30.7.10

Jorge Luís Borges: "Cuarteta" / "Quadra"




Quadra

Morreram outros, mas isso aconteceu no
                              [passado,
que é a estação (ninguém o ignora) mais
                              [propícia à morte.
É possível que eu, súdito de Yaqub Almansur,
morra como tiveram que morrer as rosas
                              [e Aristóteles?


Cuarteta

Murieron otros, pero ello aconteció en el
                              [pasado,
que es la estación (nadie lo ignora) más
                              [propicia a la muerte.
¿Es posible que yo, súbdito de Yaqub Almansur,
muera como tuvieron que morir las rosas y
                              [Aristóteles?


[De Diván de Almotásim El Magrebi (siglo XII)]



BORGES, Jorge Luis. "El hacedor". Obras completas I (1923-1972). Buenos Aires: Emecé, 1974

27.7.10

Francis Ponge: "De l'eau" / "Água": trad. de Fred Girauta




Água


Abaixo de mim, sempre abaixo de mim se encontra a água. É com os olhos baixos que sempre a vejo. Como o solo, como uma parte do solo, como uma modificação do solo.

Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: o peso; dispondo de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, traspassando, erodindo, filtrando.

Dentro dela esse vício também brinca: ela desaba sem cessar, renuncia a toda forma a cada instante, tende somente a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens. Sempre abaixo: tal parece ser seu lema: o contrário de excelsior.

*

Poderíamos quase dizer que é louca a água, por esta histérica necessidade, que a possui como ideia fixa, de obedecer somente ao seu próprio peso.

Certamente tudo no mundo conhece essa necessidade, que sempre e em todos os lugares deve ser satisfeita. Esse armário, por exemplo, mostra-se bastante teimoso em seu desejo de aderir ao solo, e se um dia encontrar-se em equilíbrio instável, preferirá atirar-se a resistir. Mas enfim, em certa medida, ele brinca com o peso, desafia-o: não desaba com todas as suas partes, seus moldes e molduras não se conformam. Há nele uma resistência em prol de sua personalidade e de sua forma.

Líquido é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter a forma, o que rechaça toda postura para obedecer ao seu peso. E, por causa dessa ideia fixa, de seu mórbido escrúpulo, perde toda compostura. Desse vício, que o torna rápido, precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz perfurante, por exemplo; astuto, filtrante, circundante; tanto que podemos fazer dele o que quisermos, e conduzir a água por tubos para fazê-la depois jorrar verticalmente, a fim de fruir enfim seu modo de se precipitar como chuva: uma verdadeira escrava.

... Entretanto, o sol e a lua têm ciúme dessa influência exclusiva, e tentam exercer seu poder sobre ela quando se oferece em grandes extensões, sobretudo se ela estiver em estado de mínima resistência, dispersa em finas poças. O sol, então, lhe cobra alto tributo. Ele a força a um ciclismo perpétuo, e a trata como um esquilo em sua roda.

*

A água me escapa... me escorre entre os dedos. E, ainda mais! Não é sequer tão definida (como um lagarto ou um sapo): ainda me restam traços dela nas mãos, manchas relativamente lentas para secar ou que é preciso enxugar. Ela me escapa e, contudo, me marca, independentemente de minha vontade.

Ideologicamente dá no mesmo: ela me escapa, escapa a toda definição, mas deixa rastros, manchas informes em meu espírito e sobre o papel.

*

Inquietude da água: sensível à mínima alteração da declividade. Pulando as escadas com dois pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de obediência pueril, voltando imediatamente quando, através da mudança da inclinação para este lado, ela é chamada.




De l'eau


Plus bas que moi, toujours plus bas que moi se trouve l’eau. C’est toujours les yeux baissés que je la regarde. Comme le sol, comme une partie du sol, comme une modification du sol.

Elle est blanche et brillante, informe et fraîche, passive et obstinée dans son seul vice : la pesanteur; disposant de moyens exceptionnels pour satisfaire ce vice : contournant, transperçant, érodant, filtrant.

