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6.3.09

A liberdade e o juízo de valor na poesia

Publico a seguir a entrevista que dei ao Héber Sales (cujo blog de poesia, que recomendo, é o Coisas para fazer com palavras). A entrevista foi publicada pela Cronópios.



Por Héber Sales





Filósofo, poeta e compositor, parceiro, entre outros, de Marina Lima, Adriana Calcanhoto, João Bosco e Lulu Santos, Antonio Cicero publicou em 2006 o livro Finalidades sem Fim, uma obra que o coloca, a meu ver, no centro de um espaço ainda muito carente na poesia brasileira: o espaço de uma reflexão unificadora e sistemática sobre a arte. Não é uma posição fácil, já que vivemos num tempo em que todo juízo é relativizado, as grande narrativas são vistas com desconfiança e debater o gosto se tornou politicamente incorreto. Talvez por esses motivos, os ensaios de Finalidades sem Fim ainda não mereceram a devida atenção entre nós, especialmente na academia brasileira, onde eles deveriam estar sendo lidos com entusiasmo. Nesta entrevista, trago a vocês a parte central de um longo bate-papo que Antonio Cicero e eu tivemos há alguns meses. O ponto de partida foi a minha inquietação diante da sua tese do fim das vanguardas. Segundo o filósofo, não há e nem haverá mais vanguardas porque elas já cumpriram o seu papel de desprovincializar a arte e afirmar a validade de toda forma de poesia - o que não significa dizer que todo poema é bom e nem que não haja mais experimentação poética. É a partir dessa afirmação que se desenvolve a nossa sabatina com Antonio Cicero. Vamos a ela.



Héber Sales: Se, como você sustenta no livro Finalidades sem Fim, a desprovincialização da poesia nos permite todas as formas, se a poesia hoje não consiste em nenhuma forma específica, o que é poesia afinal? O que a distingue de outros gêneros?

Antonio Cicero: Tanto sobre o que distingue a poesia de outros gêneros quanto sobre o valor de um poema, um dos caminhos que tenho seguido diz respeito ao grau de escritura de um texto. Considero o poema o mais escrito dos escritos.

Héber Sales: Qual seria então, por exemplo, a diferença entre o poema e o ditado? Enquanto textos prontos e acabados, os ditados parecem compartilhar com o poema muitas das especificidades deste: 1) neles também não se separa O QUE se diz da forma COMO se diz; 2) daí serem igualmente resistentes à paráfrase e à tradução; 3) além disso, eles são entesouráveis, ou seja, são um patrimônio da língua (não sofrem de descartabilidade). A meu ver, a única diferença entre o ditado e os poema seria que, ao contrário deste, o ditado costuma ser usado com uma finalidade cognitiva ou prática. Mas essa distinção poderia ser anulada, e um ditado elevado à condição de poema, caso ele fosse apresentado como objeto sem função específica por uma pessoa socialmente autorizada para tal: ou seja, se um poeta apresentar um ditado como poema, quem irá dizer que não o é, especialmente se o autor usar padrões reconhecidamente poéticos? Será que, no final das contas, poesia não seria simplesmente aquilo que os poetas dizem ser poesia?

Antonio Cicero: Suas observações são pertinentes, você percebeu coisas importantes. Você observa que caracterizo o poema, enquanto poema, como "um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada". De fato, para mim, essa é uma das descrições que chegam mais perto de determinar o que é um poema, SEM A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER JUÍZO DE VALOR. Entretanto, não creio que seja possível determinar totalmente o que é um poema sem a utilização de juízos de valor.

Um ditado, uma vez retirado de todo contexto utilitário ou cognitivo, poderia ser considerado como um poema. Publicado numa revista literária, mesmo sem versos ou título (como os poemas concretos), ele seria considerado como poema: o que uma revista literária faz é exatamente retirá-lo de qualquer contexto utilitário ou cognitivo e apresentá-lo à apreciação estética. O mesmo ocorre, naturalmente, quando Duchamp retira um urinol do seu contexto utilitário ou cognitivo e o expõe num museu: ele passa a ser considerado como obra de arte.

