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19.3.12
Fernando Brant: "Os direitos autorais são uma conquista da civilização"
Agradeço ao escritor Pedro Maciel por me ter enviado o seguinte artigo de Fernando Brant, publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em março de 2012:
Os direitos autorais são uma conquista da civilização
Os poetas escrevem versos e os enviam aos leitores como carta de náufrago. Não têm esperança de serem muito lidos, mas almejam pelo menos a atenção dos colegas de profissão. Se o acaso, após várias edições minúsculas bancadas por suas pequenas economias, os levam a alguma espécie de reconhecimento público, é como se o mundo se debruçasse diante de seu talento. Poetas escrevem para poetas, o que nos leva a concluir que os que o lêem também o são ou, no mínimo, comungam da mesma sensibilidade. O leitor de poesia fornece o combustível para que eles prossigam.
A poesia, por mais que digam o contrário os práticos do mercado, tem um poder avassalador. Inocula a alma das pessoas e se transmite por gerações. Criada sem nenhuma ambição econômica, ela acaba por criar uma força tão forte como o dinheiro. Ela ri dos poderosos e expõe o ridículo dos ditadores, pois todos eles têm tempo de validade. A poesia não.
Nos tempos de Homero, Virgílio ou Camões, séculos e até milênios antes do capitalismo, a recompensa pelas obras criadas por eles era, no máximo, a glória contemporânea ou futura. O mesmo se pode dizer das artes da pintura e da escultura. Até que os mecenas financiassem o trabalho desses gênios.
Aí vieram o iluminismo, a idade das luzes, a revolução francesa e os direitos humanos.
A valorização do cidadão, senhor do Estado, a quem somente delegava poderes, a conquista da democracia, do governo para todos, da igualdade, da fraternidade e da liberdade. Nos versos de Cecília Meireles, “liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”
Depois de 14 de julho de 1789, os cidadãos escritores, poetas e artistas se levantaram na defesa de seus direitos de autores. No restaurante “Les Ambassateurs”, textos escritos por eles eram encenados e eles não recebiam nada. Tudo ali era pago: os vinhos e champagnes, as requintadas refeições.
Numa certa noite, toda a Paris cultural se dirigiu àquela casa de pasto e espetáculo.Todos comeram e beberam do melhor. Na hora da conta, disseram que não pagariam nada, da mesma forma que suas obras não eram remuneradas. Chamou-se a polícia, instaurou-se a polêmica e daí resultou a criação da primeira sociedade de autores teatrais. Depois dela, centenas foram fundadas em todos os países, no ocidente e no oriente, em defesa dos criadores e de suas obras.
Disse acima que o leitor de poesia também é poeta, pois participa com sua sensibilidade da criação que o autor lhe oferece. O mesmo vale para quem escuta e canta canções, assiste a filmes, contempla as belezas plásticas e lê romances.
Mas essa parceria inexiste quando, em nome da existência de novos meios de comunicação, pessoas e empresas renegam o que é conquista da civilização e burlam o direito dos autores que dizem amar. Não amam.
29.11.09
Sobre a lei contra a homofobia
O seguinte artigo foi publicado sábado, 28 de novembro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:
Sobre a lei contra a homofobia
ENCONTRA-SE em tramitação no Senado Federal o projeto de lei (PLC 122/ 2006) que pune a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão. A aprovação dessa lei representará sem dúvida um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado.
Por que digo "civilizado"? Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás. Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade -ou até da humanidade- qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.
Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.
Pois bem, o fato de que uma pessoa manifeste determinada orientação sexual não impede que outras pessoas manifestem outras orientações sexuais ou que exerçam qualquer outro direito legítimo. Consequentemente, trata-se de um direito inquestionável. Ora, a lei em questão tem o sentido de garantir a cada qual o exercício pleno desse direito. Ela visa garantir que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa não a sujeite -como tão frequentemente ocorre hoje- a sofrer discriminação, agressão verbal, humilhação, violência física ou mesmo assassinato, enquanto seus agressores gozem de impunidade. Nisso reside seu sentido civilizatório.
