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16.11.17

A.C. Grayling: trecho de "As religiões não merecem tratamento especial"



Dado que hoje – 16 de novembro – é reconhecido pela UNESCO como o Dia Mundial da Filosofia, resolvi postar a tradução de um pequeno trecho de um artigo do filósofo inglês A.C. Grayling. O texto, que me parece muito oportuno no momento atual, intitula-se “As religiões não merecem tratamento especial”.

            Já no século XVII, o filósofo Descartes dizia, no seu Discurso do método, que, “a pluralidade de vozes não é uma prova que valha nada para as verdades um pouco difíceis de descobrir, porque é bem mais provável que um homem as tenha encontrado do que todo um povo”. Ou seja, ele sabia que nenhuma crença – nenhuma crença religiosa, por exemplo – merece intrinsecamente mais respeito do que qualquer convicção individual.

Mas passemos às palavras de A.C. Grayling:



Está na hora de inverter o senso comum de que o comprometimento religioso intrinsecamente mereça respeito e deva ser tratado com luvas de pelica e protegido pelo costume e, em alguns casos, por leis que proíbem que ele seja criticado ou ridicularizado.

Está na hora de nos recusarmos a andar na ponta dos pés em torno de pessoas que exigem respeito, consideração, tratamento especial ou qualquer outro tipo de imunidade simplesmente porque têm uma fé religiosa, como se ter fé fosse uma virtude merecedora de privilégios, e como se fosse nobre acreditar em afirmações sem base e em superstições antigas. Nada disso: a fé é o comprometimento com uma crença contrária à evidência e à razão.

            Ora, acreditar em algo contra a evidência e contra a razão – acreditar em algo por fé – é ignóbil, irresponsável e ignorante, e merece o oposto do respeito. Está na hora de dizer a verdade.

            Está na hora de exigir dos crentes que mantenham na esfera privada suas escolhas e preferências pessoais nesses assuntos irracionais e frequentemente perigosos. Qualquer um tem a liberdade de acreditar no que quiser, desde que não incomode (ou intimide ou mate) os outros; mas ninguém tem o direito de exigir privilégios meramente na base de ser devoto desta ou daquela das muitas religiões do mundo.

            E, como essa última observação implica, está na hora de exigirmos – nós, que não somos religiosos – o direito de não sofrer interferência por parte de pessoas e organizações religiosas. Ninguém tem o direito de impor suas próprias práticas e escolhas morais às pessoas que não compartilham do seu ponto de vista.




GRAYLING, A.C. Trecho de “Religions don’t desserve special treatment”. In: The Guardian, 19 de outubro de 2006.

30.12.07

O relativismo e a modernidade

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 29/12/2007:


O relativismo e a modernidade


A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável


As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconseqüência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.

É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".

O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de autocontradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.

Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.

É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.

Pior ainda: o relativismo é capaz de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".

E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto". Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.

A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.

Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.

De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.

Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.

12.4.07

Comentário de Lucas e resposta a ele

Lucas escreveu:

Em 10/04, Lucas deixou um comentário ao artigo que eu havia postado no mesmo dia. Como penso que esse comentário resume as principais objeções que se podem fazer ao que escrevi, resolvi postá-lo aqui, seguido da minha resposta:

"De que forma seria possível a existência de "um ponto de vista exterior a todas as culturas", se a própria formulação de um tal ponto de vista se dá dentro e através de uma cultura? É o ser humano capaz de pensar fora de um complexo de valores e símbolos culturalmente determinado? Ou seria a "modernidade" uma busca, frutífera ou não, da alteridade no seio de cada cultura, uma auto-transcendência da matéria cultural, em vez de uma "supra-cultura"? E não seria mesmo esse conceito de "modernidade" uma construção local, meramente contingente? Não sei, não disponho de ponto de apoio para conhecer tais respostas. Mas talvez possamos sê-las."

