31.12.13

DESEJO UM FELIZ 2014 A TODOS OS AMIGOS!

Eugénio de Andrade: "O sorriso"




O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.



ANDRADE, Eugénio de. O outro nome da Terra. Porto: Limiar, 1989.




Devo a Arthur Nogueira o link para o maravilhoso vídeo em que o próprio Eugénio de Andrade, sorrindo, diz o seu poema. Ei-lo:





29.12.13

Mario Vargas Llosa: "O exemplo uruguaio"




Recomendo o excelente artigo de Mario Vargas Llosa "O exemplo uruguaio", publicado n'O Estado de São Paulo de hoje. Link: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-exemplo-uruguaio-,1113207,0.htm.

28.12.13

T.S. Eliot: "Marina" : trad. de Ivan Junqueira





Marina

Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?

Que mares que praias que rochas grises que ilhas
Que águas a lamber a proa
Que aroma de pinho e gorjeio de tordo na neblina
Que imagens retornam
Ó minha filha.

Aqueles que os dentes do cão afiam, significando
Morte
Aqueles que na glória do colibri cintilam, significando
Morte
Aqueles que na pocilga da satisfação se assentam, significando
Morte
Aqueles que do êxtase dos animais partilham, significando
Morte

Tornam-se incorpóreos, reduzidos a nada por um golpe de vento
Uma exalação de pinho, e a neblina da canção silvestre
Por esta graça no espaço se dissolve.

Que há neste rosto, menos claro e mais claro
O pulso no braço, menos forte e mais forte
— Dado ou emprestado? Mais distante que as estrelas e mais próximo que os olhos
Sussurros e risinhos entre folhas e pés precipites
Submersos no sono, onde todas as águas se entrelaçam.

O gurupés no gelo se espedaça, a pintura ao calor estala.
Eu o fiz, e esqueci
E recordo.
A cordoalha frouxa e o velame em farrapos
Entre certo junho e outro setembro.
E o fiz desconhecido, semiconsciente, ignoto, meu.
O verdugo da carcaça faz água, as fendas reclamam o calafate.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo por viver numa esfera de tempo que me excede. Que eu possa
Renunciar à minha vida por esta vida, à minha fala pelo inexpresso,
O desperto, lábios abertos, a esperança, os novos barcos.
Que mares que praias que graníticas ilhas contra minha quilha
E que tordo chama através da neblina
Minha filha.

 

Marina

Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?

What seas what shores what grey rocks and what islands
What water lapping the bow
And scent of pine and the woodthrush singing through the fog
What images return
O my daughter.
   
  Those who sharpen the tooth of the dog, meaning
 Death
 Those who glitter with the glory of the hummingbird, meaning
 Death
 Those who sit in the stye of contentment, meaning
 Death
 Those who suffer the ecstasy of the animals, meaning
 Death
   
  Are become insubstantial, reduced by a wind,
 A breath of pine, and the woodsong fog
 By this grace dissolved in place
   
What is this face, less clear and clearer
 The pulse in the arm, less strong and stronger—
 Given or lent? more distant than stars and nearer than the eye
   
  Whispers and small laughter between leaves and hurrying feet
 Under sleep, where all the waters meet.
   
  Bowsprit cracked with ice and paint cracked with heat.
 I made this, I have forgotten
 And remember.
 The rigging weak and the canvas rotten
 Between one June and another September.
 Made this unknowing, half conscious, unknown, my own.
 The garboard strake leaks, the seams need caulking.
This form, this face, this life
Living to live in a world of time beyond me; let me
Resign my life for this life, my speech for that unspoken,
The awakened, lips parted, the hope, the new ships.
   
What seas what shores what granite islands towards my timbers
 And woodthrush calling through the fog
 My daughter.




ELIOT, T.S. The complete poems and plays. 1909-1950. New York: Harcourt, Brance & Wrold, Inc., 1952.


ELIOT, T.S. Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

26.12.13

Luis Olavo Fontes: "Adolescência"




Adolescência

minha namorada crê no sonho louco
que ela denomina
amar

eu, como não sei o que é isso,
limito-me a beijá-la
com fúria.



FONTES, Luis Olavo. Tudo pelos ares. Rio de Janeiro: edição do autor, 1979.



24.12.13

Federico García Lorca: "Gacela del amor desesperado" / "Gazel do amor desesperado": trad. William Agel de Melo





Gacela del amor desesperado

La noche no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
aunque un sol de alacranes me coma la sien.

Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.

El día no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
entregando a los sapos mi mordido clavel.

Pero tú vendrás
por las turbias cloacas de la oscuridad.

Ni la noche ni el día quieren venir
para que por ti muera
y tú mueras por mí.




Gazel do amor desesperado

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.



GARCÍA LORCA, Federico. "Divan del Tamarit / Divã do Tamarit". In: Obra poética completa. Trad. de William Agel de Melo. Brasília: Universidade de Brasília; São Paulo: Martins Fontes, 1989.


22.12.13

Alberto Pucheu: "Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)"





Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)

“Quem somos?” –
perguntam aos poemas
em busca de uma resposta
que complete a pergunta,
sobrepondo uma, sem falta
nem excesso, à outra.
Mas os poemas repetidamente
respondem que somos
aquilo em que nos perdemos
ao buscarmos encontrar
o que acreditamos ser.
Se insistirem, portanto,
em perguntar aos poemas
de buscas, encontros, crenças...
se insistirem, portanto, em saber
a voz dos poemas, saibam que,
de diferentes modos, eles só dizem
o que não se busca nem se encontra,
a perdição, o fim das crenças,
oque não se oferece a nenhuma frase,
nem mesmo mais a nenhum verso.
Há um ponto cego nos poemas,
como há um ponto cego na vida,
não visto por mim nem por você
nem por ninguém, desde o qual
eles são o que são, um ponto cego
que somente os poemas – talvez –
nem sei – vejam. Se insistirem,
portanto, no trato com os poemas,
se de fato quiserem permanecer
com eles, sejam, ainda que os últimos
afeitos a tal empenho, fortes,
porque quase todos os outros
– sinal dos tempos – os abandonaram.



PUCHEU, Alberto. “Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)”. In: Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.

