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9.1.12
Sobre a discussão entre Popper e Wittgenstein
Em artigo publicado hoje no suplemento “tec”, da Folha de São Paulo, Luli Radfahrer se refere a um episódio famoso da história intelectual do século XX. Trata-se do desentendimento entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein. Segundo Radfahrer,
“Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate, a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com Wittgenstein e outros figurões no auditório.
“A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu. Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.”
Eis a versão que Popper conta dessa história:
No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma ‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia, não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (lido na sala de R.B. Braithawaite, no “King’s College”, no dia 26 de outubro de 1946) exprimindo surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico.
Desnecessário dizer que, com isso, eu pretendia apenas fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura, Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e ,ao que me pareceu, em tom zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui; mas, como ficou claro, alguns dos admiradores de Wittgenstein, ali presentes, deram atenção às suas palavras e, em conseqüência, tomaram minha observação, que pretendia ser uma brincadeira, como uma queixa séria contra o Secretário. E assim parece ter entendido o pobre Secretário, com se vê da ata em que ele refere o incidente, acrescentando em nota de pé de página: “Essa foi a forma de convite usada pelo Clube.”
Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo. Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por mim preparada, onde figuravam questões como “Conhecemos as coisas através de nossos sentidos?”, “Há conhecimento por indução?”
Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma questão de Matemática. (Isso consta da ata.) Aludi, em seguida, aos problemas morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura, Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar suas afirmações, lançou-me um desafio: “Dê-me um exemplo de regra moral”. Respondi: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo”. Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da sala, batendo a porta atrás de si”.
POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.
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30.5.10
Heidegger, Descartes e a razão
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 28 de maio:
Heidegger, Descartes e a razão
EM ARTIGO intitulado "Irracionalismo", publicado há duas semanas nesta coluna, observei que, paradoxalmente, uma das explicações para a enorme influência de Heidegger sobre tantos intelectuais franceses parece ser justamente o seu feroz anticartesianismo.
Além disso, relacionei o irracionalismo que identifico nesses intelectuais "pós-modernistas" com a relativização a que o autor de "Caminhos de floresta" tenta submeter o próprio conceito de razão.
Quarta-feria desta semana, o sr. Maurício Tuffani publicou, na seção “Tendências e Debates” da Folha um artigo intitulado "O tabu em torno da razão" [que também se encontra em seu blog, aqui: http://laudascriticas.wordpress.com/2010/05/26/tabu/], em que, por um lado, afirma ser indevida minha atribuição a Heidegger de um feroz anticartesianismo e, por outro lado, pretende questionar minha crítica à tentativa heideggeriana de relativizar a razão. Tomo-o como ocasião para melhor explicar o que penso.
Confesso que o artigo me surpreendeu. Supõe-se que alguém que se arvore em defensor de determinado autor tenha um grande interesse nele, de modo que, além de ter lido ao menos algumas de suas obras, conheça e admire o teor geral do seu pensamento.
Ora, as palavras do sr. Tuffani evidenciam que ele não conhece bem a obra do autor que pretende socorrer. Não há outra explicação possível para sua declaração de que, em relação a Heidegger, "não faria sentido o rótulo "anticartesianismo", mesmo sem o adjetivo "feroz'"."
Digo isso porque um dos pontos em torno dos quais há praticamente consenso entre os comentadores de Heidegger é exatamente quanto ao caráter anticartesiano da obra do "Mestre da Floresta Negra". É que Heidegger considera Descartes o fundador da metafísica moderna da subjetividade. Essa metafísica, segundo ele, leva às últimas consequências aquela que, iniciada na antiguidade, com Platão, identifica-se com o que o autor de "Ser e tempo" considera o "esquecimento do ser". Heidegger pensa, ademais, que toda a filosofia moderna, inclusive a de Nietzsche, é refém da interpretação cartesiana do ente e da verdade. Ora, o pensamento de Heidegger pretende lutar exatamente contra esse esquecimento, do qual supõe decorrer o niilismo moderno, "o sombreamento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do ser humano, a suspeita rancorosa contra tudo o que é criador e livre". É evidente, portanto, que tal pensamento não poderia deixar de se constituir fundamentalmente contra a interpretação cartesiana do ente e da verdade: ergo, contra Descartes.
Naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo. E embora, ao contrário do que o sr. Tuffani afirma, Heidegger nem sequer mencione Descartes no parágrafo 24 de "Ser e tempo", ele dedica os parágrafos 19, 20 e 21 do livro – e incontáveis parágrafos dessa e de outras obras – a atacar o filósofo francês.