Resposta minha:

Caro Lucas,
Proponho pensar nesse assunto a partir dos exemplos que dei, de Montaigne e Descartes. Montaigne pertence a que cultura? Creio que teríamos que situá-lo na cultura européia ocidental: mais precisamente, na cultura judeo-cristã ou, para abreviar, na cultura cristã. Ele escreve em francês, língua que parece fazer parte dessa cultura. Entretanto, Montaigne critica os cristãos. Ora, criticar é separar. A crítica é um momento de separação. Quem critica também separa, de pelo menos dois modos: por um lado, separa, no objeto criticado, o joio do trigo; e, por outro lado, como condição para tanto, quem critica também separa a si próprio do objeto criticado. Quando critica os cristãos e os compara aos índios brasileiros, Montaigne está a se separar dos cristãos, para vê-los de fora e julgá-los. A separação é também abstração. Montaigne abstrai da sua situação de cristão, para ver os cristãos de fora. Mas a questão óbvia é: ele consegue fazê-lo? E a resposta evidente é: como não? Alguém imagina que o que Montaigne diz dos cristãos, comparando-os aos canibais brasileiros, reflete o sentimento geral dos cristãos da sua época? Alguém imagina que o que ele diz pertence à cultura cristã? Nesse caso, também pertenceriam a essa cultura o sistema heliocêntrico de Copérnico, a física galileo-newtoniana, o pan-ateísmo de Spinoza...

Ao abstrair, como Montaigne, da sua cultura particular, Descartes imagina que poderia ter sido outra coisa: que poderia ter sido chinês ou canibal e que, nesse caso, seria diferente do que é, sendo francês. Na mesma linha de raciocínio, Descartes poderia ter sido confuciano ou pagão; poderia não ter sido cristão; poderia ter sido ateu, logo, poderia ter pertencido a outra cultura, que não à cristã. Isso, porém, significa dizer que é contingente que ele pertença à cultura-religião cristã. Ora, esse não é exatamente um sentimento cristão.

Com efeito, Montaigne e Descartes se situam no limiar da modernidade; e a modernidade já não pertence à cultura cristã. Kant chamava a modernidade de “a época da crítica”. A modernidade consiste precisamente no uso pleno dessa capacidade de crítica, separação, abstração, que não é outra coisa senão a razão. Na verdade, ela não é sequer um produto dessa cultura. Ela não surge do Cristianismo. No seu auge, nos séculos XII e XIII, o Cristianismo não produziu nem teria produzido a modernidade, que o critica. Esta se aproveita, para surgir, por um lado, das brechas, das fissuras, das falhas, das fendas do Cristianismo e, por outro lado, da abertura vertical e horizontal do mundo, dada pela redescoberta da antiguidade clássica e pelas descobertas geográficas. Não é à toa que Montaigne fala dos conflitos religiosos do seu tempo.

Eu disse acima que a língua francesa parece fazer parte da cultura cristã. Trata-se de uma ilusão. O francês pode exprimir tanto o mundo cristão quanto o mundo anti-cristão. Pode-se ser ateu ou hinduísta em francês: e assim é com qualquer língua. A crítica – a modernidade – é não só capaz de converter qualquer língua particular em sua língua, mas é capaz de usar qualquer forma de uma cultura particular – música, pintura, escultura, literatura etc. – como seu veículo. E assim tem feito. Amartya Sen já chamou atenção, em seus escritos, para vários momentos de modernidade que romperam, não através do cristianismo, mas através de culturas não-ocidentais, como o próprio Islã. Portanto, longe de ser uma construção local, a modernidade consiste justamente num salto para o universal.

10.4.07

A Controvérsia do Multiculturalismo

O artigo seguinte foi publicado na Folha de São Paulo, sábado, 7 de Abril de 2007

A CONTROVÉRSIA DO MULTICULTURALISMO

Antonio Cicero

[Descartes relativiza as diferentes culturas a partir de um ponto de vista aberto a todas elas]

EMBORA POUCO conhecida no Brasil, uma das personagens mais interessantes do nosso tempo é, sem dúvida, Ayaan Hirsi Ali. Tendo nascido em 1969 na Somália (onde foi, quando criança, submetida a uma clitorectomia), ela, ainda menina, emigrou com a família para o Quênia, onde estudou em escola de língua inglesa e, sob a influência de professores e colegas, acabou por se tornar fundamentalista islâmica.