À l’intérieur d’elle-même ce vice aussi joue : elle s’effondre sans cesse, renonce à chaque instant à toute forme, ne tend qu’à s'humilier, se couche à plat ventre sur le sol, quasi cadavre, comme les moines de certains ordres. Toujours plus bas : telle semble être sa devise : le contraire d’excelsior.

*

On pourrait presque dire que l'eau est folle, à cause de cet hystérique besoin de n'obéir qu'à sa pesanteur, qui la possède comme une idée fixe.

Certes, tout au monde connaît ce besoin, qui toujours et en tous lieux doit être satisfait. Cette armoire, par exemple, se montre fort têtue dans son désir d’adhérer au sol, et si elle se trouve un jour en équilibre instable, elle préférera s’abîmer plutôt que d’y contrevenir. Mais enfin, dans une certaine mesure, elle joue avec la pesanteur, elle la défie : elle ne s’effondre pas dans toutes ses parties, sa corniche, ses moulures ne s’y conforment pas. Il existe en elle une résistance au profit de sa personnalité et de sa forme.

Liquide est par définition ce qui préfère obéir à la pesanteur, plutôt que maintenir sa forme, ce qui refuse toute forme pour obéir à sa pesanteur. Et qui perd toute tenue à cause de cette idée fixe, de ce scrupule maladif. De ce vice, qui le rend rapide, précipité ou stagnant; amorphe ou féroce, amorphe et féroce, féroce térébrant, par exemple; rusé, filtrant, contournant; si bien que l’on peut faire de lui ce que l’on veut, et conduire l’eau dans des tuyaux pour la faire ensuite jaillir verticalement afin de jouir enfin de sa façon de s’abîmer en pluie : une véritable esclave.

... Cependant le soleil et la lune sont jaloux de cette influence exclusive, et ils essayent de s’exercer sur elle lorsqu’elle se trouve offrir la prise de grandes étendues, surtout si elle y est en état de moindre résistance, dispersée en flaques minces. Le soleil alors prélève un plus grand tribut. Il la force à un cyclisme perpétuel, il la traite comme un écureuil dans sa roue.

*

L’eau m’échappe... me file entre les doigts. Et encore ! Ce n’est même pas si net (qu’un lézard ou une grenouille) : il m’en reste aux mains des traces, des taches, relativement longues à sécher ou qu’il faut essuyer. Elle m’échappe et cependant me manque, sans que j’y puisse grand chose.

Idéologiquement c’est la même chose : elle m’échappe, échappe à toute définition, mais laisse dans mon esprit et sur ce papier des traces, des taches informes.

*

Inquiétude de l’eau : sensible au moindre changement de la déclivité. Sautant les escaliers les deux pieds à la fois. Joueuse, puérile d’obéissance, revenant tout de suite lorsqu’on la rappelle en changeant la pente de ce côté-ci.



PONGE, François. Le parti pris des choses. Paris: Gallimard, 1942.

25.7.10

As ilusões pós-modernistas




O seguinte artigo foi publicado no sábado, 24 de julho, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:


As ilusões pós-modernistas



AS NOÇÕES de "pós-modernidade" e "pós-modernismo" entraram em voga há cerca de trinta anos, a partir da publicação de "La condition postmoderne", do filósofo francês Jean-François Lyotard. Hoje, "pós-modernismo" designa apenas uma tendência eclética, maneirista e inteiramente datada. Já a noção de "pós-modernidade" -- que significa uma pretensa superação da época moderna -- não passou de uma ilusão, que a pós-pós-modernidade, isto é, a modernidade mesma, encarregou-se de desmentir.

De nada adianta substituir a expressão "pós-modernidade" por "contemporaneidade", como faz o famoso crítico norte-americano Arthur Danto. O conceito de contemporaneidade simplesmente não é epocal e, se conseguisse sê-lo, não se distinguiria do de modernidade.

