28.6.20

Rodrigo Garcia Lopes: "Enquanto"






Enquanto

Língua, estranha viagem
por paraísos perdidos, esperantos,
sendas, cantilenas
de templos escondidos
à beira-mar
na mata densa, enquanto
em estado de pensamento
a paisagem se evapora
num eu que é quase silêncio
brecha entre o que foi
e o que será
tempo dentro de tempo
vestígios da noite derruída
vertigens pelas trilhas de luz
outro outono e seus gestos
claros e secretos
enquanto flores de linguagem
caem em nossos pés





LOPES, Rodrigo Garcia. "Enquanto". In:_____.  Estúdio realidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

25.6.20

Luís Miguel Nava: "Poema inicial"




Poema inicial

Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.





NAVA, Luís Miguel. "Poema inicial". In:_____. "Rebentação". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

23.6.20

Afrânio Peixoto: "Na poça da lama"




Na poça da lama


Na poça da lama
Como no divino céu
Também passa a lua.





PEIXOTO, Afrânio. "Na poça da lama". In: CALCANHOTTO, Adriana (org.). Haicai do Brasil. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.

21.6.20

Caio Meira: III







III

Escrevo essas palavras de pau duro, na esperança
de encorpá-las ou dar a elas mais carnadura e
alguma veia inflamada. Ou ainda: que
a ereção (da qual sou sujeito apenas
transitório) não seja mais meu atributo,
tampouco o alongamento de qualquer das 
                                                             [vontades
que me animam, mas que lhes dê a gota
que falta ao transbordamento e o vigor para
se lançarem de si mesmas. Nesse elã, uma
expansão em busca da pandora emaranhada
entre tecidos e cordames e novelos.





MEIRA, Caio. III. In:_____. "Fenomenologia para a ereção". In:_____. Romance. Rio de Janeiro: Circuito, 2013.      

18.6.20

Antonio Cicero: "Cidade"





Cidade
Para Arthur Nestrovsky

Lembro que o futuro era uma cidade
nebulosa da qual eu esperava
tudo e que, sendo uma cidade, nada
esperava de ninguém. Ah, cidade
sonhada de avenidas macadâmicas,
turbas febris e prédios de granito:
o que era que eu perdera e que, perdido
e em cacos, buscava nas tuas áridas
calçadas e esquinas? Hoje constato
que a névoa do futuro do passado
adensa-se dia a dia. De longe
teus contornos são mais arredondados.
Tu, cidade irreal, aos poucos somes:
já anseio te rever e já te escondes.






CICERO, Antonio. "Cidade". In: Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

15.6.20

Antonio Carlos Secchin: "Receita de poema"




Receita de poema


Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.





SECCHIN, Antonio Carlos. "Receita de poema". In:_____. Hálito das pedras. (Série "Item de Colecionador" - coordenada por Diego Mendes Sousa). Gurantinguetá: Penalux, 2019.

12.6.20

Arnaldo Antunes: "Olho o olho do outro"






Olho o olho do outro,
penso o que ele pensa.
Voltar a mim é a minha 
diferença.

Olho o ralo até turvá-lo,
penso que ele não pensa.
Ir com a água é a minha 
recompensa.





ANTUNES, Arnaldo. "Olho o olho do outro". In:_____. de Psia (1986). In:_____. Como é que chama o nome disso. Antologia. São Paulo: Publifolha, 2006.

8.6.20

Moacyr Félix: "Havia"




Havia


Havia um Deus de costas, nu e sobre o lustre
na sala mais íntima das minhas almas.
Chamei-o pelo nome. E ele dissolveu-se
no espaço agora definido pelo corpo
da minha natureza a celebrar desejos
não mais divinos porque imensamente humanos.

A vida se liberta ao libertar o fogo
maior que o medo de dar nome aos deuses.
Chega de fantasmas! Vamos ficar nus, vamos ser
inteiramente o corpo que somos
porque é no chão sem fim do que é o desejo
que o universo planta em nós a sua voz. E mora.





FÉLIX, Moacyr. "Havia". In:_____. Em nome da vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

5.6.20

Heinrich Heine: "Und bist du erst mein ehlich Weib" / "Quando eu te desposar, teus dias"




Quando eu te desposar, teus dias


Quando eu te desposar, teus dias
     Serão dignos de invejas;
Desfrutarás mil alegrias
     E ociosidade régia.

Hei de perdoar-te mau humor,
     E queixas mas -- é claro –
Se não cobrires de louvor
     Meu verso, eu me separo.




Und bist du erst mein ehlich Weib


Und bist du erst mein ehlich Weib,
     Dann bist du zu beneiden,
Dann lebst du in lauter Zeitvertreib,
     In lauter Pläsier und Freuden.

Und wenn du schiltst und wenn du tobst,
     Ich werd es geduldig leiden;
Doch wenn du meine Verse nicht lobst,
     Laß ich mich von dir scheiden.





HEINE, Heinrich. "Und bist du erst mein ehlich Weib" / "Quando eu te desposar". In: ASCHER, Nelson (trad. e org.). Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998

3.6.20

Ferreira Gullar: "Off price"




Off price


Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                fora de esquema
                meu poema
inesperado

                 e que eu possa
                 cada vez mais desaprender
                 de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado




GULLAR, Ferreira. "Off price". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.