20.12.13

Adriano Nunes: "Desse amor embutido"




Desse amor embutido

O meu sorriso é símile ao sorriso
Do meu pai. Descobri
Isso nas ausências intempestivas
Dos abraços e afagos que não tive,
Das conversas sérias e importantíssimas
Que com ele  existir
Não puderam, quando, sozinho, via-me
Imerso em sombras, com medo de mim.
Mas são as frágeis  flores  do jardim
Que refletem a igualdade aludida
No mover facial. É a poesia
Desse amor embutido
Nas lembranças suaves, nos sentidos,
Nos assaltos de vida,
Ante a confirmação mais que precisa
De que muito preciso
Que ao sorriso do meu pai vingue símile
Meu súbito sorriso.



NUNES, Adirano. Disp. no blog Quefaçocomoquenãofaço, no URL http://astripasdoverso.blogspot.com.br/.

18.12.13

Ricardo Silvestrin "palavra não é coisa"






palavra não é coisa
que se diga
quem toma a palavra
pela coisa
diz palavra com palavra
mas não diz coisa com coisa
a palavra pode ser pesada
a coisa, leve
e vice-versa não é coisa alguma
a palavra coisa
não é a coisa palavra
palavra e coisa
jamais serão a mesma coisa



SILVESTRIN, Ricardo. Palavra mágica. São Paulo: IEL/Massao Ohno, 1994.

16.12.13

Jules Laforgue: "Médiocrité" / "Mediocridade": trad. Régis Bonvicino





Mediocridade

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o seu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.



Médiocrité

Dans l'Infini criblé d'éternelles splendeurs,
Perdu comme un atome, inconnu, solitaire,
Pour quelques jours comptés, un bloc appelé Terre
Vole avec sa vermine aux vastes profondeurs.

Ses fils, blêmes, fiévreux, sous le fouet des labeurs,
Marchent, insoucieux de l'immense mystère,
Et quand ils voient passer un des leurs qu'on enterre,
Saluent, et ne sont pas hérissés de stupeurs.

La plupart vit et meurt sans soupçonner l'histoire
Du globe, sa misère en l'éternelle gloire,
Sa future agonie au soleil moribond.

Vertiges d'univers, cieux à jamais en fête!
Rien, ils n'auront rien su. Combien même s'en vont
Sans avoir seulement visité leur planète.



LAFORGUE, Jules. Litanias da lua. Organização e tradução de Régis Bonvicino. São Paulo: Iluminuras, 1989.

13.12.13

António Ramos Rosa: "O momento de"





O momento de

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. 0lha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.


ROSA, António Ramos. A nuvem sobre a página. Lisboa: Dom Quixote, 1978.


10.12.13

Domício Proença Filho: "Narcisismo"





Narcisismo

-- Quando cansares
(se puderes)
de olhar o espelho
que te vivifica
e acaricia,
volta os olhos
em torno:
ali
o amor
antigo
espera solitário
a fratura das águas
e o encontro.



PROENÇA FILHO, Domício. O risco do jogo. São Paulo: Prumo, 2013.

9.12.13

Lançamento de livro de entrevistas de Antonio Cicero: livro organizado por Arthur Nogueira

Dia 12 (quinta-feira), na Argumento


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Na mesma ocasião será lançado o livro mais cotidiano que o cotidiano,
do poeta Alberto Pucheu.

Clique na imagem para ampliá-la:

8.12.13

Waly Salomão: "Minha alegria"





Minha alegria

Minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.



SALOMÃO, Waly. Algaravias. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

6.12.13

Jorge Luis Borges: "Un ciego" / "Um cego": trad. de Augusto de Campos





Un ciego

No sé cuál es la cara que me mira
Cuando miro la cara del espejo;
No sé qué anciano acecha en su reflejo
Con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro
Mis invisibles rasgos. Un destello
Me alcanza. He vislumbrado tu cabello
Que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente
La vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,

Pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
Sabría quién soy en esta tarde rara.



Um cego

Não sei qual é a cara que me mira
Quando olho minha cara em um espelho;
Em seu reflexo não sei quem é o velho
Que me olha com cansada e muda ira.

Lento na sombra, com a mão exploro
As invisíveis rugas. Eis que assoma
Um lampejo. Vislumbro a tua coma
Que hoje é cinza ou ainda é de ouro.

Repito que perdi unicamente
A aparência superficial das cousas.
O consolo é de Milton e é potente,

Mas penso nas palavras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver-me a cara
Saberia quem sou na tarde rara.



BORGES, Jorge Luis. Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.




3.12.13

Helio Jaguaribe: "Breve referência aos deuses gregos"




A importância que o Professor Helio Jaguaribe teve na minha formação intelectual é imensa. Ele era um dos grandes amigos do meu pai, Ewaldo Correia Lima. Quando fiz quinze anos, meu pai foi trabalhar no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), situado em Washington DC, para onde toda nossa família se mudou. O Professor Helio, nessa época, lecionava na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachussets. Corria a fama de que era tal o brilhantismo de suas aulas que lhes acontecia serem, de vez em quando, interrompidas pelos aplausos dos estudantes entusiasmados: aplausos que ele acabou por proibir, por julgar que prejudicavam o clima de distanciamento intelectual mais propício às atividades acadêmicas.

Pois bem, nessa época, de vez em quando o Professor Helio nos visitava em Washington, e eu era um ouvinte deslumbrado das conversas dele com meu pai. Já tive em minha vida vários excelentes professores, tanto no Brasil quanto no exterior, mas jamais conheci alguém cujo discurso fosse tão fecundamente luminoso quanto o do Professor Helio Jaguaribe. Faço agora questão de lhe agradecer publicamente, pois foi a partir de suas palavras que descobri um dos maiores prazeres da minha vida, que é o de estudar filosofia.


Agradeço-lhe também por uma razão pontual. É que, a meu pedido, o Professor Helio Jaguaribe concedeu-me autorização para aqui postar o seguinte, belíssimo texto de sua autoria:




