O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 25/08/2007:
A BUSCA DO NOVO
O POETA Ezra Pound inventou inúmeros slogans, máximas, esquemas classificatórios etc. O problema de tais gnomas e traçados é que, retirados dos contextos -muitas vezes polêmicos- em que foram enunciados, eles tendem a esclerosar, tornando-se dogmas que empobrecem as questões a que se referem.
Assim foi, por exemplo, a classificação dos poetas em inventores, mestres e diluidores. Com base nela, Mário Faustino, por exemplo -que, entretanto, em outras ocasiões, mostrou-se um crítico perspicaz-, foi capaz de declarar que Carlos Drummond de Andrade era, "quando muito, um "master". Não é um "inventor" [...]. Nunca seria um Pound, nem mesmo um Eliot".
A meu ver, vários equívocos se manifestam nessas proposições, todos devidos à aplicação rígida das classificações de Pound. Elas pressupõem, por exemplo, que Ezra Pound seja indiscutivelmente melhor do que T.S. Eliot. Por quê? Porque Pound se aproximaria mais do paradigma do inventor. Ora, 50 anos depois de Faustino ter feito esse juízo, nada indica que o valor relativo desses dois poetas venha algum dia a ser um ponto pacífico. Eu mesmo, se tivesse que escolher entre os dois, ficaria com Eliot.
Outra pressuposição inaceitável é a de que Drummond jamais estaria à altura de "um Pound" ou de "um Eliot". Como pode Faustino pensar isso? É que Drummond, segundo ele, é um mestre, não um inventor. Mas, para mim, é claro que Drummond era um inventor, um mestre e, às vezes, até um diluidor: e que era capaz de ser tudo isso num só poema. Que grande poema não é simultaneamente uma obra de mestria e de invenção? Drummond foi um dos maiores acontecimentos da poesia do século 20 e, enquanto poeta, não é em nada inferior a Pound ou a Eliot ou a quem quer que seja.
Mas o culto ao inventor é freqüentemente associado ao slogan "make it new", que pode literalmente ser traduzido por "faça-o novo" e, menos literalmente, por "faça o novo". A própria idéia da valorização da novidade não é nova; nem é nova a rejeição a essa idéia. Na Atenas clássica, Isócrates já dizia que o importante não é fazer o mais novo, mas o melhor. Mas hoje ouço ou leio freqüentemente jovens poetas, influenciados por essas idéias, falando em "buscar o novo". Evidentemente, a intenção deles não é, por exemplo, achar alguma obra de arte que acabe de ser feita (logo, que seja nova) e copiá-la. Não: o que querem é achar alguma idéia nova (no sentido de que jamais tenha sido pensada). Ora, não há como buscar uma idéia de que não se tenha idéia nenhuma, e não se pode ter idéia nenhuma de uma idéia que não exista. Não há como buscá-la: uma idéia nova aparece ou não. Por isso, Picasso dizia, com razão: "Não busco, encontro".
No fundo, o problema está na descontextualização do slogan "make it new". Recontextualizando-o, o poeta Haroldo de Campos o interpreta como uma exortação a "remastigar a herança cultural universal para "nutrir o impulso': renovar".
A injunção de Pound também deve ser entendida a partir da definição que ele próprio dá da literatura como "news that stays news": novas que permanecem novas; novidades que permanecem novidades. O novo que permanece novo não é simplesmente "o novo", mas aquilo que não envelhece. "Um clássico é um clássico", afirma Pound, com toda razão, "porque possui um certo eterno e irreprimível frescor".
Já os poetas líricos gregos pensavam desse modo. Os poetas épicos haviam considerado as Musas -as deusas que inspiram os poetas- como filhas da Memória. Supõe-se, às vezes, que isso representasse o reconhecimento da importância da memória e da memorização para a poesia oral. Outra hipótese é que esse mito refletisse o fato de que os poemas épicos preservavam a memória de feitos originários da comunidade.
Os poetas líricos, porém, compreenderam que o que preservava a memória dos feitos da comunidade era a memorabilidade dos próprios poemas que cantavam tais feitos. Para eles, o feito mais memorável de todos era, portanto, o próprio poema. A memória da Guerra de Tróia era preservada, não tanto porque fosse, ela mesma, memorável, mas em virtude da memorabilidade do poema que a cantava, a "Ilíada".
Nesse sentido, as Musas eram filhas da Memória porque representavam a fonte da qualidade (divina) que tornava os poemas deles -mesmo quando não tratavam dos "grandes temas", mas apenas, por exemplo, dos seus amores- inesquecíveis, memoráveis, dotados de "eterno e irreprimível frescor".
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25.8.07
29.7.07
Bibliografia do curso "A arte do poeta"
SOBRE POÉTICA E CRÍTICA:
ARISTÓTELES. Poética. Trad. E. de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
ASCHER, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
AUDEN, W. Fazer, saber e julgar. Trad. de Ângela Melim. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1981.
BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M.S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BOILEAU, N. Arte poética. Ed. bilingue. Trad. Conce de Ericeira. Prefácio e notas de J.P. Machado. Lisboa: Fernandes, 1950.
CABRAL de Melo Neto, J. "Poesia e composição". In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.721-37.
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. Ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
ELIOT, T.S. “A tradição e o talento individual”. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, 1962.
HORÁCIO. Arte poética. Lisboa: Inquérito, 1984.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis". Apontamento solto de Álvaro de Campos. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.251-96.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Poesias de Álvaro de Campos". Apontamento solto de Ricardo Reis. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.297-423.
PIGNATARI, Décio. O que é a comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.
