O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo sábado, 1 de Dezembro de 2007:
A poesia escrita
EM REVISTAS e sítios de literatura, tenho lido textos que se queixam do estado atual da poesia. É verdade que, em todas as épocas, houve quem desprezasse os poemas que não seguissem os modelos tradicionais ou que não se distinguissem pela pátina do tempo. Contudo, as queixas a que me refiro não são exatamente dessa natureza.
O que se lamenta é, antes, que a poesia não pareça mais possuir o prestígio cultural de que já desfrutou um dia. Alega-se, por exemplo, que poema algum é capaz de ter, no mundo contemporâneo, um impacto comparável ao que determinados filmes, discos e concertos de rock têm.
Nem sempre coincidem os diagnósticos propostos, nem, conseqüentemente, as terapias para essa pretensa anemia poética. Alguns pensam que a poesia perdeu sua importância porque -tendo-se esquecido de que era originalmente articulada à fala e ao corpo- deixou-se confinar à escrita. O remédio, neste caso, seria, em última análise, que o poeta se tornasse o performer dos seus próprios poemas.
Outros, reintroduzindo, com nova terminologia, o velho e compreensível ressentimento contra as torres de marfim, julgam que a poesia se tornou irrelevante porque, tendo perdido contato real com as outras artes e, de maneira geral, com a realidade contemporânea, tornou-se incapaz de produzir formas dotadas de atualidade. O remédio, neste caso, seria, em última análise, que o poeta, fazendo questão de se imbuir no seu contexto cultural, refletisse no seu trabalho uma tomada de posição em relação a ele.
No fundo, as duas posições me parecem derivar da dificuldade desses autores de lidar com a exigência extrema e singular que a poesia escrita impõe não somente ao poeta, mas ao leitor.
De fato, na poesia oral primária, como na de Homero, o que o bardo recitava ou cantava era ligado à presença, à voz, à dicção, aos movimentos corporais dele. As palavras, a música e a dança se unificavam na sua figura. Algo do que ele recitava era repetição de coisas que já havia dito, algo era novo, e não havia nem há meio de se saber o que era antigo e o que era novo. Cunhou-se para essa situação a expressão "composition in performance" (composição durante a performance). Isso quer dizer que a produção e o consumo do poema são simultâneos. Hoje, o que lembra um pouco isso é o jazz, por um lado, e o flamenco, por outro.
De fato, a escrita rompe essa unidade oral. Quem lê um poema não precisa sequer saber quem o compôs. A criação é uma coisa e a apreciação, outra, separadas temporal e espacialmente: posso, por exemplo, apreciar um poema escrito em Roma, no século 2, em latim. Não interessam mais a voz, a dicção, o canto, os movimentos do corpo, a dança, a figura do poeta. É, em primeiro lugar, a voz interna do leitor que agora lê o poema.
O que interessa são as palavras e os sintagmas de que o poema se compõe: seus sentidos, sua sonoridade, seu ritmo, suas relações paronomásicas, suas aliterações, suas rimas, seus assíndetos, as relações icônicas que estabelecem... E o poema é lido, relido e comparado e contrastado, em princípio, com todos os poemas que se tornaram canônicos e com todos os poemas que o leitor conhece.
O poema é agora um objeto de arte, como uma pintura. Para apreciá-lo plenamente -como para apreciar plenamente uma pintura-, temos que lhe dedicar o nosso tempo, convocando e deixando que interajam uns com os outros todos os recursos de que dispomos: intelecto, experiência, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc.
Quanto melhor o poema, mais dos nossos recursos são por ele atualizados: e essa atualização mesma é a recompensa estética que ele nos oferece. Podemos dizer, portanto, que é o grau de poesia de um objeto, e não o seu grau de contemporaneidade, a verdadeira medida da atualidade que ele nos proporciona.
Para quem desse modo aprecia a poesia escrita, ela não perdeu nem um pingo do seu prestígio cultural nem do seu impacto. É verdade que a leitura de poemas não é popular como grande parte dos filmes, discos e concertos de rock, entre outras coisas. E por que teria de ser? Mesmo a maior parte das pessoas cultas raramente -e talvez nunca- queira fazer o esforço que a leitura de um poema exige. Mas por que seriam obrigadas a tal?
Há, de fato, tantos grandes filmes, discos e concertos de rock... Os poetas escrevem, em primeiro lugar, para aqueles que, como eles, acham incomparável o prazer proporcionado pela leitura de um grande poema.
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2.12.07
A poesia escrita
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