BREVE REFERÊNCIA AOS DEUSES GREGOS

 Como o poeta Hölderlin (1770-1843), quase acredito na existência dos deuses gregos.  Por quê?  Qual a causa desse profundo fascínio?  Por que um brasileiro, escrevendo estas linhas em Petrópolis, nos albores do séculos XXI, experimenta essa profunda atração por Pallas Athenea e seus irmãos olímpicos, pelos Titans, pelas Musas, pelas Erinyas e pelas Moiras?
Questões desse tipo envolvem muitas dimensões.  Uma primeira e principal é obviamente, a paixão pela Grécia.  Amar o mundo clássico significa, no fundamental, nele encontrar, em múltiplos sentidos, as expressões máximas do humano.  Ora o mundo clássico significa, por um lado, essa extraordinária gesta que vai dos descendentes de Deucalion a Alexandre, de Homero a Eurípides, de Thales a Aristóteles e, por outro lado, essa fabulosa mitologia que vai de Gaia e Uranus aos Olímpicos e aos deuses chtonianos.
No âmbito do amor à Grécia, destaca-se o fascínio por seus deuses.  Esse fascínio, mais uma vez, tem múltiplas causas.  Mencionaria duas como particularmente relevantes.  A causa mais imediata é o fato de os deuses gregos serem, no fundamental, expressões antropomórficas das grandes qualidades e das grandes expectativas do homem.  Assim Zeus, onipotente, representa o poder ordenador do mundo e dos homens.  Apolo é a perfeição masculina, a luminosidade e a poesia.  Atenas é a sabedoria.  Afrodite, o amor, Dionísio, o êxatase e o vinho, Heracles, a força e o heroísmo.
A segunda razão tem a ver com o que eu denominaria de ateísmo transcendente.  Para os que chegaram, filosoficamente, à convicção de que Deus não existe mas, ao mesmo tempo, acreditam em valores transcendentais – o Bem, a Justiça, a Verdade, o Belo – os deuses gregos personificam esses valores e constituem, miticamente, seus promotores e defensores.  Tenho em meu escritório um lindo busto de Atenas, a quem rendo, diariamente, o equivalente a um culto.  Não se trata, ainda que miticamente, de implorar sua proteção, porque não estão em jogo, por razões de elementar realismo, relações de causa e efeito.  Trata-se de uma invocação inspiradora, como a dos poetas que apelam para a Musa.
Para um intelectual com minhas características pessoais, freqüentar, imaginativamente, os deuses gregos, é uma forma de imprimir a minhas elucubrações uma motivação transcendental.
Trata-se de um delicioso faz-de-conta, que me leva a pretender receber o apoio dos deuses para minhas iniciativas, conferindo-lhes uma validade superior a que tenham.  É algo, por outro lado, que estreita minhas relações de identificação com a cultura clássica e com as figuras do panteon
helênico-romano, com os pré-socráticos, notadamente Heráclito e Demócrito, com a tríade Sócrates, Platão, Aristóteles, como o mundo helenístico de Epicuro e Zeno e com o mundo romano, de Cícero e César a Sêneca e Marco Aurélio.
O que é extraordinário, nos deuses clássicos é a fusão que neles se realiza entre o humano e o super-humano.  Dispõem das qualidades super-humanas requeridas para os eternos habitantes do Olimpo.  Mas se conservam profundamente humanos em suas motivações, com muitos dos defeitos do homem.  Dispondo de um corpo super-humano, não padecem de limitações como o sofrimento físico, a doença, o envelhecimento e a morte.  Tampouco estão  sujeitos à gravidade e à cronologia, deslocando-se instantaneamente no espaço e no tempo.  Mas padecem do amor e do ciúme, da inveja e da cólera e de expectativas que nem sempre logram realizar, como a paixão de Apolo por Daphne.
Os deuses gregos não prescrevem, salvo em termos muito genéricos, (basicamente contra a perfídia), uma conduta ética.  Minha pessoal preocupação ética não decorre deles nem neles se baseia.  O que deles decorre e neles se baseia é minha aspiração à excelência.  Todos os deuses gregos são personificações de excelência nas qualidades que lhes são peculiares.  Uma excelência para a qual estimulam os que protegem, como Atenas em relação a Odisseus.  Uma excelência, por outro lado, que leva alguns a não suportar a de outrem, como Apolo sacrificando Marsyas por sua superior capacidade de tocar a flauta.
Além de poderoso estímulo os deuses gregos proporcionam indispensável apoio para a compreensão do mundo clássico.  Como é sabido, o panteon helênico se transferiu aos romanos, alguns deuses conservando o mesmo nome, como Apolo, mas a maioria adquirindo nomes latinos, como Júpiter para Zeus, Diana para Ártemis, Baco para Dionísio.  Conservaram, em sua versão romana, as características que ostentavam na helênica, embora, em alguns casos, tenham experimentado certa degradação, Vênus tornando-se mais sensual que Afrodite, Marte mais militar que Ares, Baco mais grosseiro que Dionísio, Vulcano, mais artesão do que Hefaisto.
O apelo aos deuses gregos, no quotidiano de nossos dias, é uma forma amável de referir criscunstâncias superiores sem recorrer ao divino das religiões monoteístas.  Assim “dei volendi”, em lugar de se Deus quiser.  O que torna particularmente simpático, para um ateu transcendente, a referência aos deuses, notadamente tomados no plural, é o fato de dessa forma se assinalar o que supera o correntemente humano sem se incidir em mitos sobrenaturais.  Os deuses gregos são supremos entes da cultura, não objetos de fé.


JAGUARIBE, Helio. "Breve referência aos deuses gregos". In:_____. Estudos filosóficos e políticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. 

1.12.13

Arnaldo Antunes: "Sou volúvel"




Meu querido amigo Adriano Nunes enviou-nos o link para um belíssimo -- e oportuníssimo -- clip de Arnaldo Antunes. Vejam:

http://youtu.be/N4CFyktqZEs

Ingeborg Bachmann: "Exil" / "Exílio": trad. por Vera Lins






Exílio

Um morto eu sou, ambulante
registrado em parte nenhuma
desconhecido no reino do prefeito
excedente nas cidades douradas
e no campo verdejante

despachado há muito
sem receber nada

Apenas o vento, o tempo e o som

que não posso viver no meio dos homens

Eu com a língua alemã
esta nuvem em torno de mim
que mantenho como casa
divago por todas as línguas

Ó como ela escurece
os tons sombrios, de chuva
só esses poucos que caem

Depois ela leva o morto para cima, a zonas mais claras.


Exil

Ein Toter bin ich der wandelt
gemeldet nirgends mehr
unbekannt im Reich des Präfekten
überzählig in den goldenen Städten
und im grünenden Land


abgetan lange schon
und mit nichts bedacht

Nur mit Wind mit Zeit und mit Klang

der ich unter Menschen nicht leben kann

Ich mit der deutschen Sprache
dieser Wolke um mich
die ich halte als Haus
treibe durch alle Sprachen

O wie sie sich verfinstert
die dunklen die Regentöne
nur die wenigen fallen

In hellere Zonen trägt dann sie den Toten hinauf




BACHMANN, Ingeborg. Trad. por Vera Lins. In: LINS, Vera. Ingeborg Bachmann. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.