Se isso não bastar para qualificar de "feroz" o anticartesianismo de Heidegger, lembro que ele, em "As questões fundamentais da filosofia", queixa-se da importância que é dada, nas universidades alemãs, ao estudo de Descartes, pois assegura que esse filósofo representa "o início de uma mais ampla decadência fundamental da filosofia".
No meu artigo, eu dera um exemplo da tentativa de Heidegger de relativizar o conceito de razão, tal como empregado pela tradição filosófica. Tentando rebater-me, o sr. Tuffani diz que "Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas". Ora, o que é recusar uma coisa como absoluta senão relativizá-la?
Concluindo seu artigo, o sr. Tuffani, citando a tese de Nietzsche de que toda filosofia esconde intenções morais, afirma que as minhas, sejam quais forem, "parecem fazer do questionamento da razão um tabu".
Primeiro, confesso não entender como alguém que pense desse modo não tenha explicitado as intenções morais que o predispõem contra a defesa da razão.
Segundo, observo que o questionamento da razão não é um tabu; contudo, como todo questionamento é feito pela própria razão, é evidente que esta, ao se questionar, não pode deixar de se afirmar.
Terceiro, chamo atenção para o fato de que defender a razão, assim como defender a liberdade de pensamento contra o dogma, o obscurantismo e o irracionalismo já constitui indiscutível obrigação moral.
3.9.08
Hudson Carvalho: O fim da política
.
O fim da política
*Hudson Carvalho
Vivemos dias confusos. Dias de excesso de imoralidades e da falta de valores. Por um lado, abundantes manifestações de carência moral e de ética nas instâncias pública e privada. Por outro, guardiões postiços e autênticos da moralidade bradando para restabelecê-la; às vezes ao arrepio das leis.
Os descaminhos pululam em todos os lugares. É na esfera pública, porém, que eles mais cintilam. A impressão generalizada é de que os nossos homens públicos só aprontam, quase sem exceção. Pelo menos, é o que nos reporta a grande imprensa diária. São escândalos e mais escândalos, dia após dia, em uma seqüência funesta que, pelo volume, mais nos entorpece do que nos indigna. E se a mídia exagera, não significa que ela esteja tratando de um universo alheio ao verdadeiro.
Na contra-ofensiva, instituições e pessoas denunciando e lutando contra o descalabro. Nem todas de boa fé, ressalta-se. Há aí também, no meio dos genuinamente bem-intencionados, uma matula de aproveitadores midiáticos, de éticos de ocasião, de justiceiros sem lei, de moralistas profissionais, de ingênuos manipuláveis. Todos - os bons e os maus - amparados por uma grande mídia majoritariamente de espírito udenista.
Na política é onde esse embate está mais latente. Sem a prevalência de princípios e ideologias, o ambiente político virou uma terra arrasada moralmente, onde imperam as safadezas e o desinteresse público. Como subproduto, surge a judicialização da política em uma tentativa do Poder Judiciário de higienizar ordem tão degradada. Soma-se a isso a cruzada midiática, balizada pelo açodamento natural dos que dependem das concorrências mercantis.
O certo é de que, do jeito que a coisa anda, esse confronto mais do que produzindo bons resultados para a moralização da política está nos conduzindo para o fim da política, conforme já anotaram vários estudiosos.
Ninguém nega que o espaço político tornou-se, comumente, um lugar de perdição, corrupção e vícios. E se a própria classe política não cuida do seu ambiente, o Judiciário e a imprensa tentam remediá-lo. Por sua vez, quando esses poderes atuam, eles o fazem na maioria das vezes para amputar o espaço da política, e não para cristalizar direitos. Por trás de uma retórica de valores morais, mesmo que não seja essa a intenção, há, na prática, uma ameaça as conquistas da democracia formal e das liberdades individuais.
E é isso que vivemos nesses dias confusos. Onde anda a política com “P” maiúsculo? Não está nos partidos. Não está nos governos. Não está nas casas legislativas. Não está na sociedade. Na mídia, só a encontramos encardida.
A política tem sido vítima dela mesmo e das gentes e circunstâncias do nosso tempo. Desvirtuou-se e paga um preço por descaminho. Não há mais a política das idéias, das convicções. Só há a política dos interesses, sem causa pública. Por isso, provoca reações também radicalizadas por parte dos oponentes, como segmentos da sociedade, do Judiciário e da imprensa, que muitas vezes atuam inspirados pela máxima de que os fins justificam os meios e rasgam as formalidades que se interpõem.