POUND, E. ABC da literatura. Trad. de A. de Campos e J.P. Paes. São Paulo: Cultrix, 2001.
SCHILLER, Friedrich von. A educação estética do homem. Trad. de M. Suzuki e R. Schwartz. São Paulo: Iluminuras, 1995.
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. V.P. Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.
SHELLEY, P.B. Defesa da poesia. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
VALÉRY, P. Variedades. Trad. de M.M. de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.
SOBRE VERSIFICAÇÃO:
BANDEIRA, Manuel. “A versificação em língua portuguesa”. In: GUIMARÃES, Júlio (org.). _____. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MATTOSO, Glauco. “Apêndice”. In: Geléia de rococó. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999).
SOBRE LETRA DE CANÇÃO:
CICERO, A. "Letra de música". Cultura Brasileira Contemporânea, vol.1, n.1, p.7-15, Rio de Janeiro, Novembro, 2006.
CAMPOS, A.d. "Boa palavra sobre a música popular". In: Balanço da bossa e outras bossas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.59-65.
TATIT, L. O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. E. de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
ASCHER, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
AUDEN, W. Fazer, saber e julgar. Trad. de Ângela Melim. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1981.
BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M.S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BOILEAU, N. Arte poética. Ed. bilingue. Trad. Conce de Ericeira. Prefácio e notas de J.P. Machado. Lisboa: Fernandes, 1950.
CABRAL de Melo Neto, J. "Poesia e composição". In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.721-37.
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. Ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
ELIOT, T.S. “A tradição e o talento individual”. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, 1962.
HORÁCIO. Arte poética. Lisboa: Inquérito, 1984.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis". Apontamento solto de Álvaro de Campos. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.251-96.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Poesias de Álvaro de Campos". Apontamento solto de Ricardo Reis. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.297-423.
PIGNATARI, Décio. O que é a comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.
POUND, E. ABC da literatura. Trad. de A. de Campos e J.P. Paes. São Paulo: Cultrix, 2001.
SCHILLER, Friedrich von. A educação estética do homem. Trad. de M. Suzuki e R. Schwartz. São Paulo: Iluminuras, 1995.
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. V.P. Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.
SHELLEY, P.B. Defesa da poesia. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
VALÉRY, P. Variedades. Trad. de M.M. de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.
SOBRE VERSIFICAÇÃO:
BANDEIRA, Manuel. “A versificação em língua portuguesa”. In: GUIMARÃES, Júlio (org.). _____. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MATTOSO, Glauco. “Apêndice”. In: Geléia de rococó. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999).
SOBRE LETRA DE CANÇÃO:
CICERO, A. "Letra de música". Cultura Brasileira Contemporânea, vol.1, n.1, p.7-15, Rio de Janeiro, Novembro, 2006.
CAMPOS, A.d. "Boa palavra sobre a música popular". In: Balanço da bossa e outras bossas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.59-65.
TATIT, L. O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
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Poética
24.6.07
Correspondência entre Paulo de Toledo e Antonio Cicero sobre a especificidade da poesia
Afinal tenho tempo de responder ao último comentário de Paulo de Toledo sobre a postagem de 21/05, “A poesia é um segredo dos deuses?”. O assunto é a especificidade da poesia. Como essa correspondência me parece muito interessante, resolvi recapitular abaixo os lances mais importantes dela (até agora) e postar, no final de tudo, a minha resposta – nada definitiva – de hoje.
23/05
Caro Antonio,
[...]
o que eu quis questionar [no comentário de 22/05] era se é possível dizer que há um "específico poético", i.e., haveria algo de único no discurso poético que realmente o diferenciaria do discurso prosaico? Afinal, se não basta dividir um texto em várias linhas para considerá-lo um poema, nem tampouco criar rimas no final de cada uma dessas linhas, então o que faz de um "conjunto de palavras" um poema?
Eu me arriscaria a tentar responder a essa questão da seguinte forma: a poesia é a única arte que consegue transformar signos convencionalizados (o signo verbal peirceano) em signos icônicos (aqueles que se relacionam com o seu objeto por meio de similaridades), criando uma relação de semelhança e, portanto, "necessária", "não-arbitrária", entre os signos que a compõem e o seu objeto.
Há também o inefável, o inexplicável, o intangível... Mas, quanto a esse aspecto da poesia, eu fico com Pessoa: "Sentir? Sinta quem lê!"
Abrações
Paulo de Toledo
23/05
Caro Paulo,
Acho que a iconicidade é uma característica importante de muitos poemas e de muitos componentes de diferentes poemas, mas não creio que seja a diferença específica, que determinaria a essência da poesia.
Você define o signo icônico como "aquele que se relaciona com seu objeto por meio da similaridade". Isso, porém, supõe uma diferença entre o poema e o seu objeto, que seria mais ou menos análoga à diferença entre o significante e o significado. Ora, penso que num poema, no limite, não se pode separar o significante do significado, o poema do seu objeto. É por isso que o poema não é parafraseável, isto é, que não se pode dizer em outras palavras o que um poema diz. Em última análise, parece-me que o poema é o objeto mesmo: o objeto verbal que vale por si, não por causa do que ele diz sobre outra coisa.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro AC,
o poema é, sim, algo não "parafraseável", mas exatamente porque os signos verbais (signos simbólicos, na nomenclatura peirceana) que o compõe (e que são signos convencionalizados, arbitrários), ao serem manejados pelo poeta, tornam-se signos icônicos (também segundo a definição de Peirce). E o signo icônico, diferentemente do signo simbólico/verbal, não admite paráfrase. Quando Dante se utiliza do número-conceito 3 para estruturar seu poema (terza rima, 3 cabeças do demônio, 3 "points": inferno, purgatório e paraíso etc.), este número transforma-se em um ícone do poema. Como diria o Décio Pignatari: ritmo é ícone. Portanto, quando lemos dois versos em que o esquema rímico e rítmico são iguais, há uma relação de similaridade entre eles e, consequentemente, há uma relação icônica entre os versos. As palavaras que os compõem deixam de ser meramente signos convencionalizados para se tornarem signos não-arbitrários, necessários.