30.11.13

Ingeborg Bachmann: ["Em cada obra..."] / trad. de Vera Lins






Em cada obra, há uma falta que impele a outra obra. O entusiasmo com alguns textos é o entusiasmo pela folha branca ainda não escrita".



BACHMANN, Ingeborg. Cit. por LINS, Vera. In:_____. Ingeborg Bachmann. Ciranda da poesia. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.

29.11.13

Lançamento da revista-disco BLISS NÃO TEM BIS

HOJE! Às 18h30, lançamento da revista-disco BLISS NÃO TEM BIS,  na UERJ


Clique na imagem para ampliá-la:

26.11.13

W.B. Yeats: "Death" / "Morte": trad. José Agostinho Baptista





Morte

Nem temor nem esperança assistem
Ao animal agonizante;
O homem que seu fim aguarda
Tudo teme e espera;
Muitas vezes morreu,
Muitas vezes de novo se ergueu.
Um grande homem em sua altivez
Ao enfrentar assassinos
Com desdém julga
A falta de alento;
Ele conhece a morte até ao fundo —
O homem criou a morte.



Death

Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone –
Man has created death.



YEATS, W.B. Uma antologia. Seleção e tradução de José Agostinho Baptista. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.


24.11.13

Izacyl Guimarães Ferreira: "Altamira e Alexandria §44"





44

Onde estão todos eles, os que há pouco
riam, cantavam, dançavam nos palcos
e bares da cidade antiga? Onde,
onde as falas e os beijos, nosso olhar
a tecer um passado que não passa
e quer guardar-se contra toda palha?

Onde o ombro do amigo para o medo,
a confidência e os sonhadores planos?
E aquela que partiu como um segredo
nas fogueiras acesas desses anos?
Como salvar das perdas nossos ganhos,
cantando os vinhos e as danças de antanho?



FERREIRA, Izacyl Guimarães. Altamira e Alexandria. São Paulo: Scortecci, 2013.

22.11.13

Eugénio de Andrade: "Frutos"





Frutos

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.




ANDRADE, Eugénio. Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo e notas de Alberto Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

21.11.13

Erick Monteiro Moraes: "PRIMAVERA-VERÃO" / Adriano Nunes: Sobre 'PRIMAVERA-VERÃO', de Erick Monteiro Moraes



Abaixo, o leitor encontrará um poema que o Erick Monteiro Moraes enviou para o blog e um comentário sobre esse poema, que me foi enviado pelo Adriano Nunes:


Poema do Erick:


PRIMAVERA-VERÃO

Sentir o frescor
domesticado das pétalas
do ventilador.



Comentário do Adriano:


o poema do Erick é bastante belo, por vários motivos: sintético, por ser uma haicai, obedece à métrica 5/7/5, dá-nos a imagem de duas estações ao mesmo tempo: primavera (pétalas) e verão ( ventilador). Mas a mágica se dá pela escolha das palavras. Veja que "primavera" começa com "P" assim como "pétala". "Verão" começa com "V" assim como "ventilador". A palavra "domesticado" tem um sentido brilhante: o fato de o ventilador ser controlado, ter velocidade controlada, as pétalas girarem sob comando. Quando a gente tira certas flores, como margaridas em que a haste verde e a coroa de pétalas amarelas formam uma hélice, brincamos , muitas vezes, de girá-las. Pois é. É um pequeno grande poema. Desses que acontecem poucas vezes. Não sou fã de haicais, mas não posso deixar de dizer que fiquei impressionado com a beleza desse poema.




20.11.13

FLUPP: Festa Literária das Periferias



Clique na imagem para ampliá-la:










19.11.13

Cacaso: "Lar doce lar"




             Lar doce lar

                                                 Para Maurício Maestro

Minha pátria é minha infância:
por isso vivo no exílio.        




CACASO. "Lar doce lar". In: MORICONI, Ítalo (org.). Destino: poesia. Antologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

16.11.13

Johannes Bobrowski: "Ebene" / "Planície": trad. Antonio Cicero




Planície

Lago.
O lago.
Afundadas
as bordas. Sob as nuvens
o grou. Branco, iluminando
milênios
de povos pastores. Com o vento

eu ia subindo a montanha.
Aqui viverei. Caçador
eu era, mas me agarrou
a grama.

Ensina-me a falar, grama,
ensina-me a ficar morto e a escutar,
longamente, e a falar, pedra,
ensina-me a ficar, água,
e vento, não me interrogues.



Ebene
See.
Der See.
Versunken
die Ufer. Unter der Wolke
der Kranich. Weiß, aufleuchtend
der Hirtenvölker
Jahrtausende. Mit dem Wind

kam ich herauf den Berg.
Hier werd ich leben. Ein Jäger
war ich, einfing mich
aber das Gras.

Lehr mich reden, Gras,
lehr mich tot sein und hören,
lange, und reden, Stein,
lehr du mich bleiben, Wasser,
frag mir, und Wind, nicht nach.




BOBROWSKI, Johannes. Schattenland Ströme. Stuttgart: Deutsche Verlags-Anstalt, 1963.

15.11.13

Leonardo Sakamoto: "Obrigado, São Paulo! Este congestionamento recorde é motivo de orgulho"

O seguinte, ótimo, artigo de Leonardo Sakamoto foi publicado no Blog do Sakamoto (http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/author/sakamoto/em 14/10:


Obrigado, São Paulo! Este congestionamento recorde é motivo de orgulho

Este é um dia histórico, daqueles para se guardar no coração: batemos o recorde de congestionamento em São Paulo! Foram 309 quilômetros de geométricos engarrafamentos, às 18h, desta véspera de feriado. Nunca na história da cidade houve tanto carro enfileirado em um hipnotizante anda-e-para.
Estou realmente emocionado e queria agradecer a todos que tornaram isso possível.
#orgulhopaulistano
#orgulhobandeirante
#SPagregavaloraocamarote
Obrigado às gerações de gestores municipais, estaduais e federais que elaboraram políticas voltadas a beneficiar o transporte individual em detrimento ao coletivo, seja para deslocamento municipal, regional e interestadual. Obrigado por terem incentivado financeiramente a população a comprarem seus bólidos para suprirem as frustrações do dia-a-dia sob a justificativa de geração de empregos ao invés de usarem esses recursos na criação de postos de trabalho para a fabricação e veiculação de ônibus, trens, bondes e na reestruturação da malha urbana para acolher ciclistas e pedestres.
Obrigado a eles também pela falta de ações para descentralizar o desenvolvimento econômico, forçando moradores, principalmente os mais pobres, a cruzarem a cidade ao invés de poderem trabalhar, estudar e se divertir perto de casa.
Obrigado imensamente à indústria automobilística. Sem vocês, e suas campanhas, seria impossível o paulistano compreender a principal regra da cidade: quem não possui um carro é a titica do cavalo do bandido.
E, por fim, mas não menos importante, agradecer a você, eleitor e consumidor. Essa conquista também é sua.
Vamos, vamos comemorar! Ouça um Chico Buarque no trânsito. E, se não for o motorista, leia uma biografia. Não se preocupe, tem tempo.