Tudo isso seria relativo, se na fronteira desse confronto não constasse, mesmo que veladamente, um prenúncio de desgraça: o fim da política pode ser também o fim dos direitos, das liberdades individuais e da democracia.
*Jornalista.
O fim da política
*Hudson Carvalho
Vivemos dias confusos. Dias de excesso de imoralidades e da falta de valores. Por um lado, abundantes manifestações de carência moral e de ética nas instâncias pública e privada. Por outro, guardiões postiços e autênticos da moralidade bradando para restabelecê-la; às vezes ao arrepio das leis.
Os descaminhos pululam em todos os lugares. É na esfera pública, porém, que eles mais cintilam. A impressão generalizada é de que os nossos homens públicos só aprontam, quase sem exceção. Pelo menos, é o que nos reporta a grande imprensa diária. São escândalos e mais escândalos, dia após dia, em uma seqüência funesta que, pelo volume, mais nos entorpece do que nos indigna. E se a mídia exagera, não significa que ela esteja tratando de um universo alheio ao verdadeiro.
Na contra-ofensiva, instituições e pessoas denunciando e lutando contra o descalabro. Nem todas de boa fé, ressalta-se. Há aí também, no meio dos genuinamente bem-intencionados, uma matula de aproveitadores midiáticos, de éticos de ocasião, de justiceiros sem lei, de moralistas profissionais, de ingênuos manipuláveis. Todos - os bons e os maus - amparados por uma grande mídia majoritariamente de espírito udenista.
Na política é onde esse embate está mais latente. Sem a prevalência de princípios e ideologias, o ambiente político virou uma terra arrasada moralmente, onde imperam as safadezas e o desinteresse público. Como subproduto, surge a judicialização da política em uma tentativa do Poder Judiciário de higienizar ordem tão degradada. Soma-se a isso a cruzada midiática, balizada pelo açodamento natural dos que dependem das concorrências mercantis.
O certo é de que, do jeito que a coisa anda, esse confronto mais do que produzindo bons resultados para a moralização da política está nos conduzindo para o fim da política, conforme já anotaram vários estudiosos.
Ninguém nega que o espaço político tornou-se, comumente, um lugar de perdição, corrupção e vícios. E se a própria classe política não cuida do seu ambiente, o Judiciário e a imprensa tentam remediá-lo. Por sua vez, quando esses poderes atuam, eles o fazem na maioria das vezes para amputar o espaço da política, e não para cristalizar direitos. Por trás de uma retórica de valores morais, mesmo que não seja essa a intenção, há, na prática, uma ameaça as conquistas da democracia formal e das liberdades individuais.
E é isso que vivemos nesses dias confusos. Onde anda a política com “P” maiúsculo? Não está nos partidos. Não está nos governos. Não está nas casas legislativas. Não está na sociedade. Na mídia, só a encontramos encardida.
A política tem sido vítima dela mesmo e das gentes e circunstâncias do nosso tempo. Desvirtuou-se e paga um preço por descaminho. Não há mais a política das idéias, das convicções. Só há a política dos interesses, sem causa pública. Por isso, provoca reações também radicalizadas por parte dos oponentes, como segmentos da sociedade, do Judiciário e da imprensa, que muitas vezes atuam inspirados pela máxima de que os fins justificam os meios e rasgam as formalidades que se interpõem.
Tudo isso seria relativo, se na fronteira desse confronto não constasse, mesmo que veladamente, um prenúncio de desgraça: o fim da política pode ser também o fim dos direitos, das liberdades individuais e da democracia.
*Jornalista.
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24.5.07
Entrevista a Washington Castilhos
Por ocasião da visita de Bento XVI, Washington Castilhos, do Sexuality Policy Watch (Observatório de Sexualidade e Política), escreveu vários artigos, extremamente interessantes, sobre a Igreja Católica e a sexualidade. Fui um dos entrevistados para o artigo “A ética entre o bem e o mal”, que pode ser encontrado através do seguinte link: http://www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?option=com_content&task=view&id=106&Itemid=127. A seguir, publico as perguntas de Castilhos e as minhas respostas:
1. A pergunta central do texto é: é possivel para o homem constituir uma ética que não seja a religiosa?
Sim. Não consta que haja mais criminosos entre os irreligiosos do que entre os religiosos. O ser humano sabe que determinadas coisas são erradas porque é capaz de se colocar no lugar do outro e de colocar o outro no seu lugar. Quem faz uma coisa errada sabe que rompe um pacto tácito estabelecido com os outros seres humanos. Não é preciso religião para ensinar isso. A ética exposta por Kant, por exemplo, não é religiosa. As religiões não fazem senão – na melhor das hipóteses – espelhar os princípios e a regras que os homens elaboraram para poderem melhor conviver em sociedade. A prova disso é que, embora muitos dos princípios e regras que os homens se impõem não sejam espelhados pela religião, eles são, no entanto, respeitados. Por exemplo, achamos errado que uma pessoa abandone um amigo na hora da necessidade. Pensamos assim, embora esse princípio não tenha sido enunciado por nenhum dos mandamentos. Por que então imaginar que, se não existissem os mandamentos, não continuaríamos, do mesmo modo, a considerar algumas coisas certas e outras erradas? Os gregos não tinham mandamentos e acreditavam que seus deuses eram capazes de mentir, trair, roubar, e até de prender e castrar o pai, ou de devorar os filhos. Entretanto, tanto quanto nós, eles consideravam essas coisas erradas.
Alguns, porém, ainda que não sejam eles próprios religiosos, alegam que a religião é necessária como um freio para os impulsos criminosos de grande parte da humanidade. Para isso, o que realmente acham necessário inventar é o inferno. A existência do inferno seria uma "pia fraus", uma "mentira santa". Isso nada tem a ver com moral. Ao contrário, trata-se de uma fraude, de uma mentira, de uma imoralidade com finalidades repressivas. Como poderia estar uma imoralidade na base da moral?
O verdadeiro freio para os criminosos é a lei humana e a sua aplicação. Como diz, com razão, Pierre Bayle, "um mal que só se vê à distância ou por conjectura" – ele se refere ao Inferno – "não muda nossa conduta, como se pode ver pelo exemplo dos jovens que sabem que morrerão um dia ou pensam que morrerão talvez dentro em pouco e nem por isso estão prontos a mortificar suas paixões". E ainda: "A concupiscência sendo a fonte de todos os crimes, é evidente que, já que ela reina entre os religiosos, tanto que entre os ateus, os idólatras devem ser tão capazes de serem levados a todo tipo de crime quanto os ateus; e que uns e outros não teriam conseguido formar sociedades, se um freio mais forte que a relgião, a saber, as leis humanas, não reprimisse sua perversidade. E isso mostra a falta de fundamento que há em dizer que o conhecimento vago e confuso de uma Providência seja útil para enfraquecer a corrupção humana."
2. Nos pronunciamentos de Bento XVI, um tema se coloca como urgente proposta de caminho para a sociedade moderna: o alargamento da razão. O papa Bento XVI sonha com uma Igreja que se contraponha ao que enxerga como a principal fraqueza da cultura contemporânea: o relativismo. Na opinião do papa a razão encontra-se hoje reduzida, resumida à cientificidade, existem nas palavras dele "patologias da razão" ou "hybris da razão", como também ele chama. Para isso, ele propõe o tal "alargamento da razão" como saída ao "laicismo dominante". Como o sr analisa esse raciocínio? Em sua opinião, a Igreja Católica tem problemas em lidar com a modernidade?
Francamente, não vejo grande novidade no discurso de Bento XVI. O que é diferente é a atitude dele, que é mais agressiva, na defesa dos dogmas da Igreja Católica. No fundo, foi a partir da grande síntese de fé e razão empreendida por são Tomás de Aquino que, em Regensburg, ele atacou o fideísmo muçulmano e protestante. Graças a uma interpretação extremamente questionável de santo Agostinho e são Paulo – interpretação que os coloca demasiadamente próximos da posição de Tomás – ele localiza na Idade Média tardia, em Duns Scotus, a origem do fideísmo ocidental e, com isso, do Protestantismo. Este seria, portanto, o resultado de um desvio da linha correta, isto é, tomista.
A meu ver, o que na verdade ocorreu foi que a teologia da Idade Média tardia se deu conta da irrecuperável incompatibilidade entre a razão e a religião revelada: entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, como diria Pascal mais tarde. Ela percebeu esse problema, não por uma insuficiência da sua racionalidade, mas, ao contrário, por ter sido intransigentemente racional. Foi por não querer diminuir nem a razão, nem a religião, que ela optou pelo dualismo. Pode-se dizer que o fundamentalismo protestante é a opção exclusiva pelo lado da fé e, por outro lado, que o positivismo – que, junto com o relativismo, é o outro alvo dos ataques de Bento XVI – é a opção pelo lado da razão. É por causa dessa origem que, de certo modo, justifica-se tomar o positivismo como uma razão diminuída, uma razão que limita a si própria.