Era mais ou menos isso que eu tentei dizer no outro comentário.
Abração
Paulo de Toledo
Hoje:
Caro Paulo,
Desculpe a demora da minha resposta. Deveu-se à viagem que fiz e, depois, a alguns problemas que tive que tentar resolver ao chegar, antes de me conceder o lazer para me dedicar a essas questões, que, no final das contas, são as que mais me interessam.
Como já lhe disse, acho que está certo considerar uma característica importante de muitos poemas a iconicidade de muitos dos seus signos. Entretanto, não creio que ela seja totalmente adequada para determinar o que é um poema. Em primeiro lugar, um poema não é composto apenas de signos icônicos. A maior parte dos signos de alguns – grandes – poemas não me parecem absolutamente icônicos. Tomemos, por exemplo, “Homenagem a Paul Klee”, do João Cabral:
Homenagem a Paul Klee
Nele houve o insano projeto
de envelhecer sem rotina;
e ele o viveu, despelando-se
de toda pele que o tinha.
Sem medo, lavava as mãos
do que até então vinha sendo:
de noite, saltava os muros,
saía a novos serenos.
Não vejo por que considerar icônicos os signos desse poema: a menos que se estenda tanto a noção de “ícone” que ela possa ser usada de praticamente tudo: e, consequentemente, não signifique nada em particular. Aliás, acho que você corre esse perigo quando, falando de ritmo ser ícone, diz que os esquemas rímicos e rítmicos já representam relações icônicas entre os versos. Parece-me que a relação icônica é semântica e não sintática. Você mesmo a considera uma “relação de semelhança e, portanto ‘necessária’, ‘não-arbitrária’, entre os signos que a compõem e o seu objeto”. Por exemplo, ritmo é ícone, sim, no poema “Caçar em vão”, de Armando Freitas Filho, que postei aqui em 28/05.
Entretanto, se, por exemplo, o esquema de rimas inteiramente convencional de um soneto petrarquiano não tiver nenhuma relação com o que está sendo dito, não terá sentido considerá-lo icônico. Nem toda relação paronomásica constitui um ícone porque nem sempre ela compõe a imagem ou o retrato de alguma coisa; nem sempre, através dela, o plano semântico se projeta no sintático ou o significado no significante, ou, para falar como o Décio, nem sempre o eixo de similaridade se projeta sobre o de contigüidade, o paradigma sobre o sintagma, ou o ícone sobre o símbolo.
Já o que você diz do esquema triádico da Commedia de Dante parece-me correto, pois evoca a trindade divina.
Mas além de achar que há poemas cujos signos não são mais icônicos do que os de outros tipos de discurso (o que significa que a iconicidade não é uma condição necessária para a poesia) acho que há outros discursos nada poéticos (por exemplo, o da publicidade) que usa signos icônicos pelo menos tão freqüente e intensamente quanto a poesia o faz (o que significa que a iconicidade não é condição suficiente para a poesia).
Em suma, tenho a impressão de que a iconicidade ainda não resolve o problema da especificidade da poesia.
Um abraço,
Antonio Cicero
23/05
Caro Antonio,
[...]
o que eu quis questionar [no comentário de 22/05] era se é possível dizer que há um "específico poético", i.e., haveria algo de único no discurso poético que realmente o diferenciaria do discurso prosaico? Afinal, se não basta dividir um texto em várias linhas para considerá-lo um poema, nem tampouco criar rimas no final de cada uma dessas linhas, então o que faz de um "conjunto de palavras" um poema?
Eu me arriscaria a tentar responder a essa questão da seguinte forma: a poesia é a única arte que consegue transformar signos convencionalizados (o signo verbal peirceano) em signos icônicos (aqueles que se relacionam com o seu objeto por meio de similaridades), criando uma relação de semelhança e, portanto, "necessária", "não-arbitrária", entre os signos que a compõem e o seu objeto.
Há também o inefável, o inexplicável, o intangível... Mas, quanto a esse aspecto da poesia, eu fico com Pessoa: "Sentir? Sinta quem lê!"
Abrações
Paulo de Toledo
23/05
Caro Paulo,
Acho que a iconicidade é uma característica importante de muitos poemas e de muitos componentes de diferentes poemas, mas não creio que seja a diferença específica, que determinaria a essência da poesia.
Você define o signo icônico como "aquele que se relaciona com seu objeto por meio da similaridade". Isso, porém, supõe uma diferença entre o poema e o seu objeto, que seria mais ou menos análoga à diferença entre o significante e o significado. Ora, penso que num poema, no limite, não se pode separar o significante do significado, o poema do seu objeto. É por isso que o poema não é parafraseável, isto é, que não se pode dizer em outras palavras o que um poema diz. Em última análise, parece-me que o poema é o objeto mesmo: o objeto verbal que vale por si, não por causa do que ele diz sobre outra coisa.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro AC,
o poema é, sim, algo não "parafraseável", mas exatamente porque os signos verbais (signos simbólicos, na nomenclatura peirceana) que o compõe (e que são signos convencionalizados, arbitrários), ao serem manejados pelo poeta, tornam-se signos icônicos (também segundo a definição de Peirce). E o signo icônico, diferentemente do signo simbólico/verbal, não admite paráfrase. Quando Dante se utiliza do número-conceito 3 para estruturar seu poema (terza rima, 3 cabeças do demônio, 3 "points": inferno, purgatório e paraíso etc.), este número transforma-se em um ícone do poema. Como diria o Décio Pignatari: ritmo é ícone. Portanto, quando lemos dois versos em que o esquema rímico e rítmico são iguais, há uma relação de similaridade entre eles e, consequentemente, há uma relação icônica entre os versos. As palavaras que os compõem deixam de ser meramente signos convencionalizados para se tornarem signos não-arbitrários, necessários.