Antes da modernidade, eram quase sempre nomes próprios, de lugares, dinastias, monarcas ou fundadores de religiões que denominavam ou demarcavam as diferentes épocas. Na Roma republicana, por exemplo, demarcava-se o tempo tendo por referência a fundação (mítica ou real, pouco importa) de Roma. Os chineses e egípcios usavam os nomes das suas dinastias para diferenciar as épocas, inclusive aquelas em que viviam. Já os primeiros cristãos passaram a demarcar o tempo tendo por referência o nascimento (mítico ou real, pouco importa) de Cristo: para eles, sua época era a época cristã. Um francês do século 12 d.C., por exemplo, não supunha haver qualquer solução de continuidade entre a sua época e a do apóstolo Paulo.

A partir principalmente dos séculos 14 e 15 d.C., porém, a Europa começou a passar por uma espécie de desprovincianização. Com as descobertas geográficas, "viu-se a terra inteira de repente / surgir redonda do azul profundo", como diz o Fernando Pessoa de "Mensagem". Isso relativizou a Europa, do ponto de vista espacial. Do ponto de vista temporal, ela foi relativizada pela valorização, graças aos humanistas, da cultura clássica e pagã.

Contra seus contemporâneos escolásticos, os humanistas ambicionaram emular o modo de pensar e escrever, assim como o gosto dos antigos. Entre estes e aqueles, porém, se interpunha um período extenso, que tivera início na invasão e na destruição do Império Romano pelos bárbaros. A essa longa intermissão, que passaram a desprezar como um período de barbárie entre a morte da civilização antiga e seu moderno renascimento, por eles promovido, chamaram de "medium aevum", de onde "medioevo", isto é, "Idade Média". Entre os séculos 16 e 18, estabeleceu-se o esquema tríplice de periodização que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade.

Ora, "moderno", etimologicamente, quer dizer referente a agora ou, se quisermos, "agoral". Modernidade, portanto, é a "agoralidade". Isso significa que, pela primeira vez, a palavra com a qual se denomina uma época é um conceito universal. Há nisso um paradoxo. Sendo um universal, "moderno" não se reduz a coisa alguma que possa particularizar a época assim autodenominada. Em princípio, qualquer época poderia ter-se chamado "moderna" ou "agoral". Entretanto, justamente o fato de que, apesar disso, nenhuma outra o tenha feito, constitui, para a época que o faz, uma diferença mais radical do que qualquer outra concebível.

Trata-se de um sintoma da extraordinária cisão experimentada pelos homens da Renascença. É que eles se haviam tornado capazes de criticar, isto é, tanto de se distanciar da própria cultura em que viviam, quanto de questioná-la. Montaigne, por exemplo, reconhecia ser cristão por acaso. "Somos cristãos", dizia ele, "ao mesmo título que somos perigordinos ou alemães".

Descartes, leitor de Montaigne, sabia que "um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais". Evidentemente, não foi de dentro da cultura cristã e francesa que Montaigne e Descartes a relativizaram desse modo, mas a partir da razão, que foi capaz de dela se separar e de criticá-la.

Sendo a modernidade a época em que a razão já reconheceu o caráter contingente das culturas, de modo que não se identifica com nenhuma, segue-se que qualquer "superação" dessa época não poderia deixar de ser uma regressão ao estado em que essa verdade ainda fosse ignorada.

23.7.10

Antonio Machado: "Tu verdad, no"




Tu verdad, no: la Verdad.
Y ven conmigo a buscarla.
La tuya, guárdatela.



Tua verdade, não: a Verdade.
E vem comigo buscá-la.
A tua, guarda-a contigo.




MACHADO, Antonio. "Proverbios y cantares". Nuevas canciones. Madrid: Editorial Mundo Latino, 1924.

19.7.10

Francis Ponge: "Le pain" / "O pão": trad. de Manuel Gusmão





O Pão

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas... E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, - sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.