Examinemos bem o que eu disse: retirado do seu contexto utilitário ou cognitivo, um objeto (que pode ser verbal, como no caso de um poema) passa a ser CONSIDERADO como se considera uma obra de arte. Será que isso quer dizer que ele já é, então, uma obra de arte? Não necessariamente. Eu posso olhar para um pretenso poema numa revista – isto é, um texto que pede para ser considerado como um poema – e dizer: isso não é um poema; é uma bobagem. E se esse juízo se generalizar, é provável que o pretenso poema seja esquecido, que acabe sendo, realmente, considerado apenas uma bobagem por todo o mundo, e que não chegue a ser visto como obra de arte.

Héber Sales: Em que condições então podemos dizer que um texto que se diz poema é um poema, e dos bons?

Antonio Cicero: O que ocorre é que não é possível determinar de modo puramente descritivo se algo é um poema ou não. Para determinar se algo é um poema, entra em jogo, além da descrição que dei acima ("um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada"), algo que pode ser objeto de discussão, mas não pode ser objeto de prova. Refiro-me a um juízo de valor. Além de ser “um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada”, um poema é um objeto que consideramos valer por si, sem necessidade de justificativa ulterior: um objeto ao qual damos valor, sem que tenhamos nenhum interesse ulterior na existência dele.

Héber Sales: E quando é que uma obra de arte vale por si?

Antonio Cicero: Quando, mesmo sem nenhuma finalidade biológica, prática ou cognitiva, ela mobiliza, vitaliza e faz interagirem no mais alto grau as nossas faculdades, as nossas capacidades, os nossos recursos. Quando ela nos atrai e nos faz pensar nela com vários dos recursos de que dispomos: inteligência, razão, cultura, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor etc. Está justamente na provocação e na mobilização dos nossos recursos o valor dela. Um poema que não faça nada disso, ou que o faça muito pouco, não é bom, ou mesmo não é um poema.

Héber Sales: Não seria esse um conceito muito subjetivo e, portanto, relativo? Ele parece justificar a posição daqueles que dizem que cada um deve decidir o que é um poema...

Antonio Cicero: Quando digo que um texto é um poema, ou que é um poema bom, não estou dizendo meramente que gosto dele, mas que todo o mundo que o considere desinteressadamente DEVE reconhecer que se trata de um poema. Se não fosse assim, valeria aqui o ditado “gosto não se discute”. Ora, todo o mundo sabe que o que mais se discute é gosto, quando se refere a obras de arte. Por outro lado, se digo “eu gosto de abacate”, não pretendo o mesmo. Não acho que todo o mundo que seja despreconceituoso DEVA gostar de abacate. É aqui que vale o ditado “gosto não se discute”.

Há, sem dúvida, muita discussão sobre determinados textos. Mas essas discussões mesmas mostram que há alguns terrenos em comum entre os que dela participam. Não se pode provar por a + b que tal texto seja um grande poema, mas milhões de páginas têm sido escritas, há séculos, para argumentar que tais ou quais textos são (ou não são) grandes poemas. Com o tempo, alguns textos acabam sendo reconhecidos QUASE universalmente como clássicos ou canônicos. São textos que entraram para a língua.

Sobre isso, quero comentar uma vez mais a sua observação sobre os ditados populares, o que pode ajudar a compreender o que quero dizer. Os gregos arcaicos, que ainda não empregavam a escrita, como Homero, usavam a mesma palavra – epos – para denominar poema épico, palavra, ditado, gnoma, canção curta etc. (Falo disso no ensaio Epos e mythos em Homero, publicado no meu livro Finalidades sem Fim). O que tinham essas coisas todas em comum? Elas eram memorizadas e, por isso, reiteráveis, ao contrário das falas cotidianas: elas faziam, por isso, parte da língua. Por que eram memorizadas? Com exceção, é claro, dos poemas e das canções, essas coisas eram memorizadas porque se considerava que tinham uma função utilitária na língua. Quem decidia? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Quem decide, ainda hoje se um sintagma qualquer entra para a língua? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Eu posso resolver inventar uma palavra nova e defini-la. Ela pode parecer muito com as outras palavras. Entretanto, não sou eu nem ninguém em particular quem decide se ela vai ser uma palavra ou não, mas o fato de que ela "pegue": de que seja, em geral, usada como uma palavra. O mesmo ocorre com um ditado.