É claro que a barbárie, na forma, por exemplo, do fanatismo de zelotes ou fundamentalistas religiosos, não deixa de apelar a todo tipo de sofisma para tentar desclassificar esse projeto de lei.
Semelhante sofisma é, por exemplo, a tese de que o sexo não reprodutivo contraria uma pretensa lei natural. Já falei sobre tal "lei" noutro artigo, mas não posso deixar de me repetir neste ponto. É um erro confundir as leis da natureza, que são descritivas, isto é, dizem o que realmente acontece, com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
De todo modo, tanto a física contemporânea quanto a lei da evolução das espécies já mostraram que a natureza está em constante mutação. O ser humano mesmo talvez seja a mais radical dessas mutações, de modo que não apenas a espécie humana mas cada indivíduo humano é quase infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Substituindo o instinto pela experimentação, o ser humano já há muito foi capaz de separar radicalmente sexo de reprodução. Diante de tudo isso, a invocação de uma "lei natural" para tentar tolher o seu comportamento é simplesmente ridícula.
Finalmente, é falso que a lei em questão restringiria a liberdade de expressão simplesmente porque proibiria praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero. Afinal, a lei 7.716, no seu artigo 20º, já faz exatamente isso em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, e não é considerada prejudicial à liberdade de expressão.
Esperemos que o Senado Federal, rejeitando o fanatismo e a barbárie, escolha para o Brasil o caminho da razão e da civilização.
Sobre a lei contra a homofobia
ENCONTRA-SE em tramitação no Senado Federal o projeto de lei (PLC 122/ 2006) que pune a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão. A aprovação dessa lei representará sem dúvida um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado.
Por que digo "civilizado"? Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás. Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade -ou até da humanidade- qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.
Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.
Pois bem, o fato de que uma pessoa manifeste determinada orientação sexual não impede que outras pessoas manifestem outras orientações sexuais ou que exerçam qualquer outro direito legítimo. Consequentemente, trata-se de um direito inquestionável. Ora, a lei em questão tem o sentido de garantir a cada qual o exercício pleno desse direito. Ela visa garantir que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa não a sujeite -como tão frequentemente ocorre hoje- a sofrer discriminação, agressão verbal, humilhação, violência física ou mesmo assassinato, enquanto seus agressores gozem de impunidade. Nisso reside seu sentido civilizatório.
É claro que a barbárie, na forma, por exemplo, do fanatismo de zelotes ou fundamentalistas religiosos, não deixa de apelar a todo tipo de sofisma para tentar desclassificar esse projeto de lei.
Semelhante sofisma é, por exemplo, a tese de que o sexo não reprodutivo contraria uma pretensa lei natural. Já falei sobre tal "lei" noutro artigo, mas não posso deixar de me repetir neste ponto. É um erro confundir as leis da natureza, que são descritivas, isto é, dizem o que realmente acontece, com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
De todo modo, tanto a física contemporânea quanto a lei da evolução das espécies já mostraram que a natureza está em constante mutação. O ser humano mesmo talvez seja a mais radical dessas mutações, de modo que não apenas a espécie humana mas cada indivíduo humano é quase infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Substituindo o instinto pela experimentação, o ser humano já há muito foi capaz de separar radicalmente sexo de reprodução. Diante de tudo isso, a invocação de uma "lei natural" para tentar tolher o seu comportamento é simplesmente ridícula.
Finalmente, é falso que a lei em questão restringiria a liberdade de expressão simplesmente porque proibiria praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero. Afinal, a lei 7.716, no seu artigo 20º, já faz exatamente isso em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, e não é considerada prejudicial à liberdade de expressão.
Esperemos que o Senado Federal, rejeitando o fanatismo e a barbárie, escolha para o Brasil o caminho da razão e da civilização.
