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13.12.09

Fernando Pessoa e os mitos

O seguinte artigo foi publicado sábado, 13 de dezembro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:

Fernando Pessoa e os mitos


"O MITO é o nada que é tudo", diz o famoso primeiro verso do poema "Ulisses", do livro "Mensagem", de Fernando Pessoa. Em anotação de 1930 que devia ser o esboço do prefácio para a edição projetada das suas obras, ele diz: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade".

Essa concepção dos mitos como obras parece-me estar de acordo com a concepção homérica. Na cultura oral primária grega, que desconhecia a escrita, "mythos" se opunha a "epos". "Epos" (de onde vem "epopeia", a produção de "epos") é o discurso que se reitera, como as canções, os provérbios, algumas rezas, os epítetos tradicionais dos heróis ou deuses, e cada palavra individual.

"Mythos" é, ao contrário, o que jamais se reitera, como uma conversa qualquer, isto é, aquilo que se diz sobre alguma coisa. Assim, o mito de Édipo, por exemplo, é simplesmente o que se diz sobre Édipo. Pois bem, o que é que se diz sobre Édipo? Para nós é principalmente o que os poetas disseram sobre Édipo; em primeiro lugar, é o que os maiores poemas sobre Édipo disseram sobre ele: e esses são as peças de Sófocles; em segundo lugar, é o que os outros, como Freud, disseram principalmente a partir do que Sófocles dissera. Assim também, o mito de Ulisses é principalmente o que dele nos contam os poemas homéricos; o de Hamlet, principalmente o que dele nos conta Shakespeare etc.

Segundo o historiador Heródoto, foram os poemas de Hesíodo e de Homero que criaram "uma teogonia para os helenos e deram as denominações e as honras e distribuíram as artes e indicaram os aspectos dos deuses".

Assim, Pessoa tem razão quando, em anotação, de 1918, tendo observado que "a religião cristã é essencialmente dogmática, no sentido de que tem princípios assentes, aos quais o crente tem, dentro de estreitos limites, que subordinar-se”, observa que “no paganismo não é assim. A sua ação imaginativa criadora não se sente presa. Pode inventar um belo mito, que, se na verdade for belo ou insinuador, entrará na religião. Tão humana comunhão com a vida dos deuses não é possível no cristismo. O cristão católico tem a liberdade de inventar aparecimentos de Maria a este ou àquele, mas há severos limites às suas faculdades mitopeicas".

Dado que o criador de mitos, como mostra Heródoto, é o poeta, então é o poeta que, ao criar mitos, exerce, segundo Pessoa, "o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade": e é esse poeta que ele pretende ser.

Observo que essa concepção do poeta como criador de mitos está longe de ser trivial em nossa época. Muito mais comum é a contrária, que herdamos do romantismo, mas cuja origem mais remota talvez esteja em Platão. Refiro-me à concepção segundo a qual o mito é um arquétipo imemorial, incriado, que os poetas, por uma espécie de anamnese, recuperam para a comunidade a que pertencem. Para Pessoa, segundo penso, o mito é exatamente o oposto disso: o produto da poesia.

Não é gratuitamente que Pessoa retoma o mito de Ulisses e sua lendária fundação de Lisboa. Seu Portugal representa o mais alto destino não tanto da Grécia, da Europa ou do Ocidente em particular, mas, no fundo, de todos esses e mais, isto é, o destino do mundo moderno. "A arte portuguesa", diz ele em "Ultimatum e Páginas de Sociologia Política", "será aquela em que a Europa (entendendo por Europa principalmente a Grécia Antiga e o universo inteiro) se mire e se reconheça sem lembrar do espelho".

É assim que a verdade profunda do seguinte texto de Pessoa fica mais evidente quando se compreende que a palavra "português" funciona nele como um curinga, podendo ser substituída por "brasileiro", "italiano", "russo" etc.:

"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu [...]. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade".

2.12.08

Comentários de Aetano sobre Jorges Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas

Dois comentários de Aetano, um sobre o poema de Borges, e outro sobre o do Alberto Caeiro – em ambos ele se refere a Nietzsche –, provocaram-me a escrever respostas um pouco mais longas do que o normal. Achei que tanto os comentários como as respostas mereciam ser postadas aqui.

Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:

Aetano disse:

"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta

Minha resposta:

Aetano,

Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.

O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".

“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.

Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.

É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.

Antonio Cicero


Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:

Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.

Minha resposta:

Aetano,

Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:

“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.

De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.


Outro trecho:

“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”

De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.

E um trecho um pouco mais forte:

“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”

De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.

Antonio Cicero