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3.9.20

José Almino: "A um passante"





A um passante


Passa por mim fulano, a sombra do que foi.
Fora amigo de meu pai e essa imagem,
logo morta,
é tão inútil como a Rua da Matriz,
assim, desassombrada e vazia,
longe de meu afeto e de minha memória.
E, no entanto, esse traço, esse momento,
sopros de um registro involuntário,
perseguem-me por um instante;
não, até agora nessas mal traçadas linhas,
onde a banalidade das coisas se impõe
inconclusa.





ALMINO, José. "A um passante". In:_____. Encouraçado e cosido dentro da pele. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.

29.11.19

José Almino: "O descampado do ócio"




O descampado do ócio


o acanhado das ruas
e das alpercatas

a calha e o lodo
e o assento seboso

o chão de fuligem
e o árido cerrado

a nudez do quintal
 e o musgo e a cisterna

o sol e o sol
e o sol e o mormaço

o tédio feroz
e a dor do inútil

a vida prescrita
e a vida acabada





ALMINO, José. "O descampado do ócio". In:_____. Encouraçado e cosido dentro da pele. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.

23.6.18

José Almino: "Objet trouvé"



Objet trouvé



tudo 
não 
é 
só 
bom

nem 
tudo 
é 
só 
bom




ALMINO, José. "Objet trouvé". In:_____. A estrela fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

26.1.16

José Almino: "Não vem, não passa"




Não vem, não passa


Não passa.

Tão morna,
dissolve na boca
fica o travo,
fiapo no dente
onde a língua solta pega,
mas não liberta.

Como é mesmo o nome?
Da rua, do amigo, da mulher?
Que acidente me trouxe aqui
ao fim da idade que passa?

E o nome mesmo?

Perdido na dor lombar
na calçada estreita,
no suor que empapa a camisa.

O nome, qual é?

Ali sentados, estou a vê-los,
anchos da vida.

Qual é mesmo?

Não adianta.
Não vem, não passa.




ALMINO, José. "Não vem, não passa".

30.8.15

José Almino: "Poema"



Poema

I

Assombrosa é a nitidez do dia
Indiferente ao espanto da morte.

A reunião penitente  dos amigos
E a timidez dos afetos
Pastoreiam a ausência horrível
Nas coisas inertes.

II

O que fica para amanhã
É (quase sempre) o mesmo de hoje.
Como um sujeito oculto,
Guia
E nos exaure aos poucos.

Pouco a pouco.




ALMINO, José. "Poema". Inédito.

1.3.15

José Almino: "Outro dia"




Outro dia

A luz era variável e branda,
sem tirar nem por.
E o rio corria lento atrás das casas,
só faltava falar.

Sem tirar nem por.

Cedinho, as costureiras,
gente tão mansa e afável,
passavam, 
entristeciam a alva em surpresa.

E a poesia era desnecessária.





ALMINO, José: "Outro dia". Inédito.

20.2.14

José Almino: "É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios"





É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios.
Carecem de argúcia alheia
e da retórica.
Procuram uma qualidade
em pedra e cal.

(Repelem-na,
ao mesmo tempo.
Tal é a condição dos enigmas.)

Quedam-se por aí:
esguios ao tato,
ocos de imagem,
ferozes no seu silêncio.

Dignos e sós
como um concerto de violoncelo.



ALMINO, José. A estrela fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

5.5.10

José Almino: A estrela fria II





A estrela fria II

Vieste em meio aos livros infantis
na tepidez das chuvas estivais
ao gosto vivo dos fonemas claros
na rima simples dos quintais.
Duraste a amplidão de uma tarde cara
e a minha sina te acolheu, tão viva
e a minha vida te abraçou, tão rara.
Ali, entre aventuras coloridas
no azul do mais azul dos sóis a pino
sagrou-se o meu destino; mais um pouco:
um certo jeito de sorrir que eu tinha
e o doce mandato da alegria
que vez por outra me acalenta a alma.



ALMINO, José. A estrela fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.