Era mais ou menos isso que eu tentei dizer no outro comentário.
Abração
Paulo de Toledo
Hoje:
Caro Paulo,
Desculpe a demora da minha resposta. Deveu-se à viagem que fiz e, depois, a alguns problemas que tive que tentar resolver ao chegar, antes de me conceder o lazer para me dedicar a essas questões, que, no final das contas, são as que mais me interessam.
Como já lhe disse, acho que está certo considerar uma característica importante de muitos poemas a iconicidade de muitos dos seus signos. Entretanto, não creio que ela seja totalmente adequada para determinar o que é um poema. Em primeiro lugar, um poema não é composto apenas de signos icônicos. A maior parte dos signos de alguns – grandes – poemas não me parecem absolutamente icônicos. Tomemos, por exemplo, “Homenagem a Paul Klee”, do João Cabral:
Homenagem a Paul Klee
Nele houve o insano projeto
de envelhecer sem rotina;
e ele o viveu, despelando-se
de toda pele que o tinha.
Sem medo, lavava as mãos
do que até então vinha sendo:
de noite, saltava os muros,
saía a novos serenos.
Não vejo por que considerar icônicos os signos desse poema: a menos que se estenda tanto a noção de “ícone” que ela possa ser usada de praticamente tudo: e, consequentemente, não signifique nada em particular. Aliás, acho que você corre esse perigo quando, falando de ritmo ser ícone, diz que os esquemas rímicos e rítmicos já representam relações icônicas entre os versos. Parece-me que a relação icônica é semântica e não sintática. Você mesmo a considera uma “relação de semelhança e, portanto ‘necessária’, ‘não-arbitrária’, entre os signos que a compõem e o seu objeto”. Por exemplo, ritmo é ícone, sim, no poema “Caçar em vão”, de Armando Freitas Filho, que postei aqui em 28/05.
Entretanto, se, por exemplo, o esquema de rimas inteiramente convencional de um soneto petrarquiano não tiver nenhuma relação com o que está sendo dito, não terá sentido considerá-lo icônico. Nem toda relação paronomásica constitui um ícone porque nem sempre ela compõe a imagem ou o retrato de alguma coisa; nem sempre, através dela, o plano semântico se projeta no sintático ou o significado no significante, ou, para falar como o Décio, nem sempre o eixo de similaridade se projeta sobre o de contigüidade, o paradigma sobre o sintagma, ou o ícone sobre o símbolo.
Já o que você diz do esquema triádico da Commedia de Dante parece-me correto, pois evoca a trindade divina.
Mas além de achar que há poemas cujos signos não são mais icônicos do que os de outros tipos de discurso (o que significa que a iconicidade não é uma condição necessária para a poesia) acho que há outros discursos nada poéticos (por exemplo, o da publicidade) que usa signos icônicos pelo menos tão freqüente e intensamente quanto a poesia o faz (o que significa que a iconicidade não é condição suficiente para a poesia).
Em suma, tenho a impressão de que a iconicidade ainda não resolve o problema da especificidade da poesia.
Um abraço,
Antonio Cicero
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21.6.07
Resposta a meu amigo Alberto Pucheu
Caro Alberto,
Em primeiro lugar, quero deixar claro que não estava pensando nos seus livros, ao escrever o artigo que você critica. Não que eu não pense neles: ao contrário, aprecio muito os textos que já li, tanto de "Pelo Colorido, para além do Cinzento", quanto de “A Fronteira Desguarnecida”. Creio que foram duas as razões pelas quais não pensei nos seus livros, ao criticar o que vejo como a tendência contemporânea a assimilar poesia e filosofia. A primeira é que, embora você de fato defenda teoricamente o “desguarnecimento” das fronteiras entre a poesia e a filosofia, a verdade é que não leio os seus textos poéticos como filosofia, mas como poesia mesmo, e como boa poesia; e leio os seus textos filosóficos como filosofia mesmo, e como filosofia bem escrita e pensada, embora eu nem sempre concorde com ela. Falo, é claro, dos textos que já li. O que eu tinha em mente era uma tendência que vem do Romantismo Alemão, passa por Nietzsche (que, no entanto, é um caso especial), Kierkegaard e Heidegger, e chega ao chamado pós-estruturalismo.
Quero esclarecer alguns pontos. O fato de que não penso ser produtivo, nem para a poesia nem para a filosofia, que elas confluam para uma única coisa não significa que eu creia que a poesia não possa usar para seus próprios fins as intuições, as concepções, as palavras ou mesmo os conceitos da filosofia, ou que um texto filosófico não possa ter momentos poéticos, ou até ser escrito em versos (embora esta última possibilidade me pareça francamente contraproducente). O que afirmo é que há uma diferença irredutível entre a finalidade da poesia e a da filosofia; ora, a finalidade de um objeto artificial enquanto artificial é a sua essência. Há, portanto, segundo penso, uma diferença essencial entre poesia e filosofia. Um dos modos que encontrei para exprimir essa diferença foi através dos conceitos de metadiscurso (o discurso que fala sobre outros discursos) e discurso-objeto (aquele sobre o qual outro discurso fala). A tese que sustento é que, enquanto a filosofia é um metadiscurso terminal (sobre o qual nenhum outro discurso, isto é, nenhum discurso não-filosófico é capaz de falar), a poesia é um discurso-objeto terminal (que não fala propriamente sobre nenhum outro discurso, nem sobre coisa alguma). Não vou me estender sobre esse assunto aqui, já que o fiz no artigo que você criticou. Sustento que essa diferença não deve ser esquecida ou menosprezada, nem pelo poeta, nem pelo filósofo, nem pelos seus leitores.