A solução para essas limitações é, evidentemente, o abandono da própria problemática da relação entre a fé e a razão, que o positivismo ainda inconscientemente conserva. A verdadeira razão ampliada é a razão ilimitadamente livre e crítica, a razão tout court, e a principal condição para o seu exercício é a sociedade aberta. A tentativa de Bento XVI de voltar ao tomismo, como se nada senão um desvio tivesse ocorrido depois dele, é simplesmente regressiva e, por isso, destinada ao fracasso.
3. Em um texto recente seu, o sr afirma que é preciso defender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita e afirma que é perigoso "relativizar a razão pelo sentimento". É perigoso relativizar a razão pela fé?
Sem dúvida. Colocar a fé, que é o oposto da razão, antes da razão é ser irracionalista. O irracionalismo – principalmente no que diz respeito à esfera pública – é o que há de mais perigoso.
3. Como o sr analisa a ética católica em relação à reprodução e à sexualidade e a moralidade que ela imprime a temas relativos a esses campos?
O catolicismo alega defender a vida, mas a verdade é que a vida que realmente importa, para ele, não é esta, mas a "outra", isto é, a "eterna", isto é, a que vem depois da morte, isto é, a própria morte. E, perto da vida eterna, o que é, para o verdadeiro católico, o sofrimento nesta vida? Assim, o catolicismo não defende a vida, mas a morte e o sofrimento. "Quem quer o celeste", dizia são Bernardo, "não gosta do terrestre; quem anseia pelo eterno despreza o transitório". Desse modo, os prazeres terrenos não valem por si e estão muito próximos do pecado, pois afastam o ser humano do celeste e do eterno. Não é, pois, por um respeito absoluto pela vida terrena – respeito que ela jamais teve – que a Igreja condena o aborto, mas, em primeiro lugar, porque, segundo a sua interpretação teleológica do mundo, o prazer sexual não tem, para ela, finalidade em si próprio, mas na reprodução, e, em segundo lugar, porque quer afirmar a heteronomia do ser humano, quer afirmar sua convicção de que o ser humano não é dono de si próprio nem do seu corpo. É por essas mesmas razões que ela condena a homossexualidade.
Penso que cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por mais irracional que seja, e de agir de acordo com as suas crenças, desde que, ao fazê-lo, não infrinja idêntico direito de outrem. Isso porém implica que ninguém – nem indivíduos nem instituições laicas ou religiosas – tem o direito de impor as suas crenças particulares ou o seu modo de vida aos outros. Assim, a Igreja está sendo subversiva do princípio universal do direito e do Estado laico quando, por exemplo, tenta impedir os casais homossexuais de terem as suas parcerias civis reconhecidas pela lei.
1. A pergunta central do texto é: é possivel para o homem constituir uma ética que não seja a religiosa?
Sim. Não consta que haja mais criminosos entre os irreligiosos do que entre os religiosos. O ser humano sabe que determinadas coisas são erradas porque é capaz de se colocar no lugar do outro e de colocar o outro no seu lugar. Quem faz uma coisa errada sabe que rompe um pacto tácito estabelecido com os outros seres humanos. Não é preciso religião para ensinar isso. A ética exposta por Kant, por exemplo, não é religiosa. As religiões não fazem senão – na melhor das hipóteses – espelhar os princípios e a regras que os homens elaboraram para poderem melhor conviver em sociedade. A prova disso é que, embora muitos dos princípios e regras que os homens se impõem não sejam espelhados pela religião, eles são, no entanto, respeitados. Por exemplo, achamos errado que uma pessoa abandone um amigo na hora da necessidade. Pensamos assim, embora esse princípio não tenha sido enunciado por nenhum dos mandamentos. Por que então imaginar que, se não existissem os mandamentos, não continuaríamos, do mesmo modo, a considerar algumas coisas certas e outras erradas? Os gregos não tinham mandamentos e acreditavam que seus deuses eram capazes de mentir, trair, roubar, e até de prender e castrar o pai, ou de devorar os filhos. Entretanto, tanto quanto nós, eles consideravam essas coisas erradas.
