengali com ancestrais de Bangladesh, residente americano ou britânico, economista, filósofo amador, escritor, sanscritista, alguém que crê fortemente no secularismo e na democracia, homem, feminista, heterossexual, defensor dos direitos gays e lésbicos, praticante de um estilo de vida não-religioso, de background hindu, não-brâmane, descrente em vida depois da vida (e, caso interrogado, descrente em vida antes da vida também)". E complementa: "Isso é apenas uma pequena amostra das diversas categorias às quais posso simultaneamente pertencer".

De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações.

Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos exclusivamente como membros de uma comunidade. Ora, isso significa ignorar que, em grande medida, somos capazes de escolher nossas crenças, associações e atitudes, e que devemos aceitar responsabilidade pelo que, ainda que implicitamente, escolhemos.


Já Huntington, partindo do princípio de que "de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião", acaba caindo numa unidimensionalidade identitária que, como todas, só se pode afirmar às custas da violentação dos fatos.

Assim, por exemplo, Sen observa que Huntington, ao descrever a Índia como uma "civilização hindu", ignora a importância do fato de que, excetuando-se a Indonésia e, marginalmente, o Paquistão, a Índia tem mais muçulmanos do que qualquer outro país do mundo.

Assim também, tentando confinar o pensamento dos membros de cada civilização nos marcos de uma identidade específica, finita, reificada, Huntington chega ao ponto de pretender que "as idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio". Por trás de tais pretensões se encontra, sem dúvida, o pressuposto implícito de que a razão crítica pertence à "civilização ocidental".

Contra tal pressuposto, Sen cita o fato de que, já em 1590, o imperador indiano Akbar, muçulmano, afirmava que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, argumentando que é por meio da razão que cada um deve justificar -e, se necessário, rejeitar- a fé que herdou.
Ademais, tendo sido atacado pelos tradicionalistas, favoráveis à fé instintiva, Akbar afirmou que a necessidade de cultivar a razão e rejeitar o tradicionalismo é tão patente que não necessita de argumentação, pois "se o tradicionalismo fosse certo, os profetas teriam apenas seguido os mais velhos (e não teriam apresentado novas mensagens)".

É a identidade racional de Akbar que aqui prevalece sobre a sua identidade muçulmana e tradicional: o que prova que Sen tem razão ao afirmar que somos consideravelmente livres para decidir o grau de prioridade que a cada momento atribuímos a cada uma das identidades que simultaneamente possuímos.

Parece-me auspicioso que justamente um oriental tenha escrito uma obra capaz de funcionar como um poderoso antídoto contra as tendências irracionalistas do pensamento ocidental contemporâneo.