E entorpecido pela promessa vazia da liberdade dos comerciais de TV que vendem sonhos em 60 vezes, aproveite para esquecer que a vida enjaulada no trânsito da metrópole não é vida.

13.11.13

Sophia de Mello Breyner Andresen: "A casa térrea"




A casa térrea

Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não
                                                                            [soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre

Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás -- como se diz -- a casa térrea --
Construirás a partir do fundamento



ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "O nome das coisas". In:_____. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011.


10.11.13

Rubem Fonseca: "Restos"





Restos

O garçom era um velho
habituado a ouvir as queixas dos fregueses
enquanto esperava
a aposentadoria e a morte.
Tinha um rosto branco
enrugado e triste.
Enquanto isso,
a freguesa da mesa da frente,
com ávida sensibilidade de radar,
corria o olhar de um lado para o outro,
procurando machos ainda curiosos
de sua beleza evanescente.
Quando saímos,
éramos os últimos,
uma fila disciplinada de fodidos
esperava os restos finais do dia.
Os restos dos restos
iriam depois para os cães
ainda mais famintos.
Era uma mulher magra
de lábios finos.



FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

8.11.13

Entrevista para Pedro Vale, do jornal "Tribuna do Norte"

Eis a entrevista que dei, na semana passada, para o Pedro Vale, da Tribuna do Norte, de Natal: 





1 - O que podemos esperar da aula espetáculo que vai acontecer no dia de abertura da Feira?
Pela primeira vez, Marina e eu vamos, lado a lado, falar em público sobre nossa parceria, explicando como começou, como compomos nossas canções, de que modo nos inspiramos para compor algumas delas, o que pensamos de nosso trabalho conjunto etc. Acho que nós mesmos não sabemos bem o que esperar desse encontro, mas esperamos que dê certo e seja interessante para o público.

2 - Há diferença entre se escrever a letra de uma canção e se escrever para um livro?
Sim, pois escrevo minhas letras, em geral, para melodias já prontas, que me são dadas por meus parceiros ou parceiras. Logo, não posso deixar de levar em conta não só a própria melodia, com todas as suas sugestões, como o parceiro ou parceira em questão, e a pessoa que deverá cantar a canção final. Já quando escrevo um poema, não penso senão no que vai acontecendo na minha cabeça enquanto o escrevo.

3 - Quais os benefícios de se ter a(o) irmã(o) como parceira(o) de trabalho?
A vantagem é a intimidade que os irmãos têm. Na hora de compor e de dizer por onde achamos que a canção deve ir, é bom não ter muita cerimônia.

4 - Como a sua musicalidade influencia os seus escritos (os que, evidentemente, não sejam letras de música)?
Na verdade, não sei se sou tão musical assim. Quem é musical é a Marina. Eu faço apenas as letras. Não toco nenhum instrumento e sou inteiramente desafinado. O que acontece é que presto muita atenção ao aspecto sonoro – por exemplo, ao ritmo – da própria linguagem e, naturalmente, ao fazer um poema, sou capaz de usar qualquer um dos recursos de versificação que me ocorrerem.

5 - Quais músicos atuais você escuta e quais escritores dessa geração você lê?
Escuto, por exemplo (e por ordem alfabética) , Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Arthur Nestrovski, Arthur Nogueira, Caetano Veloso, Cid Campos, João Bosco, José Miguel Wisnik, Leo Cavalcanti, Luis Tatit, Martinália, Péricles Cavalcanti...


6 - Que artistas, sejam de qual época e de qual mídia for, inspiraram o seu trabalho?
Muitos; por exemplo (em ordem alfabética) Anacreonte,  Baudelaire, Bob Dylan, Caetano Veloso, Calímaco, Catulo, Drummond, Hölderlin, Horácio, Rilke, Rimbaud, Shakespeare, T.S. Eliot, Vinícius, Yeats...                                                                            

7 - Como a maturidade e experiência adquiridas em décadas de fazer artístico e intelectual influenciam sua produção atual?
Não sou eu a melhor pessoa para julgar meu próprio trabalho e minha própria evolução. Não sei dizer.

8 - Depois de já ter trilhado por tantas mídias diferentes, que novidades podemos esperar de você no futuro?
Quando muito, novos poemas, novas letras e novos ensaios de filosofia.

9 - Não podemos deixar de falar das biografias não-autorizadas. Você é a favor ou contra? Por quê?

Sou contra a proibição de biografias não autorizadas. Parecem-me inconstitucionais os artigos 20 e 21 do código civil, pois contradizem o artigo 5º, inciso IV da Constituição, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e contradizem o artigo 5º, inciso IX, segundo o qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E o inciso do mesmo artigo 5º que trata da privacidade, que é o X, diz apenas que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, ASSEGURADO O DIREITO À INDENIZAÇÃO pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Ou seja, o máximo que se pode pretender é a indenização pelo dano moral, mas jamais a proibição da publicação de um texto. Assim, o que devemos lutar, no Brasil, é para que a justiça, não apenas nesse caso, mas sempre, seja mais ágil; e para que, no caso específico do “dano material ou moral” que uma biografia difamante cause no biografado, seja realmente substancial a indenização imposta ao biógrafo. Acho também que deve ser punida qualquer violação ILEGAL da privacidade de uma pessoa. Ninguém tem o direito, por exemplo, de violar minha correspondência ou de clandestinamente escutar minhas conversas telefônicas.  

5.11.13

Machado de Assis: "A mosca azul"





A mosca azul


Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.


E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.


Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que to ensinou?"


Então ela, voando, e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
"Das graças, o padrão da eterna meninice,
"E mais a glória, e mais o amor."


E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.


Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.


Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu,
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.


Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.


Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.


Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e o parabéns unidos
Das coroas ocidentais.


Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpo os corações.


Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Como um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.


Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.


Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.


Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.


Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.



ASSIS, Machado de. "Ocidentais". In:_____. Obra completa, vol.3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. 