Em 1992, tendo sido dada pelo pai em casamento a um parente que habitava no Canadá, Hirsi Ali passou -a caminho desse país- pela Holanda, onde pediu e obteve asilo político, aprendeu holandês, estudou ciência política na Universidade de Leyden e participou ativamente, por um tempo determinado, da política holandesa.

Em 2002, Hirsi Ali renunciou ao islã e se declarou atéia. Tendo, a partir de então, publicado inúmeros artigos, proferido conferências e participado de debates em que fez sérias críticas ao islã, e mesmo ao profeta Maomé e ao Alcorão, ela foi diversas vezes ameaçada de morte.

Hirsi Ali escreveu também o roteiro do filme "Submissão", sobre mulheres muçulmanas, de Theo Van Gogh, assassinado em Amsterdã por um radical islamista que, no peito da vítima, pregou com uma faca um bilhete em que dizia, entre outras coisas: "Hirsi Ali, você será despedaçada pelo Islã". Ela hoje mora nos Estados Unidos.

Em artigo que acabou provocando uma grande polêmica, inicialmente na internet e, em seguida, em vários jornais dos Estados Unidos e da Europa, o historiador e professor em Oxford Timothy Garton Ash descreve Hirsi Ali nas seguintes palavras, ao mesmo tempo irônicas e paternalistas: "Tendo sido na juventude, sob a influência de um professor inspirado, tentada pelo fundamentalismo islâmico, Ayaan Hirsi Ali é agora uma corajosa, franca e levemente simplória fundamentalista do Iluminismo".

A formulação de Ash implica que ela tenha simplesmente trocado de fundamentalismos e, no limite, que o islamismo equivale ao Iluminismo: convicção multiculturalista que reaparece adiante, quando ele afirma que, se o iluminista quiser convencer o islamista argumentando que a sua fé se baseia na razão, o islamista poderá responder que a dele se baseia na verdade: e ei-los empatados.

A tese de Ash é insustentável. Para comprová-lo, considere-se o ponto de vista a partir do qual ele está a descrever esse impasse. Necessariamente, trata-se de um ponto de vista exterior ao de qualquer um dos dois antagonistas; é um ponto de vista que, sendo sobre os antagonistas, nem se identifica com nenhum deles em particular, nem deixa de compreender cada um deles isoladamente e ambos em conjunto. Ora, esse é precisamente o ponto de vista do Iluminismo: o ponto de partida do pensamento moderno.

Montaigne, por exemplo, quando, na Renascença, compara favoravelmente os índios antropófagos brasileiros com os cristãos europeus, diz que podemos chamar os canibais de "bárbaros" "tendo em vista as regras da razão, mas não tendo em vista a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie".

Em outras palavras, ele fala de um ponto de vista que é não só exterior ao da cultura dos índios, mas exterior também ao da cultura cristã em que fora criado: por isso ele é capaz de criticar essa cultura. E esse ponto de vista é, segundo Montaigne, o das "regras da razão", ou, simplesmente, o da razão.

Descartes apenas radicaliza esse ponto de vista, ao observar que "aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais que nós, da razão [...] e um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria, se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais".

Descartes está aqui, nada mais, nada menos, relativizando as diferentes culturas, a partir de um ponto de vista que não pertence a nenhuma cultura particular, mas que pode ser aberto por e para qualquer ser humano pertencente a qualquer uma delas: o ponto de vista da razão, do Iluminismo, da modernidade.

O reconhecimento universal desse ponto de vista, que é logicamente exterior, anterior e superior a qualquer cultura ou religião particular, é a condição da coexistência pacífica de todos, num mundo cada vez menor. É por isso que Ash está errado, ao colocá-lo no mesmo nível que o ponto de vista de uma religião particular, tal como o islamismo.