Le pain

La surface du pain est merveilleuse d'abord à cause de cette impression quasi panoramique qu'elle donne : comme si l'on avait à disposition sous la main les Alpes, le Taurus ou la Cordillère des Andes.
Ainsi donc une masse amorphe en train d'éructer fut glissée pour nous dans le four stellaire, où durcissant elle s'est façonnée en vallées, crêtes, ondulations, crevasses... Et tous ces plans dès lors si nettement articulés, ces dalles minces où la lumière avec application couche ses feux, sans un regard pour la mollesse ignoble sous-jacente.
Ce lâche et froid sous-sol que l'on nomme la mie a son tissu pareil à celui des éponges : feuilles ou fleurs y sont comme des sœurs siamoises soudées par tous les coudes à la fois.
Lorsque le pain rassit ces fleurs fanent et se rétrécissent : elles se détachent alors les unes des autres, et la masse en devient friable...
Mais brisons-la : car le pain doit être dans notre bouche moins objet de respect que de consommation.



PONGE, Francis. Alguns poemas. Seleção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Lisboa: Cotovia, 1996.

18.7.10

Antonio Cicero: "Rapaz"




Hesitante entre o mar ou a mulher
a natureza o fez rapaz bonito,
rapaz:
pronto para amar e zarpar.

Também ao poeta apraz
o ser rápido e rapace.



CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

14.7.10

Carlos Drummond de Andrade: "Poesia"





Poesia


Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda a minha vida inteira.



DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Alguma poesia". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

10.7.10

O teólogo marxista




Excepcionalmente, publico hoje no blog o artigo que hoje mesmo se encontra na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo. Explico: é que lá – por culpa minha mesmo – ele saiu com alguns erros. Ocorre que os meus artigos devem ser entregues à redação até, no máximo, sexta-feira de manhã. Na quinta-feira, escrevi um artigo sobre filosofia e o enviei. No dia seguinte, quando recebi uma prova para a conferência da revisão, dei-me conta de que era um texto excessivamente abstrato para um jornal cotidiano. Redigi então, às pressas, outro, sobre outro tema. Mal tive tempo de relê-lo no computador uma vez, fazer uma ou outra alteração, e remetê-lo. Não houve tempo, na Folha, para submetê-lo à revisão. Hoje vi que ocorreu com ele o que costuma acontecer nesses casos. Ao fazer as tais alterações de última hora, houve dois ou três casos em que me esqueci, na pressa, da necessidade de alterar as marcas morfológicas de outras palavras, de modo a garantir a concordância do todo. Peço desculpas aos leitores e republico esse artigo aqui, corrigido.



ANTONIO CICERO


O teólogo marxista


O PROFESSOR de teoria literária Terry Eagleton, da Universidade de Lancaster, declarou há poucos dias que "Deus volta ao debate intelectual de duas maneiras: há uma polêmica contra ele, por um lado, e, por outro, um aproveitamento de recursos teológicos por parte de uma série de pensadores de esquerda declaradamente ateístas".

Segundo Eagleton, que se considera marxista, o trabalho teológico mais importante de hoje está sendo feito por ateístas de esquerda. Isso se explica porque, "quando a esquerda passa por tempos difíceis, não pode se dar ao luxo de olhar os dentes do cavalo, como se diz. E, se descobre que algumas ideias teológicas podem ser úteis, então, por que não?".

Nesse contexto, Eagleton cita Habermas, Badiou, Agamben, Zizek.

Pelo jeito, os tempos estão mesmo bicudos para os marxistas. Houve época em que eles jamais sacrificariam um princípio tendo em vista a solução de uma dificuldade conjuntural. Ora, o ateísmo e o materialismo se encontravam, para Marx, entre as mais fundamentais questões de princípio. Para ele, a crítica da religião era a condição sine qua non de toda crítica.

Agora é diferente. Primeiro, os marxistas à la Eagleton julgam a utilidade de uma ideia -e não mais apenas a de uma tática- como critério para adotá-la: isto é, aderiram ao pragmatismo epistemológico; segundo, consideram úteis as ideias teológicas; terceiro, consideram fazer o trabalho teológico mais importante de hoje.

Não deixa de ser curioso, pois "ateísta" é quem não acredita em Deus; e "teologia" é a ciência que trata de Deus. Como pode ser útil tratar-se de alguma coisa em que não se acredita, a menos que seja para negá-la? Como é possível ignorar que quem faz trabalho teológico é necessariamente teísta, ou que quem é ateísta não faz trabalho teológico?

