30.6.19

Carlos Drummond de Andrade: "Oficina irritada"




Oficina irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.





ANDRADE, Carlos Drummond de. "Oficina irritada". In:_____. "Claro enigma". In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

28.6.19

Antero de Quental: "Em viagem"




Em viagem

Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de áspero monte
E os sóis e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Fantasmas que surgiam do horizonte
A acometer meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...
Atraz deles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!





QUENTAL, Antero de. "Em viagem". In:_____. Sonetos. Org. por António Sérgio. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1963.

26.6.19

Tanussi Cardoso: "Origem 1"




Origem 1


eu não sou 
de onde nasci

eu não sou 
de onde vim

nenhuma língua me engana
nenhuma terra me enterra

eu sou
onde estou

eu sou
onde sou





CARDOSO, Tanussi. "Origem 1". In:_____. eu e outras conssequências. Guaratinguetá: Editora Penaluz, 2017.

23.6.19

José Gomes Ferreira: "Menino que vais na rua"




Menino que vais na rua

                   (Serenata cínica para o Bettencourt cantar:)


Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na Lua
e aprende a pisar a Terra.


Aprende a pisar o Mundo.
Deixa a Lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.


Aprende a pisar a vida.
Deixa a Lua às costureiras
–  pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.


Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.


Pisa a Lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.


Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.


Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta pra Lua
e mija de lá na Terra.




FERREIRA, José Gomes. "Menino que vais na rua". In:_____. Poesias II. Lisboa: Portugália Editora, 1972.


21.6.19

William Soares dos Santos: "O novo modus operandi do mundo é o algoritmo"




O novo modus operandi do mundo é o algoritmo

O novo modus operandi do mundo
é o algoritmo.
Não mais aquele sentimento de
ser uma espécie que a biologia
constituiu em tempos primais,
nem a consciência que se instaurou
com o orgulho da modernidade,
mas as estatísticas que,
de agora em diante,
parecem conduzir
a nossa história
sem lances de dados.





SANTOS, William Soares dos. "O novo modus operandi do mundo é o algoritmo". In:_____. Três Sóis. São Paulo: Patuá, 2019.

19.6.19

Robert Frost: "Nothing gold can stay" / "Nada de ouro permanece": trad. de Ivan Justen Santana




Nothing Gold Can Stay

Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.




FROST, Robert. "Nothing gold can stay". In:_____. The poetry of Robert Frost: The collected poems. Org. por Edward Connery Lathem. New York: Henry Holt and Company, 1975.




Nada de ouro permanece

O verde no início é de ouro,
Seu mais difícil tesouro.
Folha nova em flor aflora,
Mas apenas por uma hora.
Depois folhas se sucedem.
Na mágoa naufraga esse Éden,
No dia essa aurora perde-se.
Nada de ouro permanece.





FROST, Robert. "Nada de ouro permanece". Trad. de Ivan Justen Santana. In URL ossurtado.blogspot.com/2011/06/nothing-nada-gold-permanece-can-verde.html. 

17.6.19

A Estante do Poeta



Amanhã, dia 18, estarei no Espaço Afluentes, na Av. Rio Branco, 181, sala 1905 (em frente à estação de metrô “Carioca”), participando do projeto “A Estante do Poeta”, no qual fui convidado a conversar com Paulo Sabino sobre como a poesia entrou na minha vida, como foi que me descobri poeta e que poetas e/ou poemas mais me influenciaram. 

Antonio Cicero



15.6.19

Eugénio de Andrade: "Mar de setembro"




Mar de setembro

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.




ANDRADE, Eugénio de. "Mar de setembro". In:_____. Poemas de Eugénio de Andade. Org. Por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

13.6.19

Manoel de Barros: "Sem título"




Sem título

de Livro sobre nada (1996)


Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso
porque não encontrava um título para os seus poemas.
Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que
apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese
o acalmou.)

As antíteses congraçam.





BARROS, Manoel de. "Sem título". In:_____. Ocupação Manuel de Barros. Org. por Carlos Costa. São Paulo: Itaú Cultural, 2019.

11.6.19

Emily Dickinson: "Fame is a bee" / "A Fama é uma abelha"




79

A Fama é uma abelha.
   Tem um estribilho –
Um ferrão em brasa –
   Ah! também tem asa.





79

Fame is a bee.
   It has a song –
It has a sting –
   Ah, too, it has a wing.







DICKINSON,  Emily. "Fame is a bee" \ "A Fama é uma abelha". In:_____. Não sou ninguém. Trad. de Augusto de Campos. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

9.6.19

Fernando Pessoa / Ricardo Reis: "Sim, sei bem"




Sim, sei bem



Sim, sei bem

Que nunca serei alguém.

    Sei de sobra

Que nunca terei uma obra.

    Sei, enfim,

Que nunca saberei de mim.

    Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,

    Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,

    Deixem-me me crer

O que nunca poderei ser.





PESSOA, Fernando. "Sim, sei bem". In:_____. "Odes de Ricardo Reis". In:_____. "Ficções do interlúdio". In:_____. Obra poética. Org. por Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

7.6.19

Francisco Alvim: "Com ansiedade"




Com ansiedade

Os dias passam ao lado
o sol passa ao lado
de quem desceu as escadas

Nas varandas tremula
o azul de um céu redondo, distante

Quem tem janelas
que fique a espiar o mundo




ALVIM, Francisco. "Com ansiedade". In:_____. Poemas. 1968-2000. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

5.6.19

Antero de Quental: "O que diz a Morte"




O que diz a Morte

Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. -

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.




QUENTAL, Antero de. "O que diz a Morte". In:_____. Sonetos. Org. por Antonio Sergio. Lisboa: Sá da Costa, 1963.

1.6.19

Nelson Ascher: "Saudade"




Saudade

Posto que nem é de bom-tom falar
sobre a tristeza insossa
cujo vaivém, quando se apossa
de mim, me embala como o som

sem fim das ondas do Leblon,
dispondo-me a curtir a fossa
a sós, pus na vitrola a bossa
nova de João, Vinícius, Tom,

menos pra ouvir o que ela tem,
porque talvez já nem me agrade
a ausência tanto faz de quem,

do que pra que, pouco à vontade,
meu coração se encha, se bem
que sob protesto, de saudade.




ASCHER, Nelson. "Saudade". In:_____. Parte alguma. Poesia (1997-2004). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.