Sempre afirmei que um poeta pode usar todos os recursos de que disponha para produzir um poema: todo o seu intelecto, toda a sua sensibilidade, toda a sua intuição, toda a sua razão, toda a sua experiência, todo o seu vocabulário, todo o seu conhecimento, todo o seu senso de humor, toda a sua cultura. Por que não usaria também tudo o que sabe de filosofia? Eu jamais teria a veleidade de tentar estabelecer limites para as palavras ou os pensamentos abordáveis pela poesia. Entretanto, os elementos filosóficos que um poema contenha fazem parte de uma totalidade cujo sentido – quando se trata de um poema de verdade – jamais é, ele mesmo, meramente filosófico. Não se pode, por isso, julgar um poema enquanto poema a partir da filosofia que porventura contenha. Por que? Porque uma leitura que se contente com a filosofia de um poema seria uma leitura empobrecedora, do ponto de vista poético.
Assim, os poemas de Horácio, por exemplo, são obras primas enquanto poesia: pode-se dizer que se trata de poemas profundos, pois têm muitas dimensões, muitos níveis, apontam para muitas coisas, transformam-se a cada leitura que deles fazemos; mas, do ponto de vista estritamente filosófico, são de um epicurismo simplesmente banal. Em outras palavras, os poemas de Horácio são profundos, mas uma leitura estritamente filosófica deles seria superficial. Já o poema de Parmênides, por exemplo, é uma grande obra de filosofia, mas, considerado enquanto poesia, é fraco.
Analogamente, uma filosofia pode ser expressa em termos poéticos, mas, quando a julgamos enquanto filosofia, isso não tem o menor peso. Não importa, para a avaliação de Parmênides enquanto filósofo, que ele não seja tão bom poeta quanto Empédocles, por exemplo. Penso que quem tem razão é Aristóteles, que, referindo-se a Empédocles, comenta que “também os que expõem algo médico ou físico costumam ser assim chamados [de “poetas”]: mas nada há em comum entre Homero e Empédocles fora a métrica, razão pela qual é justo chamar um de poeta e o outro de fisiólogo, em vez de poeta” (Poética, 1447b17ss.).
Isso não quer dizer que Empédocles não tivesse, como já foi dito, mais méritos poéticos do que Parmênides, por exemplo. Ao contrário, Aristóteles mesmo os reconhece (Gigon fr.17). O que Aristóteles quer dizer é que, diferentemente do que ocorre com os poemas de Homero, o livro de Empédocles Sobre a natureza é importante por algo que nada tem a ver com a poesia – isto é, pela filosofia – e não pelos seus trechos poéticos: que o que neles realmente importa, que são as idéias filosóficas, podia ter sido exposto em outras palavras, em prosa.
Alguns pensadores, como Lucrécio, podem ser apreciados ora como filósofos ora como poetas. São grande poesia, por exemplo os trechos de De rerum natura II.552 ss. ou III.832 ss., ou ainda o extraordinário
"Nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
Surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat",
que resiste mal à tradução:
"Tudo é em vão pois em plena fonte da doçura
Surge algo amargo, alguma angústia em meio às flores".
(IV.1133).
Mas a verdade é que, em geral, os trechos poéticos de Lucrécio são, do ponto de vista da filosofia, fracos, e vice-versa.
Platão é evidentemente um grande escritor e um grande filósofo, mas não o considero um poeta. Os mais bem escritos dos seus diálogos o são porque têm uma função propedêutica. Eles querem seduzir os jovens bem dotados para a filosofia. É nesse sentido que competem com a poesia. Não que queiram ser poemas: ao contrário, a sua intenção é desviar o interesse dos jovens, da sofística e da poesia (que, para Platão, como transparece no diálogo “Sofista”, são praticamente a mesma coisa), para a filosofia. Geralmente, no começo de cada diálogo e, depois, em vários pontos dele, a sedução literária e erótica (no sentido carnal) cede sistematicamente lugar ao verdadeiro studium philosophandi, de modo que tanto os interlocutores de Sócrates quanto os leitores são conduzidos ao puro arrebatamento pela dialética e ao puro entusiasmo pela filosofia e pela busca da verdade.
Os verdadeiros personagens desses diálogos são a sofística, inclusive a poesia, de um lado, e a filosofia, de outro. É entre elas que se dão os embates. De certo modo, o sentido desses diálogos inclui, desde sempre, a expulsão dos poetas da Polis.
No “Fedro”, após atacar a escrita, Sócrates fala do logos que não é escrito em livros, mas na alma daquele que o aprende. Essa tese não é só do personagem platônico Sócrates, mas do próprio Platão que, falando enquanto Platão mesmo, na Carta VII – nada literária ou poética –, diz repetidamente que a verdadeira doutrina não pode ser escrita e que ele jamais pretendeu apresentá-la por escrito. Se é assim, então a função dos diálogos é apenas apontar para a verdadeira filosofia que, ágrafa, deve ser inscrita na alma. É a tese da escola de Tübingen.