1.11.13

Ferreira Gullar: "Anoitecer em outubro"






Anoitecer em outubro

A noite cai, chove manso lá fora
     meu gato dorme
          enrodilhado
               na cadeira

Num dia qualquer
          não existirá mais
          nenhum de nós dois
para ouvir
          nesta sala
a chuva que eventualmente caia
          sobre as calçadas da rua Duvivier



GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

29.10.13

28.10.13

Carlos Pena Filho: "As dádivas do amante"






As dádivas do amante


Deu-lhe a mais limpa manhã
que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
e mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
deu-lhe o verde da ramagem,
deu-lhe o sol do meio dia
e uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
e a que ainda estava por vir,
deu-lhe a bruma dissipada
que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
em que uma rosa floriu
nascida do próprio vento;
ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
e um amanhecer violento
que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
e mais não podia dar.




PENA FILHO, Carlos. Livro geral -- poemas. Org. e seleção de textos por Tânia Carneiro Leão. Recife: Liceu, 2004.

26.10.13

Adriano Nunes: "O espantalho"




Obrigado, Adriano, pelo belo poema que me dedicou.
                                                                              A.C.




O espantalho

                                    para Antonio Cicero

Não mais tenho os meus 
Artelhos de palha
Velha, nem a mente
A voar co' os corvos.

Quase a chuva e sol 
Cegaram-me. Uns pelos,
Do espelho de orvalho,
Vão-se, longe, sinto-os,

De mim, como folhas
Que levar se deixam,
Além, espalhando-me.
Sou esta fagulha

Que aos poucos se esvai, 
Tralha sobre tralha,
Trapo sobre trapo...
Perdi-me, entre agulhas, 

As pilhas de milhos,
As ilhas de emendas,
As trilhas das traças
E o que partilhei

Com todos,  meu ser
De pano e propósito,
O espantalho à espera
Da grã primavera.

Abro bem os braços
E em mim embaralho-me.
Um dia terei
Cabelos grisalhos?

Espanto-me. Encanto-me.
Em um salto mágico,
Todo o cosmo varro, e a
Dizer que me adora


Ouço o vento agora.





24.10.13

Carlos de Oliveira: "O viandante"






O viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.



OLIVEIRA, Carlos de. Mãe pobre. Coimbra: Coimbra Editora, 1945.

21.10.13

Gustavo Binenbojm: "Falso dilema"




Creio que o melhor artigo que li sobre a questão das biografias foi o seguinte, do professor Gustavo Binenbojm, publicado ontem em O Globo:




Falso dilema
Gustavo Binenbojm
(de O Globo - 20/10/2013)

O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de  obras biográficas sem o consentimento dos personagens biografados  tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada.

O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim. Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade. Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.

Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós. Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias:

( 1) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras;

(II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.

Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento. Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.

Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!”. O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo. É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.

A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.



Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade de  Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  e advogado da Associação Nacional dos Editores de  Livros

18.10.13

Hans Peter Keller: "Komm gehn wir" / "Vem vamos": trad. Antonio Cicero





Vem vamos

Eu
perdi o fio
tu perdeste o fio
o fato é que nós perdemos
o fio

vem
deixemos o fio não passar de um fio
vem isso será nosso
fio condutor
vamos.



Komm gehn wir

Ich habe
den Faden verloren
du hast den Faden verloren
nun haben wir also den Faden
verloren

Komm wir
lassen den Faden Faden sein
kom das wird unser
Leitfaden sein
gehn wir.




KELLER, Hans Peter. Stichwörter, Flickwörter. Wisbaden: Limes Verlag, 1969.



16.10.13

Alberto da Costa e Silva: "Hoje: gaiola sem paisagem"





Hoje: gaiola sem paisagem

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos
enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas, por exemplo.




COSTA E SILVA, Alberto da. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

13.10.13

Vinícius de Moraes: "O mosquito"






O mosquito

Parece mentira
De tão esquisito:
Mas sobre o papel
O feio mosquito
Fez sombra de lira!



MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Org. de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

10.10.13

Rose Ausländer: "Erfahrung" / "Experiência": trad. Antonio Cicero





Experiência

Colher experiência
em florestas montanhas
cidades

Nos olhos
das pessoas

Em conversas
no silêncio




Erfahrung

Erfahrung sammeln
in Wäldern Bergen
Städten

In den Augen
der Menschen

In Gesprächen
im Schweigen




AUSLÄNDER, Rose. Poèmes. Baillé: URSA, 1988.

6.10.13

Rainer Maria Rilke: "Sonette an Orpheus (I.19)" / "Sonetos a Orfeu (II.19)": trad. Augusto de Campos






I.19

Mesmo que o mundo mude com rapidez,
como nuvens em movimento,
tudo volta outra vez
ao primeiro momento.

Sobre as mudanças, quanto
mais livre ainda se estira
e dura o teu pré-canto,
deus com a lira!

Não se compreende a dor,
não se aprende o amor,
e ao que na morte nos desterra

a mente é muda.
Só o canto sobre a terra
salva e saúda.




I.19

Wandelt sich rasch auch die Welt
wie Wolkengestalten,
alles Vollendete fällt
heim zum Uralten.

Über dem Wandel und Gang,
weiter und freier,
währt noch dein Vor-Gesang,
Gott mit der Leier.

Nicht sind die Leiden erkannt,
nicht ist die Liebe gelernt,
und was im Tod uns entfernt,

ist nicht entschleiert.
Einzig das Lied überm Land
heiligt und feiert.




RILKE, Rainer Maria. "Sonette an Orpheus". In: CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.



4.10.13

Fernando Sabino: "O homem nu"




Li e fiquei maravilhado com a seguinte crônica de Fernando Sabino quando eu era ainda adolescente. Ainda a amo. Clássicos não envelhecem. Vejam: 



O homem nu


Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.


Não era: era o cobrador da televisão.




SABINO, Fernando. O homem nu. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.

2.10.13

Jorge de Sousa Braga: "Poema de amor"





Poema de amor

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que ele não
                      te coubesse no dedo.




BRAGA, Jorge de Sousa. "Poema de amor". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

30.9.13

Paul Celan: "Soviel Gestirne" / "Tantas constelações": Trad. João Barrento






TANTAS CONSTELAÇÕES que
nos são oferecidas. Quando
para ti olhei -- foi quando? – estava
lá fora nesses
outros mundos.

