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20.1.19

Jorge Luis Borges: "Blind Pew": trad. de Josely Vianna Baptista



Blind Pew

Longe do mar e da formosa guerra,
que assim o amor todo o perdido louva,
o bucaneiro cego fatigava
os terrosos caminhos da Inglaterra.

Escorraçado pelos cães das granjas,
caçoada dos meninos do povoado,
dormia um enfermiço e gretado
sono no enegrecido pó das sanjas.

Sabia que em remotas praias de ouro
era seu um recôndito tesouro
e isso serenava sua adversa sorte;

a ti também, em outras praias de ouro,
te aguarda incorruptível teu tesouro:
a vasta e vaga e necessária morte.




Blind Pew

Lejos del mar y de la hermosa guerra, 
que así el amor lo que ha perdido alaba, 
el bucanero ciego fatigaba 
los terrosos caminos de Inglaterra.

Ladrado por los perros de las granjas, 
pifia de los muchachos del poblado, 
dormía un achacoso y agrietado 
sueño en el negro polvo de las zanjas.

Sabía que en remotas playas de oro 
era suyo un recóndito tesoro 
y esto aliviaba su contraria suerte;

a ti también, en otras playas de oro, 
te aguarda incorruptible tu tesoro: 
la vasta y vaga y necesaria muerte.





BORGES, Jorge Luis. "Blind Pew". In:_____. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008



6.12.18

Jorge Luis Borges: "los Borges" / "os Borges": trad. de Josely Vianna Baptista



os Borges

Bem pouco sei de meus antecessores
portugueses, os Borges, vaga gente
que prossegue em minha carne, obscuramente,
seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se nunca houvessem sido
e alheios aos trâmites da arte,
indecifravelmente fazem parte
do tempo, dessa terra e do olvido.
Melhor assim. Vencida a peleia,
são Portugal, são a famosa gente
que forçou as muralhas do Oriente
e fez-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
perdeu-se e o que jura não estar morto.





los Borges

Nada o muy poco sé de mis mayores
portugueses, los Borges: vaga gente
que prosigue en mi carne, oscuramente,
sus hábitos, rigores y temores.
Tenues como si nunca hubieran sido
y ajenos a los trámites del arte,
indescifrablemente forman parte
del tiempo, de la tierra y del olvido.
Mejor así. Cumplida la faena,
son Portugal, son la famosa gente
que forzó las murallas del Oriente
y se dio al mar y al otro mar de arena.
Son el rey que en el místico desierto
se perdió y el que jura que no ha muerto.





BORGES, Jorge Luis. "los Borges" / "os Borges". In:_____. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

16.6.18

Jorge Luis Borges: "a un viejo poeta" / "a um velho poeta": trad. de Josely Vianna Baptista



A un viejo poeta

Caminas por el campo de Castilla
y casi no lo ves. Un intrincado
versículo de Juan es tu cuidado
y apenas reparaste en la amarilla

puesta del sol. La vaga luz delira
y en el confín del Este se dilata
esa luna de escarnio y de escarlata
que es acaso el espejo de la Ira.

Alzas los ojos y la miras. Una
memoria de algo que fue tuyo empieza
y se apaga. La pálida cabeza

bajas y sigues caminando triste,
sin recordar el verso que escribiste:
Y su epitafio la sangrienta luna.




a um velho poeta

Caminhas pelo campo de Castela
e quase não o vês. Um intrincado
versículo de João é teu cuidado
e mal percebes a luz amarela

do pôr do sol. A vaga luz delira
e nos confins do Leste se dilata
essa lua de escárnio e de escarlata
que talvez seja o espelho da Ira.

O olhar elevas e a contemplas. Uma
memória de algo que foi teu começa
e se dissipa. A pálida cabeça

curvas e segues caminhando triste,
sem recordar o verso que escreveste:
seu epitáfio a sangrenta lua.




BORGES, Jorge Luis. "a un viejo poeta" / "a um velho poeta". In:_____. O fazedor (1960). Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

13.3.18

Jorge Luis Borges: "Borges e eu": trad. de Josely Vianna Baptista



Borges e eu

Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. 

Não sei qual dos dois escreve esta página. 





BORGES, J.L. "Borges e eu". In:_____. O fazedor (1960). Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 

21.7.16

Jorge Luis Borges: "Las cosas" / "As coisas": trad. Josely Vianna Baptista



Ontem o poeta Erick Monteiro Moraes enviou-nos a tradução, por Josely Vianna Baptista, do seguinte -- belíssimo -- poema de Jorge Luis Borges. Resolvi postá-la aqui:



As coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, o baralho e o tabuleiro,
Um livro e entre suas folhas a esvaecida
violeta, monumento de uma tarde
Memorável, decerto, e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais e atlas, taças, cravos,
Servem-nos como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Nós já esquecidos, e durarão mais;
Sem nem saber que partimos, jamais.



