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2.11.08

Sobre o "roubo da história"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 1 de novembro:



Sobre o "Roubo da História"


Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade


NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".

Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.

Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.

Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.

Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.

Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.

Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.

A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.

A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.

A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.

28.7.07

Barbárie e civilização

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da “Ilustrada” da Folha de São Paulo sábado, 28 de julho de 2007:





ANTONIO CICERO

Barbárie e civilização
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O civilizado é aquele que reconhece que as convicções de qualquer cultura são falíveis
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"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.
Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".
É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".
Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".
Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?
Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.
Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.
Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.
Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade.
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.
Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas freqüentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.
A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a conseqüente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.
Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista -e não a partir de crença alguma- que se constitui a civilização.