Pois um poema entra para a língua quando se considera, QUASE universalmente, que ele vale por si.

Héber Sales: O teu livro Finalidades sem fim descortina um horizonte muito amplo para o poema. Ele nos convida a penetrar no território da poesia de maneira direta, sem que confundamos os meios (formas/modelos poéticas) com o fim (provocar o livre jogo entre as faculdades do conhecimento). Por outro lado, o conceito de poema defendido nele me parece às vezes tão largo ao ponto de confundir as fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre os gêneros. A prosa de Guimarães Rosa, por exemplo. Por que não considerá-la poema, uma vez que ela possui em alto grau aquela que para você é a virtude maior dos poemas (ser o mais escrito dos escritos)?

Antonio Cicero: Fico muito feliz de você ter gostado do Finalidades sem Fim. Concordo inteiramente com você sobre as fronteiras tradicionais entre os gêneros. Como as distinções baseadas na forma se revelaram puramente convencionais, elas se tornaram fluidas para nós. Assim, você tem toda razão em relação a Guimarães Rosa, por exemplo.

Héber Sales: Noto uma aproximação muito grande entre teu conceito de poema e a teoria de Jakobson. Refiro-me à tese de que o valor do poema não é dado pelo que ele possa dizer de alguma coisa, mas pela forma como ele o diz: nele não se pode separar significante de significado. Ora, parece-me que você está dizendo, em outras palavras, o mesmo que o russo afirmou, ou seja: que os textos poéticos distinguem-se pelo fato de terem como principal assunto a linguagem em si (o código): mesmo quando parecem dizer alguma coisa, estão, na verdade, tratando, como assunto principal, da linguagem em si e, eu acrescentaria, do poder encantatório dela. Ora, nada me parece mais verdadeiro em relação à obra de Guimarães Rosa do que isso.

Antonio Cicero: Quanto a Jakobson, você o torna mais próximo quando fala do "poder encantatório" da palavra. Mas é também possível lê-lo por um viés excessivamente formalista, que não tem tanto a ver com o que penso.

Héber Sales: Finalmente, o que a tua poesia tem a ver com o que o filósofo Antonio Cicero pensa? Em que medida ela é influenciada e moldada pelas teses que lemos nos ensaios de Finalidades sem Fim? Como se dá essa relação entre poesia e filosofia em teu trabalho? O que uma tem a dizer à outra em tua obra?

Antonio Cicero: Grande parte do que digo sobre a poesia é resultado de minhas experiências de leitura, em primeiro lugar, e de produção de poemas, em segundo lugar. Depois, em terceiro lugar, entra em jogo tudo o que li sobre a poesia, quer tenha sido por poetas, quer por teóricos, críticos, filósofos. Comparo essas teorias com minha própria experiência de ler poemas, de escrevê-los e de pensar sobre a poesia. A partir da minha formação filosófica, formulo então as minhas concepções sobre esse assunto. Naturalmente, essas concepções, retroativamente, se refletem de alguma maneira no meu modo de fazer poesia: mas penso que, em última análise, a minha experiência de leitura e de feitura de poemas é determinante em relação à teorização sobre a poesia.




Héber Sales é poeta, profissional de marketing, articulista e professor. Mantém o blog Coisas para fazer com palavras e tem textos publicados em revistas e sites como Digestivo Cultural, Portal Literal, Germina, Webinsider e Diversos Afins. E-mail: hebersales@gmail.com