Oh, estes caminhos, galácticos,
Oh, esta hora que nos
trouxe as noites lançando-as
na carga dos nossos nomes. Não
é verdade, bem o sei,
que tenhamos vivido, passou,
cego, apenas um sopro entre
Lá e Não-aqui e Às-vezes,
como um cometa, um olho passava vibrante
em busca de fogos extintos, nos desfiladeiros,
no lugar do lume a apagar-se estava
o tempo num esplendor de tetas,
e por ele acima e abaixo já
crescia e passava o que
é ou foi ou há-de ser –,

eu sei,
eu sei e tu sabes, nós sabíamos,
não sabíamos, nós
afinal estávamos aqui e não lá
e às vezes, quando
entre nós só havia o Nada, o nosso
encontro era perfeito.




SOVIEL GESTIRNE, die
man uns hinhält. Ich war,
als ich dich ansah – wann ? –,
draußen bei
den anderen Welten.

O diese Wege, galaktisch,
o diese Stunde, die uns
die Nächte herüberwog in
die Last unsrer Namen. Es ist,
ich weiß est, nicht wahr,
daß wir lebten, es ging
blind nur ein Atem zwischen
Dort und Nicht-da und Zuweilen,
kometenhaft schwirrte ein Aug
auf Erloschenes zu, in den Schluchten,
da, wo’s verglühte, stand
zitzenprächtig die Zeit,
an der schon empor- und hinab-
und hinwegwuchs, was
ist oder war oder sein wird -,

ich weiß,
ich weiß und du weißt, wir wußten,
wir wußten nicht, wir
waren ja da und nicht dort,
und zuweilen, wenn
nur das Nichts zwischen uns stand, fanden
wir ganz zueinander.



CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.

27.9.13

Duda Machado: "Imitação das coisas"





Duda Machado:

Imitação das coisas

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos e concentrados
- como no amor -, decididos
a alcançá-las, embora adivinhando,
e já pouco importa, que ainda
não estamos preparados.




MACHADO, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Editora 34, 1997.

24.9.13

António Ramos Rosa: "Poema dum funcionário cansado"






Poema dum funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só




ROSA, António Ramos. Poemas de António Ramos Rosa. Aprsentação, seleção, notas e sugestões para análise literária de Cristina Almeida Ribeiro. Lisboa: Editoral Comunicação, 1985.



22.9.13

Diego Mendes Sousa sobre "Porventura"





O poeta Diego Mendes Sousa me surpreendeu e alegrou ao preparar um belo post sobre meu livro Porventura. Encontra-se no blog dele, aqui: http://www.proparnaiba.com/artes/2013/09/21/porventura-com-antonio-cicero-o-s-mbolo-s-3h47.html.


21.9.13

Luis Miguel Nava: "Falésias"







Falésias


Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual ele vem com um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão, fá-lo por mim.




NAVA, Luis Miguel. Como alguém disse. Lisboa: Contexto, 1982.

18.9.13

Chega de fetiche





O seguinte artigo meu foi publicado na segunda-feira, 16 de setembro, em O Globo, na coluna de colunistas convidados intitulada "O Estado da Arte" (http://oglobo.globo.com/cultura/chega-de-fetiche-9969532#ixzz2fGcou558): 


Chega de fetiche

RIO - Salta aos olhos a pluralidade formal da poesia contemporânea. Poemas concretos, sextinas, poemas em versos livres, sonetos, poemas em prosa, haikus... Para os poetas contemporâneos, não há nem tabus nem fetiches. Em princípio, nada é a priori exigido ou proibido.

Não me surpreende, porém, que haja versejadores e críticos que, rejeitando tal abertura, sejam nostálgicos do mundo fechado e tradicionalista, e condenem tudo o que não se conforme a padrões estabelecidos. Sempre haverá reacionários

O que acho estranho é o modo, digamos, pseudoprogressista de pensar daqueles que, no polo oposto, acreditam que a pluralidade formal seja efeito de uma espécie de pós-modernismo retrógrado ou de má-fé daqueles que valorizam a tradição acima da invenção.
A meu ver, como já observei em diferentes artigos, a pluralidade formal não é efeito de nenhum movimento “pós-modernista”. Trata-se, ao contrário, da plena realização da modernidade, no campo da poesia.

Pode-se dizer que tanto as culturas pré-modernas quanto o mundo incipientemente moderno haviam fetichizado (isto é, imaginariamente atribuído poderes mágicos a) determinadas formas poéticas, tais como a métrica, a rima e o verso, convencidos de que, fora delas, não era possível produzirem-se poemas de verdade.

De maneira geral, as vanguardas modernas, ao realizarem obras que ao longo do tempo foram reconhecidas como efetivamente poéticas, apesar de não se conformarem às formas fetichizadas, provaram o caráter meramente convencional de tais formas.

Por outro lado, se, tradicionalmente, as formas convencionais haviam sido tomadas como as únicas admissíveis na poesia, os poetas vanguardistas passaram a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis — verdadeiros tabus — na poesia. Sendo assim, pode-se dizer que, ao fazê-lo, esses poetas mantiveram tais formas fetichizadas, tendo apenas invertido o valor desse fetiche.

Com o tempo, porém, tendo aparecido poemas modernos e de grande qualidade que empregavam formas tabuizadas como sonetos — lembro, por exemplo, os de Carlos Drummond de Andrade (que, aliás, havia sido um poeta vanguardista) no livro “Claro enigma” — desmoralizou-se também esse fetiche negativo.

Pois bem, tanto, por um lado, o questionamento e a rejeição vanguardista do fetichismo das formas tradicionais quanto, por outro, o questionamento e a rejeição pós-vanguardista dos tabus vanguardistas fazem, evidentemente, parte do ceticismo moderno em relação a toda tese que não passa de preconceito, isto é, que não é capaz de se sustentar racionalmente. Por isso, afirmo que resulta da plena realização da modernidade no campo da poesia a consciência de que não há formas — experimentais ou tradicionais — que sejam, em princípio, incompatíveis com a produção de um poema.

Voltando aos “pseudoprogressistas”, inimigos da pluralidade formal contemporânea, lembro de ter lido textos que lamentam que as formas poéticas tenham deixado de ser valores que cobrem “adesão” à experiência histórica de sua época. Tais textos incorrem exatamente no fetichismo formal de que já se livraram quase todos os poetas contemporâneos. O fato é que as formas poéticas jamais cobram adesão nenhuma. Um soneto tinha um sentido para Petrarca, outro, completamente diferente, para Ronsard, e um terceiro, também completamente diferente, para Góngora; e o mesmo pode ser dito, em relação a seus predecessores, de um soneto de Baudelaire ou de Mário de Andrade ou de Drummond, ou de Paulo Henrique Britto. Ademais, o soneto de cada um deles tem a ver com a respectiva época, e não com as dos seus antecessores.