Las cosas

El bastón, las monedas, el llavero,
La dócil cerradura, las tardías
Notas que no leerán los pocos días
Que me quedan, los naipes y el tablero,
Un libro y en sus páginas la ajada
Violeta, monumento de una tarde
Sin duda inolvidable y ya olvidada,
E1 rojo espejo occidental en que arde
Una ilusoria aurora. ¡Cuántas cosas,
Limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
Nos sirven como tácitos esclavos,
Ciegas y extrañamente sigilosas!
Durarán más allá de nuestro olvido;
No sabrán nunca que nos hemos ido.




BORGES, Jorge Luis. "Las cosas". In:_____. Poesia. Edição bilingue. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.





27.12.14

Jorge Luís Borges: "Son los ríos" / "São os rios: trad. Josely Vianna Baptista

Agradeço ao Erick Monteiro Moraes por me ter lembrado do seguinte poema de Borges, que amo, e que pertence ao mesmo livro -- Los conjurados -- que o poema "Nubes I", que já postei aqui.



Son los ríos

Somos el tiempo. Somos la famosa
parábola de Heráclito el Oscuro.
Somos el agua, no el diamante duro,
la que se pierde, no la que reposa.
Somos el río y somos aquel griego
que se mira en el río. Su reflejo
cambia en el agua del cambiante espejo,
en el cristal que cambia como el fuego.
Somos el vano río prefijado,
rumbo a su mar. La sombra lo ha cercado.
Todo nos dijo adiós, todo se aleja.
La memoria no acuña su moneda.
Y sin embargo hay algo que se queda
y sin embargo hay algo que se queja.


BORGES, Jorge Luís. “Son los rios”. In:_____. “Los conjurados”. In:_____. Obras completas, vol.2. Buenos Aires: Emecé, 1989.



São os rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito, o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a remansosa.
Somos o rio e também aquele grego
que se olha no rio. Seu reflexo
varia na água do espelho perplexo,
no cristal, feito o fogo, sem sossego.
Somos o inútil rio prefixado,
rumo a seu mar. A sombra o tem cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
Na moeda a memória não perdura.
E no entanto algo ainda dura,
e no entanto algo ainda se queixa.


BORGES, Jorge Luís. Poesía. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

16.3.11

Jorge Luis Borges: "Arte poética": tradução de Josely Vianna Baptista




Ítalo Durdson me chamou atenção para o fato de que a Josely Vianna Baptista, excelente poeta e tradutora de poesia, traduziu um dos meus poemas favoritos: o "Arte poética" do Jorge Luis Borges. Eis o poema e a tradução:



Arte poética

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.



Arte poética

Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,

na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.



BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

25.12.10

Jorge Luis Borges: "Poema de los dones" / "Poema dos dons": trad. de Josely Vianna Baptista




Poema dos dons


Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria.
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.

Da cidade de livros tornou donos
estes olhos sem luz, que só concedem
em ler entre as bibliotecas dos sonhos
insensatos parágrafos que cedem

as alvas a seu afã. Em vão o dia
prodiga-lhes seus livros infinitos,
árduos como os árduos manuscritos
que pereceram em Alexandria.

De fome e de sede (narra uma história grega)
morre um rei entre fontes e jardins;
eu fatigo sem rumo os confins
dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
e o Ocidente, centúrias, dinastias,
símbolos, cosmos e cosmogonias
brindam as paredes, mas inutilmente.

Em minha sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.

Algo, que por certo não se vislumbra
no termo acaso, rege estas coisas;
outro já recebeu em outras nebulosas
tardes os muitos livros e a penumbra.

Ao errar pelas lentas galerias
sinto às vezes com vago horror sagrado
que sou o outro, o morto, habituado
aos mesmos passos e aos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
de uma só sombra e de um plural?
O nome que assina é essencial,
se é indiviso e uno este anátema?

Groussac ou Borges, olho este querido
mundo que se deforma e que se apaga
numa empalidecida cinza vaga
que se parece ao sonho e ao olvido



Poema de los dones


Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
a unos ojos sin luz, que sólo pueden
leer en las bibliotecas de los sueños
los insensatos párrafos que ceden

las albas a su afán. En vano el día
les prodiga sus libros infinitos,
arduos como los arduos manuscritos
que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
muere un rey entre fuentes y jardines;
yo fatigo sin rumbo los confines
de esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
y el Occidente, siglos, dinastías,
símbolos, cosmos y cosmogonías
brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
con la palabra azar, rige estas cosas;
otro ya recibió en otras borrosas
tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
suelo sentir con vago horror sagrado
que soy el otro, el muerto, que habrá dado
los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema
de un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido
mundo que se deforma y que se apaga
en una pálida ceniza vaga
que se parece al sueño y al olvido.





BORGES, Jorge Luis. Poesía. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.