“A escrita, Fedro”, diz Sócrates (275d4ss.), “tem essa qualidade esquisita, na verdade semelhante à da pintura. Pois as criaturas desta parecem estar vivas, mas se lhes indagares algo, silenciam solenemente. Assim são os escritos. Pensarias que falam com inteligência, mas se lhes perguntares, querendo entender as coisas que dizem, significam sempre as mesmas coisas. E uma vez escrito, todo discurso rola por toda parte, tanto entre os que o entendem quanto entre os que não se interessam por ele, e não sabe a quem deve falar e a quem não. E quando maltratado ou insultado, precisa sempre ser defendido pelo seu pai, pois ele próprio não é capaz de se defender”.
Observe que o que Sócrates diz aí dos escritos aplica-se somente aos discursos filosóficos. São esses que precisam ser defendidos pelos filósofos que os escreveram (ou pelos seus seguidores). Os discursos poéticos, ao contrário, não precisam – nem devem – ser defendidos pelos poetas que os compuseram.
De todo modo, o importante é que esses trechos deixam entrever a possibilidade de conceber um filósofo que simplesmente se cale e continue sendo um filósofo. Assim são alguns filósofos indianos. Ora, não chamaríamos de “poeta” alguém que não compusesse poemas. É que, enquanto a filosofia não se realiza plenamente nos discursos filosóficos, mas, ao contrário, estes são um caminho para aquela, a poesia se realiza plenamente nos discursos poéticos, que são os poemas. Mesmo etimologicamente isso é verdadeiro, pois, enquanto “filosofia” significa o puro amor à sabedoria, o que não implica fazer coisa alguma, “poesia” significa feitura, e o poema é o feito. Observe que, na Antiguidade, não se cunhou a palavra filosofema, análoga a poema. É que, enquanto o poema é a finalidade da poesia, a finalidade da filosofia – e dos textos filosóficos – é a própria filosofia.
Interessa-me agora um outro ponto. É que, no meu texto, eu havia dito que considero um erro, tanto para a poesia quanto para a filosofia, “ a vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra”. Você comenta que “no que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em ‘erro’ me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único ‘erro’ possível de se cometer. Não se pode falar em ‘erro’ nem no que se refere à indiscenibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas”.
Ora, se você acha que errei, ao dizer que é um erro a tentativa de confundir poesia e filosofia, por que não poderia eu achar que errado está quem tenta confundi-las? Quem afirma uma tese, implicitamente afirma a sua verdade; e afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Do mesmo modo, afirmar uma tese é, implicitamente, afirmar que ela está certa; e afirmar que ela está certa é afirmar que está errada a tese que a contradiz. Por isso, se penso que está certo dizer que a poesia e a filosofia não devem se confundir, não posso deixar de pensar que está errado quem pensa o oposto.
E aqui aproveito para tocar em mais uma diferença entre a poesia e a filosofia: é que a filosofia pretende afirmar verdades. Ora, afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Por isso, as teses filosóficas não são todas compatíveis umas com as outras: ao contrário, umas negam as outras. Não é possível acreditar simultaneamente em duas teses realmente contraditórias. O mesmo não ocorre com a poesia. Um poema pode ser inteiramente diferente do outro: pode até, do ponto de vista extra-poético, afirmar o oposto do que o outro afirma. Como observa Nelson Ascher no prefácio ao seu excelente Poesia alheia, um poema pode dizer que tudo muda no mundo e o outro, que não há nada de novo sob o sol. No entanto, podemos apreciar os dois – podemos acreditar nos dois – igualmente.
Pois bem, o meu texto, que você critica, não é poético, mas filosófico. Ele afirma, portanto, algumas coisas, que tem como verdadeiras e certas; consequentemente, considera falsas e erradas as teses opostas. Permita-me dizer que o fato de que você considere isso errado é, a meu ver, um dos erros a que a confusão teórica entre a poesia e a filosofia pode levar.
Finalmente, a sua tese de que, num texto filosófico “a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético” parece-me inteiramente insustentável. Basta lembrar o seguinte: artigos são escritos e aulas são dadas sobre a filosofia de Tales de Mileto, do qual, no entanto, não sobrou sequer um fragmento; há uma bibliografia imensa de obras sobre a filosofia de Sócrates: não me refiro ao personagem de Platão, mas ao ateniense de carne e osso, que jamais expôs sua filosofia por escrito; ora, nada nem de longe equivalente existe ou poderia existir sobre poeta algum do qual não tenha sobrevivido ao menos alguma coisa escrita.
Um grande abraço,
Antonio Cicero
Em primeiro lugar, quero deixar claro que não estava pensando nos seus livros, ao escrever o artigo que você critica. Não que eu não pense neles: ao contrário, aprecio muito os textos que já li, tanto de "Pelo Colorido, para além do Cinzento", quanto de “A Fronteira Desguarnecida”. Creio que foram duas as razões pelas quais não pensei nos seus livros, ao criticar o que vejo como a tendência contemporânea a assimilar poesia e filosofia. A primeira é que, embora você de fato defenda teoricamente o “desguarnecimento” das fronteiras entre a poesia e a filosofia, a verdade é que não leio os seus textos poéticos como filosofia, mas como poesia mesmo, e como boa poesia; e leio os seus textos filosóficos como filosofia mesmo, e como filosofia bem escrita e pensada, embora eu nem sempre concorde com ela. Falo, é claro, dos textos que já li. O que eu tinha em mente era uma tendência que vem do Romantismo Alemão, passa por Nietzsche (que, no entanto, é um caso especial), Kierkegaard e Heidegger, e chega ao chamado pós-estruturalismo.
