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1.3.22

Luís Miguel Nava: "Sem outro intuito"

 



Sem outro intuito



Atirávamos pedras


à água para o silêncio vir à tona.


O mundo, que os sentidos tonificam,


surgia-nos então todo enterrado


na nossa própria carne, envolto


por vezes em ferozes transparências


que as pedras acirravam


sem outro intuito além do de extraírem


às águas o silêncio que as unia.











NAVA,  Luís Miguel. "Sem outro intuito". In:______ Poesia completa1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

1.3.21

Luís Miguel Nava: "Retrato"



retrato


A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.

Há quem, tendo--a metida

num cofre até às mais fundas raízes,

simule não ter pele, quando

de facto ela não está

senão um pouco atrasada em relação ao coração.

Com ele porém não era assim.

A pele ia imitando o céu como podia.

Pequena, solitária, era uma pele metida

consigo mesma e que servia

de poço, onde além de água ele procurara protecção.





NAVA, Luís Miguel. "Retrato". In:____. Poesia completa. 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

25.6.20

Luís Miguel Nava: "Poema inicial"




Poema inicial

Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.





NAVA, Luís Miguel. "Poema inicial". In:_____. "Rebentação". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

10.4.20

Luís Miguel Nava: "Basalto"




Basalto


Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.





NAVA,  Luís Miguel. "Basalto". In:_____. "Como alguém disse". In:_____. Poesia completa: 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

10.6.18

Luís Miguel Nava: "Rapazes"



Rapazes

Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



NAVA, Luís Miguel. "Rapazes". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

15.4.18

Luís Miguel Nava: "A fome"



A fome

Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.
Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,
aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.




NAVA, Luís Miguel. "A fome". In:_____. Vulcão. Lisboa: Quetzal, 1994.

14.3.16

Luís Miguel Nava: "A pouco e pouco"




A pouco e pouco



     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.
     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.
     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.



NAVA, Luís Miguel. "A pouco e pouco". In:_____. "Como alguém disse". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

20.1.16

Luís Miguel Nava: "Abismos"




Abismos

Entre estes meus amigos através
de cujos corações arde o horizonte e a ponte
da qual o seu sorriso era um dos arcos
abriram-se os abismos.



NAVA, Luís Miguel. "Abismos". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Org. de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.


7.8.15

Luís Miguel Nava: "Há uma pedra feroz"





Há uma pedra feroz

Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.



NAVA, Luís Miguel. "Há uma pedra feroz". In_____. "Onde a nudez". In:_____. Poesia completa. 1979-1994. Org. de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

22.12.14

Luís MIguel Nava: "Crawl"





                                          Crawl



     Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar nele duas ou três braçadas sucessivas.



NAVA, Luís Miguel. "Rebentação". In:_____. Poesia completa. Org. de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

22.4.14

Luís Miguel Nava: "Paixão"






Paixão

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.



NAVA, Luís Miguel. "Paixão". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

21.9.13

Luis Miguel Nava: "Falésias"







Falésias


Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual ele vem com um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão, fá-lo por mim.




NAVA, Luis Miguel. Como alguém disse. Lisboa: Contexto, 1982.

3.9.09

Luís Miguel Nava: "Ao mínimo clarão"




Ao mínimo clarão

Talvez seja melhor não nos voltarmos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.

Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.

Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.



NAVA, Luís Miguel. "Como alguém disse". In: Poesia completa (1979-1994). Lisboa: Dom Quixote, 2002.

29.12.08

Luís Miguel Nava: "Ars poetica"

.



Ars poetica


O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.




De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. 1979-1994. Organização e posfácio de Gastão Cruz. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

15.5.08

Luís Miguel Nava

MANUEL

Fui ter com ele à Feira Popular, donde minutos
depois partimos para Sintra. Lembro-me
de o carro avançar à velocidade do meu sangue.
No Guincho, onde momentos antes
de o sol se pôr parámos, vi o mar
ganhar no espírito dele outra ondulação.
De nós, assim o soube, erguem paisagens
as viagens. Entre a pele e o coração alçam-se as pontes.


De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. Org. CRUZ, Gastão. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.62.

19.8.07

Luís Miguel Nava: Rapaz

RAPAZ

Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.


NAVA, Luís Miguel. "Rapaz". In: Poesia completa. 1974-1994. Org. e posfácio de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.86.