Alguns, porém, ainda que não sejam eles próprios religiosos, alegam que a religião é necessária como um freio para os impulsos criminosos de grande parte da humanidade. Para isso, o que realmente acham necessário inventar é o inferno. A existência do inferno seria uma "pia fraus", uma "mentira santa". Isso nada tem a ver com moral. Ao contrário, trata-se de uma fraude, de uma mentira, de uma imoralidade com finalidades repressivas. Como poderia estar uma imoralidade na base da moral?
O verdadeiro freio para os criminosos é a lei humana e a sua aplicação. Como diz, com razão, Pierre Bayle, "um mal que só se vê à distância ou por conjectura" – ele se refere ao Inferno – "não muda nossa conduta, como se pode ver pelo exemplo dos jovens que sabem que morrerão um dia ou pensam que morrerão talvez dentro em pouco e nem por isso estão prontos a mortificar suas paixões". E ainda: "A concupiscência sendo a fonte de todos os crimes, é evidente que, já que ela reina entre os religiosos, tanto que entre os ateus, os idólatras devem ser tão capazes de serem levados a todo tipo de crime quanto os ateus; e que uns e outros não teriam conseguido formar sociedades, se um freio mais forte que a relgião, a saber, as leis humanas, não reprimisse sua perversidade. E isso mostra a falta de fundamento que há em dizer que o conhecimento vago e confuso de uma Providência seja útil para enfraquecer a corrupção humana."
2. Nos pronunciamentos de Bento XVI, um tema se coloca como urgente proposta de caminho para a sociedade moderna: o alargamento da razão. O papa Bento XVI sonha com uma Igreja que se contraponha ao que enxerga como a principal fraqueza da cultura contemporânea: o relativismo. Na opinião do papa a razão encontra-se hoje reduzida, resumida à cientificidade, existem nas palavras dele "patologias da razão" ou "hybris da razão", como também ele chama. Para isso, ele propõe o tal "alargamento da razão" como saída ao "laicismo dominante". Como o sr analisa esse raciocínio? Em sua opinião, a Igreja Católica tem problemas em lidar com a modernidade?
Francamente, não vejo grande novidade no discurso de Bento XVI. O que é diferente é a atitude dele, que é mais agressiva, na defesa dos dogmas da Igreja Católica. No fundo, foi a partir da grande síntese de fé e razão empreendida por são Tomás de Aquino que, em Regensburg, ele atacou o fideísmo muçulmano e protestante. Graças a uma interpretação extremamente questionável de santo Agostinho e são Paulo – interpretação que os coloca demasiadamente próximos da posição de Tomás – ele localiza na Idade Média tardia, em Duns Scotus, a origem do fideísmo ocidental e, com isso, do Protestantismo. Este seria, portanto, o resultado de um desvio da linha correta, isto é, tomista.
A meu ver, o que na verdade ocorreu foi que a teologia da Idade Média tardia se deu conta da irrecuperável incompatibilidade entre a razão e a religião revelada: entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, como diria Pascal mais tarde. Ela percebeu esse problema, não por uma insuficiência da sua racionalidade, mas, ao contrário, por ter sido intransigentemente racional. Foi por não querer diminuir nem a razão, nem a religião, que ela optou pelo dualismo. Pode-se dizer que o fundamentalismo protestante é a opção exclusiva pelo lado da fé e, por outro lado, que o positivismo – que, junto com o relativismo, é o outro alvo dos ataques de Bento XVI – é a opção pelo lado da razão. É por causa dessa origem que, de certo modo, justifica-se tomar o positivismo como uma razão diminuída, uma razão que limita a si própria.
A solução para essas limitações é, evidentemente, o abandono da própria problemática da relação entre a fé e a razão, que o positivismo ainda inconscientemente conserva. A verdadeira razão ampliada é a razão ilimitadamente livre e crítica, a razão tout court, e a principal condição para o seu exercício é a sociedade aberta. A tentativa de Bento XVI de voltar ao tomismo, como se nada senão um desvio tivesse ocorrido depois dele, é simplesmente regressiva e, por isso, destinada ao fracasso.
3. Em um texto recente seu, o sr afirma que é preciso defender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita e afirma que é perigoso "relativizar a razão pelo sentimento". É perigoso relativizar a razão pela fé?
Sem dúvida. Colocar a fé, que é o oposto da razão, antes da razão é ser irracionalista. O irracionalismo – principalmente no que diz respeito à esfera pública – é o que há de mais perigoso.