Quero esclarecer alguns pontos. O fato de que não penso ser produtivo, nem para a poesia nem para a filosofia, que elas confluam para uma única coisa não significa que eu creia que a poesia não possa usar para seus próprios fins as intuições, as concepções, as palavras ou mesmo os conceitos da filosofia, ou que um texto filosófico não possa ter momentos poéticos, ou até ser escrito em versos (embora esta última possibilidade me pareça francamente contraproducente). O que afirmo é que há uma diferença irredutível entre a finalidade da poesia e a da filosofia; ora, a finalidade de um objeto artificial enquanto artificial é a sua essência. Há, portanto, segundo penso, uma diferença essencial entre poesia e filosofia. Um dos modos que encontrei para exprimir essa diferença foi através dos conceitos de metadiscurso (o discurso que fala sobre outros discursos) e discurso-objeto (aquele sobre o qual outro discurso fala). A tese que sustento é que, enquanto a filosofia é um metadiscurso terminal (sobre o qual nenhum outro discurso, isto é, nenhum discurso não-filosófico é capaz de falar), a poesia é um discurso-objeto terminal (que não fala propriamente sobre nenhum outro discurso, nem sobre coisa alguma). Não vou me estender sobre esse assunto aqui, já que o fiz no artigo que você criticou. Sustento que essa diferença não deve ser esquecida ou menosprezada, nem pelo poeta, nem pelo filósofo, nem pelos seus leitores.
Sempre afirmei que um poeta pode usar todos os recursos de que disponha para produzir um poema: todo o seu intelecto, toda a sua sensibilidade, toda a sua intuição, toda a sua razão, toda a sua experiência, todo o seu vocabulário, todo o seu conhecimento, todo o seu senso de humor, toda a sua cultura. Por que não usaria também tudo o que sabe de filosofia? Eu jamais teria a veleidade de tentar estabelecer limites para as palavras ou os pensamentos abordáveis pela poesia. Entretanto, os elementos filosóficos que um poema contenha fazem parte de uma totalidade cujo sentido – quando se trata de um poema de verdade – jamais é, ele mesmo, meramente filosófico. Não se pode, por isso, julgar um poema enquanto poema a partir da filosofia que porventura contenha. Por que? Porque uma leitura que se contente com a filosofia de um poema seria uma leitura empobrecedora, do ponto de vista poético.
Assim, os poemas de Horácio, por exemplo, são obras primas enquanto poesia: pode-se dizer que se trata de poemas profundos, pois têm muitas dimensões, muitos níveis, apontam para muitas coisas, transformam-se a cada leitura que deles fazemos; mas, do ponto de vista estritamente filosófico, são de um epicurismo simplesmente banal. Em outras palavras, os poemas de Horácio são profundos, mas uma leitura estritamente filosófica deles seria superficial. Já o poema de Parmênides, por exemplo, é uma grande obra de filosofia, mas, considerado enquanto poesia, é fraco.
Analogamente, uma filosofia pode ser expressa em termos poéticos, mas, quando a julgamos enquanto filosofia, isso não tem o menor peso. Não importa, para a avaliação de Parmênides enquanto filósofo, que ele não seja tão bom poeta quanto Empédocles, por exemplo. Penso que quem tem razão é Aristóteles, que, referindo-se a Empédocles, comenta que “também os que expõem algo médico ou físico costumam ser assim chamados [de “poetas”]: mas nada há em comum entre Homero e Empédocles fora a métrica, razão pela qual é justo chamar um de poeta e o outro de fisiólogo, em vez de poeta” (Poética, 1447b17ss.).
Isso não quer dizer que Empédocles não tivesse, como já foi dito, mais méritos poéticos do que Parmênides, por exemplo. Ao contrário, Aristóteles mesmo os reconhece (Gigon fr.17). O que Aristóteles quer dizer é que, diferentemente do que ocorre com os poemas de Homero, o livro de Empédocles Sobre a natureza é importante por algo que nada tem a ver com a poesia – isto é, pela filosofia – e não pelos seus trechos poéticos: que o que neles realmente importa, que são as idéias filosóficas, podia ter sido exposto em outras palavras, em prosa.
Alguns pensadores, como Lucrécio, podem ser apreciados ora como filósofos ora como poetas. São grande poesia, por exemplo os trechos de De rerum natura II.552 ss. ou III.832 ss., ou ainda o extraordinário
"Nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
Surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat",
que resiste mal à tradução:
"Tudo é em vão pois em plena fonte da doçura
Surge algo amargo, alguma angústia em meio às flores".
(IV.1133).
Mas a verdade é que, em geral, os trechos poéticos de Lucrécio são, do ponto de vista da filosofia, fracos, e vice-versa.
Platão é evidentemente um grande escritor e um grande filósofo, mas não o considero um poeta. Os mais bem escritos dos seus diálogos o são porque têm uma função propedêutica. Eles querem seduzir os jovens bem dotados para a filosofia. É nesse sentido que competem com a poesia. Não que queiram ser poemas: ao contrário, a sua intenção é desviar o interesse dos jovens, da sofística e da poesia (que, para Platão, como transparece no diálogo “Sofista”, são praticamente a mesma coisa), para a filosofia. Geralmente, no começo de cada diálogo e, depois, em vários pontos dele, a sedução literária e erótica (no sentido carnal) cede sistematicamente lugar ao verdadeiro studium philosophandi, de modo que tanto os interlocutores de Sócrates quanto os leitores são conduzidos ao puro arrebatamento pela dialética e ao puro entusiasmo pela filosofia e pela busca da verdade.