Talvez eu não esteja sendo bastante "dialético", ao dizer essas coisas... Eles, porém, não estão sendo nada materialistas, ao se dedicarem ao "trabalho teológico mais importante de hoje".

Ora, abandonar o materialismo é necessariamente abandonar o MATERIALISMO dialético, isto é, a filosofia marxista, e abandonar o MATERIALISMO histórico, que pretende ser a ciência marxista da história. Logo, esses soi-disant marxistas abandonaram de fato o marxismo, mas não têm (exceto, sem dúvida, no confessionário dos seus párocos) coragem de confessá-lo.

Mas creio ser possível entender por que "marxistas" como Terry Eagleton e Alain Badiou, que, segundo Eagleton, é "o maior filósofo francês vivo", abandonando, na prática, o materialismo, pretendem tornar-se teólogos. É que, antes de serem "marxistas", eles são "revolucionários", ou melhor, apocalípticos.

Recentemente a revista "Serrote" publicou um capítulo do livro "Razão, Fé e Revolução", de Eagleton. Em determinado ponto, ele tenta explicar o pensamento de Badiou.

"Para ele, a fé consiste numa lealdade tenaz ao que chama de "evento" -um acontecimento absolutamente original que está desconjuntado do fluxo suave da história e que é inominável e inapreensível no contexto em que ocorre. Verdade é o que corta na transversal da fibra do mundo, rompendo com uma revelação mais antiga e fundando uma realidade radicalmente nova [...]. Os eventos citados por Badiou são um tipo de impossibilidade quando medidos por nossos padrões usuais de normalidade."

Diga-se a verdade: são uma impossibilidade quando medidos pelos padrões universais da RACIONALIDADE. Em suma, a revolução que esses novos teólogos propõem nada tem, de fato, a ver com o marxismo, que se pretendia o suprassumo da racionalidade, pois ela consiste num milagre. "Milagres ocorrem sim", diz Slavoj Zizek, também explicando o pensamento teológico do papa Badiou.

Segundo esse modo de pensar, a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, não passa, portanto, de uma crença. Comentando - e aprovando- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é "dogmática" no sentido preciso de ser fé incondicional, de ser uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma "argumentação".

Ora, ocorre que aquilo que se imuniza contra a razão é exatamente o irracional. Em suma, trata-se do mais puro irracionalismo religioso.

8.7.10

Gastão Cruz: "No céu negro"





No céu negro


Não é usando o adjetivo escuro
ou obscuro
que o poema se escurece.

ele possui a sua escuridão
uma noite que
o esconde e molha no céu negro



CRUZ, Gastão. Escarpas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010.

6.7.10




Ravel


Todo telefone é terrível - negro
guerrilheiro, à escuta na sala
disfarçado ao lado do sofá
à espera, no gancho
sempre na véspera
com o grampo da granada
já nos dentes.
A única saída é ocupá-lo
para que não estoure
(não posso te agarrar daqui
nem pelos fios dos cabelos
pare antes que toque
e o infinito acabe).
Todo terrível é telefone - negro
à escuta
guerrilheiro à espera
ao lado do sofá
disfarçado na sala
na véspera da granada
com o grampo nos dentes fora do gancho
ocupando a única saída
para que não estoure
(não posso nem pelos cabelos
antes que acabe e toque
o infinito, te agarrar, nos fios, pare
daí).




FREITAS FILHO, Armando. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (Org.). Armando Freitas Filho. Coleção Melhores Poemas. São Paulo: Global Editora, 2010.

3.7.10

Nelson Ascher: "Bálsamos"




Bálsamos

Embora eu sôfrego mordisque
nem tão de leve o teu mamilo
vermelho a ponto de induzi-lo
à rigidez que lhe condiz —

querendo ainda mais, tranqüilo
não ficarei sem que petisque
"in loco" os bálsamos sutis que
procedem — úmido sigilo —

da contração de internas dobras
que (enquanto delas se avizinha
meu hálito) afinal desdobras

para que se entredigam sábios
tudo que sabem sobre minha
língua teus dois pares de lábios.




ASCHER, Nelson. Algo de sol. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.