3. Como o sr analisa a ética católica em relação à reprodução e à sexualidade e a moralidade que ela imprime a temas relativos a esses campos?
O catolicismo alega defender a vida, mas a verdade é que a vida que realmente importa, para ele, não é esta, mas a "outra", isto é, a "eterna", isto é, a que vem depois da morte, isto é, a própria morte. E, perto da vida eterna, o que é, para o verdadeiro católico, o sofrimento nesta vida? Assim, o catolicismo não defende a vida, mas a morte e o sofrimento. "Quem quer o celeste", dizia são Bernardo, "não gosta do terrestre; quem anseia pelo eterno despreza o transitório". Desse modo, os prazeres terrenos não valem por si e estão muito próximos do pecado, pois afastam o ser humano do celeste e do eterno. Não é, pois, por um respeito absoluto pela vida terrena – respeito que ela jamais teve – que a Igreja condena o aborto, mas, em primeiro lugar, porque, segundo a sua interpretação teleológica do mundo, o prazer sexual não tem, para ela, finalidade em si próprio, mas na reprodução, e, em segundo lugar, porque quer afirmar a heteronomia do ser humano, quer afirmar sua convicção de que o ser humano não é dono de si próprio nem do seu corpo. É por essas mesmas razões que ela condena a homossexualidade.
Penso que cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por mais irracional que seja, e de agir de acordo com as suas crenças, desde que, ao fazê-lo, não infrinja idêntico direito de outrem. Isso porém implica que ninguém – nem indivíduos nem instituições laicas ou religiosas – tem o direito de impor as suas crenças particulares ou o seu modo de vida aos outros. Assim, a Igreja está sendo subversiva do princípio universal do direito e do Estado laico quando, por exemplo, tenta impedir os casais homossexuais de terem as suas parcerias civis reconhecidas pela lei.
23.4.07
A tese de Ivan Karamazov
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na Folha de São Paulo, sábado passado, 21 de Abril de 2007:
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A TESE DE IVAN KARAMAZOV
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Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar a ética
VOLTA E meia alguém traz novamente à tona a famosa tese de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Acho que muita gente acredita piamente nela e atribui à irreligiosidade da população a constante e inquietante alta dos índices de criminalidade. Será talvez com a intenção de baixar esses índices que os donos ou editores das revistas brasileiras de circulação nacional raramente deixam passar uma semana sem que, ao menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa reportagem de capa, da fé e da religiosidade dos brasileiros.
Ora, a tese do personagem de Ivan não resiste a um simples experimento de pensamento. Suponha que me apareça Deus e me ordene matar o meu filho (ou mãe, ou pai, ou irmão, ou amante, ou amigo). Que faria eu? Ponha-se o leitor na minha pele. Não tenho dúvida de que a minha primeira reação -a primeira reação de qualquer pessoa que não tivesse perdido o juízo- seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu me beliscaria, para saber se não estava sonhando; suspeitaria estar tendo um surto de loucura, um delírio etc.
Aquilo simplesmente não poderia estar acontecendo. E não poderia estar acontecendo por duas razões: primeiro, porque Deus não costuma aparecer, pelo menos hoje em dia. Quando alguém diz que conversou com Deus -ainda que quem o diga seja o presidente dos Estados Unidos-, suspeita-se imediatamente da sua sanidade mental. De todo modo, eu não obedeceria.
Mas a segunda razão é ainda mais séria. É que, se isso estivesse realmente acontecendo, então Deus me estaria mandando fazer uma coisa má: uma coisa inteiramente, indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso contemplar tal hipótese. Logo, isso não poderia estar acontecendo. Eu pensaria antes que, ou não havia ninguém ali, e eu estava simplesmente a delirar, ou havia alguém de fato ali, mas se tratava de um impostor -talvez até de um demônio-, mas não de Deus, pois seria impensável que Deus me mandasse fazer uma coisa errada: e que coisa poderia ser mais errada do que aquela? Em suma, eu não obedeceria.
Mas levemos a coisa ainda mais longe. Suponhamos que, por alguma razão inconcebível, fosse incontornável a evidência de que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim, eu não mataria meu filho ou amigo: eu não mataria sequer um estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado, não por causa dos mandamentos que o próprio Deus decretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os estaria revogando, mas simplesmente porque, independentemente de qualquer mandamento, é errado matar uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que Deus não exista. Logo, ao contrário do que afirma a tese do personagem de Dostoiévski, nem tudo é permitido, ainda que Deus não exista.