Os verdadeiros personagens desses diálogos são a sofística, inclusive a poesia, de um lado, e a filosofia, de outro. É entre elas que se dão os embates. De certo modo, o sentido desses diálogos inclui, desde sempre, a expulsão dos poetas da Polis.
No “Fedro”, após atacar a escrita, Sócrates fala do logos que não é escrito em livros, mas na alma daquele que o aprende. Essa tese não é só do personagem platônico Sócrates, mas do próprio Platão que, falando enquanto Platão mesmo, na Carta VII – nada literária ou poética –, diz repetidamente que a verdadeira doutrina não pode ser escrita e que ele jamais pretendeu apresentá-la por escrito. Se é assim, então a função dos diálogos é apenas apontar para a verdadeira filosofia que, ágrafa, deve ser inscrita na alma. É a tese da escola de Tübingen.
“A escrita, Fedro”, diz Sócrates (275d4ss.), “tem essa qualidade esquisita, na verdade semelhante à da pintura. Pois as criaturas desta parecem estar vivas, mas se lhes indagares algo, silenciam solenemente. Assim são os escritos. Pensarias que falam com inteligência, mas se lhes perguntares, querendo entender as coisas que dizem, significam sempre as mesmas coisas. E uma vez escrito, todo discurso rola por toda parte, tanto entre os que o entendem quanto entre os que não se interessam por ele, e não sabe a quem deve falar e a quem não. E quando maltratado ou insultado, precisa sempre ser defendido pelo seu pai, pois ele próprio não é capaz de se defender”.
Observe que o que Sócrates diz aí dos escritos aplica-se somente aos discursos filosóficos. São esses que precisam ser defendidos pelos filósofos que os escreveram (ou pelos seus seguidores). Os discursos poéticos, ao contrário, não precisam – nem devem – ser defendidos pelos poetas que os compuseram.
De todo modo, o importante é que esses trechos deixam entrever a possibilidade de conceber um filósofo que simplesmente se cale e continue sendo um filósofo. Assim são alguns filósofos indianos. Ora, não chamaríamos de “poeta” alguém que não compusesse poemas. É que, enquanto a filosofia não se realiza plenamente nos discursos filosóficos, mas, ao contrário, estes são um caminho para aquela, a poesia se realiza plenamente nos discursos poéticos, que são os poemas. Mesmo etimologicamente isso é verdadeiro, pois, enquanto “filosofia” significa o puro amor à sabedoria, o que não implica fazer coisa alguma, “poesia” significa feitura, e o poema é o feito. Observe que, na Antiguidade, não se cunhou a palavra filosofema, análoga a poema. É que, enquanto o poema é a finalidade da poesia, a finalidade da filosofia – e dos textos filosóficos – é a própria filosofia.
Interessa-me agora um outro ponto. É que, no meu texto, eu havia dito que considero um erro, tanto para a poesia quanto para a filosofia, “ a vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra”. Você comenta que “no que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em ‘erro’ me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único ‘erro’ possível de se cometer. Não se pode falar em ‘erro’ nem no que se refere à indiscenibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas”.
Ora, se você acha que errei, ao dizer que é um erro a tentativa de confundir poesia e filosofia, por que não poderia eu achar que errado está quem tenta confundi-las? Quem afirma uma tese, implicitamente afirma a sua verdade; e afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Do mesmo modo, afirmar uma tese é, implicitamente, afirmar que ela está certa; e afirmar que ela está certa é afirmar que está errada a tese que a contradiz. Por isso, se penso que está certo dizer que a poesia e a filosofia não devem se confundir, não posso deixar de pensar que está errado quem pensa o oposto.
E aqui aproveito para tocar em mais uma diferença entre a poesia e a filosofia: é que a filosofia pretende afirmar verdades. Ora, afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Por isso, as teses filosóficas não são todas compatíveis umas com as outras: ao contrário, umas negam as outras. Não é possível acreditar simultaneamente em duas teses realmente contraditórias. O mesmo não ocorre com a poesia. Um poema pode ser inteiramente diferente do outro: pode até, do ponto de vista extra-poético, afirmar o oposto do que o outro afirma. Como observa Nelson Ascher no prefácio ao seu excelente Poesia alheia, um poema pode dizer que tudo muda no mundo e o outro, que não há nada de novo sob o sol. No entanto, podemos apreciar os dois – podemos acreditar nos dois – igualmente.
Pois bem, o meu texto, que você critica, não é poético, mas filosófico. Ele afirma, portanto, algumas coisas, que tem como verdadeiras e certas; consequentemente, considera falsas e erradas as teses opostas. Permita-me dizer que o fato de que você considere isso errado é, a meu ver, um dos erros a que a confusão teórica entre a poesia e a filosofia pode levar.
Finalmente, a sua tese de que, num texto filosófico “a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético” parece-me inteiramente insustentável. Basta lembrar o seguinte: artigos são escritos e aulas são dadas sobre a filosofia de Tales de Mileto, do qual, no entanto, não sobrou sequer um fragmento; há uma bibliografia imensa de obras sobre a filosofia de Sócrates: não me refiro ao personagem de Platão, mas ao ateniense de carne e osso, que jamais expôs sua filosofia por escrito; ora, nada nem de longe equivalente existe ou poderia existir sobre poeta algum do qual não tenha sobrevivido ao menos alguma coisa escrita.
Um grande abraço,
Antonio Cicero
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17.6.07
Letra de canção e poesia
Publiquei o seguinte texto na minha coluna da Ilustrada, na Folha de São Paulo, sábado, 16 de Junho de 2007:
Letra de canção e poesia
COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?
Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
Letra de canção e poesia
COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?
Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
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