A verdade é que, em cada poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. É entre formas que se repetem e formas que não se repetem que se criam todos os poemas. A sintaxe do poema, seu ritmo, sua melodia, as relações paronomásticas das palavras que o compõem e as próprias palavras são formas/conteúdos. Em relação a tais formas, as formas fixas não possuem nenhum privilégio. Trata-se apenas de formas que foram catalogadas porque se repetiram com frequência. Nesse sentido, elas se assemelham às próprias palavras da língua. No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que, interagindo entre si, produzem os objetos absolutamente singulares que são os poemas. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons podem ser considerados experimentais.

Além disso, muitos poetas são capazes de usar as formas fixas simplesmente na qualidade de autoimposições formais arbitrárias que, contrapondo-se à espontaneidade criativa, imponham tensões estimulantes ao processo da produção do poema. Tal é o sentido, por exemplo, da afirmação de João Cabral de que a rima é necessária, pois, “para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo”. É muitas vezes com tal propósito que os poetas contemporâneos usam as formas fixas.

Sugiro, portanto, não apenas aos reacionários, mas sobretudo aos pseudoprogressistas, que abandonem seus preconceitos e observem melhor como trabalham e o que produzem os poetas contemporâneos.



Veja também, sobre poesia, a entrevista que concedi ao jornalista Arnaldo Bloch, em http://oglobo.globo.com/videos/t/todos-os-videos/v/antonio-cicero-fala-sobre-o-que-e-a-poesia-hoje/2822935/.


16.9.13

Ferreira Gullar: "Ocorrência"







Ocorrência

Aí o homem sério entrou e disse: bom dia
Aí o outro homem sério respondeu: bom dia
Aí a mulher séria respondeu: bom dia
Aí a menininha no chão respondeu: bom dia
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores, as paredes, o relógio, a lâmpada, o retrato, os livros, o mata-borrão, os sapatos, as gravatas, as camisas, os lenços




GULLAR, Ferreira. "O vil metal". In:_____. Toda poesia. 1950-1980. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 

14.9.13

Adriano Espínola: "A rendeira"






A rendeira

Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente,tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento,
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?




ESPÍNOLA, Adriano. Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 

10.9.13

Exposição de Luciano Figueiredo: "fabri fabulosi -- imagem-legenda: um cine-romance"

Imperdível exposição de Luciano Figueiredo, no Oi Futuro Ipanema:



Manuel Bandeira: "Canção das duas Índias"






Canção das duas Índias

Entre estas Índias de leste
E as Índias ocidentais
Meus Deus que distância enorme
Quantos Oceanos Pacíficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medeias
Púbis a não poder mais
Altos como a estrela d'alva
Longínquos como Oceanias
-- Brancas, sobrenaturais --
Oh inacessíveis praias!...




BANDEIRA, Manuel. "Estrela da manhã". In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.

8.9.13

Antonio Carlos Secchin: Cisne






Cisne 

                                                    À memória de Cruz e Souza
                                                                       A Iaponan Soares


Vagueia, ondula, indomado e belo, 
um cisne insone em solitário canto. 
Caminha à margem com a plumagem negra, 
em meio a um bando de pombas atônitas. 

Encontra um outro, de alvacentas plumas, 
um ser sagrado no monte Parnaso, 
e enquanto o branco vai vencendo a bruma 
ele naufraga, bêbado de espaço. 

Em vão indaga, o olhar emparedado 
na vertigem da luz que o sol encerra: 
"Se em torno tudo é treva, tudo é nada, 

como sonhar azul em outra esfera?" 
Negro cisne sangrando em frente a um poço. 
Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto. 




SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

7.9.13

Armando Freitas Filho: "Encontrar o que se perdeu"

Fiquei felicíssimo de receber o seguinte poema, dedicado a mim, pelo grande poeta Armando Freitas Filho:



Encontrar o que se perdeu

                                           para Antonio Cicero

Encontrar o que se perdeu
dentro da cabeça
antes de usar a mão
para pegá-lo fora dela
e encontrar-se no sentimento
longínquo, quase esquecido
é encontrar os óculos para ver melhor
a hora certa do dia, reaprender
apreender, usufruir de novo
o gosto de saber, guardar
ainda que for para dar ou dividir
porque assim não estará
nem perdido, nem preso, nem à parte. 

5.9.13

Luis Lisboa: "Soneto"





Soneto

Tu és o quelso do pental ganírio
saltando as rimpas do fermim calério,
carpindo as taipas do furor salírio
nos rúbios calos do pijón sidério.

És o bartólio do bocal empíreo
que ruge e passa no festão sitério,
em ticoteio no partano estírio,
rompendo as gambas do hortomogenério.

Teus belos olhos que têm barlacantes
são camensúrias que carquejam lantes
nas duras pélias do pegal balônio;

são carmentórios de um carcê metálico,
de lúrias peles em que buza o bálico
em vertimbáceas do cental perônio.




LISBOA, Luis. "Soneto". In: CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. Rio de Janeiro: Conquista, 1960,

4.9.13

Jorge Luis Borges: "A Luis de Camoens" / "A Luis de Camões: trad. Augusto de Campos






A Luis de Camoens

Sin lástima y sin ira el tiempo mella
Las heroicas espadas. Pobre y triste
A tu patria nostálgica volviste,
Oh capitán, para morir en ella

Y con ella. En el mágico desierto
La flor de Portugal se había perdido
Y el áspero español, antes vencido,
Amenazaba su costado abierto.

Quiero saber si aquende la ribera
Última comprendiste humildemente
Que todo lo perdido, el Occidente

Y el Oriente, el acero y la bandera,
Perduraría (ajeno a toda humana
Mutación) en tu Eneida lusitana.



A Luis de Camões

Sem lástima e sem ira o tempo vela
As heróicas espadas. Pobre e triste
Em tua pátria nostálgica te viste,
Oh capitão, para enterrar-te nela

E com ela. No mágico deserto
A flor de Portugal tinha perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.

Quero saber se aquém dessa ribeira
Última compreendeste humildemente
Que tudo o que se foi, o Ocidente

E o Oriente, a espada e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) na tua Eneida Lusitana.





BORGES, Jorge Luis. Quase Borges: 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.