O leitor terá sem dúvida lembrado que, na Bíblia (Gn 22), Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no experimento de pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à prova, ordenando-lhe que matasse o seu filho primogênito. Ao contrário de mim (e do leitor que se pôs na minha pele), Abraão se dispôs a obedecer e, quando já havia pegado a faca para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo, enviado por Deus.
Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard escreveu as páginas impressionantes de "Temor e Tremor". Nelas, ele mostra que, do ponto de vista puramente ético, não se justificaria a prontidão de Abraão. Só a fé -superior, segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação individual e absoluta com Deus- justifica a atitude de Abraão. Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é relativizada pela da fé.
Sendo assim, devemos inverter a tese de Ivan Karamazov: não só não é verdade que, se Deus não existe, tudo é permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas, ao contrário, é se Deus existir que tudo é permitido.
Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar e, no limite, negar a ética. Isso lembra as palavras do físico norte-americano Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: "Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".
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A TESE DE IVAN KARAMAZOV
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Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar a ética
VOLTA E meia alguém traz novamente à tona a famosa tese de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Acho que muita gente acredita piamente nela e atribui à irreligiosidade da população a constante e inquietante alta dos índices de criminalidade. Será talvez com a intenção de baixar esses índices que os donos ou editores das revistas brasileiras de circulação nacional raramente deixam passar uma semana sem que, ao menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa reportagem de capa, da fé e da religiosidade dos brasileiros.
Ora, a tese do personagem de Ivan não resiste a um simples experimento de pensamento. Suponha que me apareça Deus e me ordene matar o meu filho (ou mãe, ou pai, ou irmão, ou amante, ou amigo). Que faria eu? Ponha-se o leitor na minha pele. Não tenho dúvida de que a minha primeira reação -a primeira reação de qualquer pessoa que não tivesse perdido o juízo- seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu me beliscaria, para saber se não estava sonhando; suspeitaria estar tendo um surto de loucura, um delírio etc.
Aquilo simplesmente não poderia estar acontecendo. E não poderia estar acontecendo por duas razões: primeiro, porque Deus não costuma aparecer, pelo menos hoje em dia. Quando alguém diz que conversou com Deus -ainda que quem o diga seja o presidente dos Estados Unidos-, suspeita-se imediatamente da sua sanidade mental. De todo modo, eu não obedeceria.
Mas a segunda razão é ainda mais séria. É que, se isso estivesse realmente acontecendo, então Deus me estaria mandando fazer uma coisa má: uma coisa inteiramente, indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso contemplar tal hipótese. Logo, isso não poderia estar acontecendo. Eu pensaria antes que, ou não havia ninguém ali, e eu estava simplesmente a delirar, ou havia alguém de fato ali, mas se tratava de um impostor -talvez até de um demônio-, mas não de Deus, pois seria impensável que Deus me mandasse fazer uma coisa errada: e que coisa poderia ser mais errada do que aquela? Em suma, eu não obedeceria.
Mas levemos a coisa ainda mais longe. Suponhamos que, por alguma razão inconcebível, fosse incontornável a evidência de que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim, eu não mataria meu filho ou amigo: eu não mataria sequer um estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado, não por causa dos mandamentos que o próprio Deus decretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os estaria revogando, mas simplesmente porque, independentemente de qualquer mandamento, é errado matar uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que Deus não exista. Logo, ao contrário do que afirma a tese do personagem de Dostoiévski, nem tudo é permitido, ainda que Deus não exista.
O leitor terá sem dúvida lembrado que, na Bíblia (Gn 22), Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no experimento de pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à prova, ordenando-lhe que matasse o seu filho primogênito. Ao contrário de mim (e do leitor que se pôs na minha pele), Abraão se dispôs a obedecer e, quando já havia pegado a faca para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo, enviado por Deus.
Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard escreveu as páginas impressionantes de "Temor e Tremor". Nelas, ele mostra que, do ponto de vista puramente ético, não se justificaria a prontidão de Abraão. Só a fé -superior, segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação individual e absoluta com Deus- justifica a atitude de Abraão. Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é relativizada pela da fé.
Sendo assim, devemos inverter a tese de Ivan Karamazov: não só não é verdade que, se Deus não existe, tudo é permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas, ao contrário, é se Deus existir que tudo é permitido.
Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar e, no limite, negar a ética. Isso lembra as palavras do físico norte-americano Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: "Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".
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