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15.6.08
Sobre "Identidade e violência"
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008:
Sobre "Identidade e violência"
NO LIVRO "Identidade e violência" (SEN, Amartya. Identity and Violence. London: W.W. Norton & Company, 2006) , o economista indiano Amartya Sen, detentor do Prêmio Nobel, chama atenção para os perigos da chamada "política da identidade".
Esta consiste em reduzir, para fins políticos, os seres humanos a membros de exatamente um grupo: seja de um sexo, de uma etnia, de uma nacionalidade, de uma classe social, de uma cultura, de uma religião etc.
Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que "os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho", o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas.
Os "artífices do ódio" que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa.
Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas. "Posso ser ao mesmo tempo", diz, no que é sem dúvida uma auto-descrição, "asiático, cidadão indiano, bengali com ancestrais de Bangladesh, residente americano ou britânico, economista, filósofo amador, escritor, sanscritista, alguém que crê fortemente no secularismo e na democracia, homem, feminista, heterossexual, defensor dos direitos gays e lésbicos, praticante de um estilo de vida não-religioso, de background hindu, não-brâmane, descrente em vida depois da vida (e, caso interrogado, descrente em vida antes da vida também)". E complementa: "Isso é apenas uma pequena amostra das diversas categorias às quais posso simultaneamente pertencer".
De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações.
Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos exclusivamente como membros de uma comunidade. Ora, isso significa ignorar que, em grande medida, somos capazes de escolher nossas crenças, associações e atitudes, e que devemos aceitar responsabilidade pelo que, ainda que implicitamente, escolhemos.
Já Huntington, partindo do princípio de que "de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião", acaba caindo numa unidimensionalidade identitária que, como todas, só se pode afirmar às custas da violentação dos fatos.
Assim, por exemplo, Sen observa que Huntington, ao descrever a Índia como uma "civilização hindu", ignora a importância do fato de que, excetuando-se a Indonésia e, marginalmente, o Paquistão, a Índia tem mais muçulmanos do que qualquer outro país do mundo.
Assim também, tentando confinar o pensamento dos membros de cada civilização nos marcos de uma identidade específica, finita, reificada, Huntington chega ao ponto de pretender que "as idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio". Por trás de tais pretensões se encontra, sem dúvida, o pressuposto implícito de que a razão crítica pertence à "civilização ocidental".
Contra tal pressuposto, Sen cita o fato de que, já em 1590, o imperador indiano Akbar, muçulmano, afirmava que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, argumentando que é por meio da razão que cada um deve justificar -e, se necessário, rejeitar- a fé que herdou.
Ademais, tendo sido atacado pelos tradicionalistas, favoráveis à fé instintiva, Akbar afirmou que a necessidade de cultivar a razão e rejeitar o tradicionalismo é tão patente que não necessita de argumentação, pois "se o tradicionalismo fosse certo, os profetas teriam apenas seguido os mais velhos (e não teriam apresentado novas mensagens)".
É a identidade racional de Akbar que aqui prevalece sobre a sua identidade muçulmana e tradicional: o que prova que Sen tem razão ao afirmar que somos consideravelmente livres para decidir o grau de prioridade que a cada momento atribuímos a cada uma das identidades que simultaneamente possuímos.
Parece-me auspicioso que justamente um oriental tenha escrito uma obra capaz de funcionar como um poderoso antídoto contra as tendências irracionalistas do pensamento ocidental contemporâneo.
Sobre "Identidade e violência"
NO LIVRO "Identidade e violência" (SEN, Amartya. Identity and Violence. London: W.W. Norton & Company, 2006) , o economista indiano Amartya Sen, detentor do Prêmio Nobel, chama atenção para os perigos da chamada "política da identidade".
Esta consiste em reduzir, para fins políticos, os seres humanos a membros de exatamente um grupo: seja de um sexo, de uma etnia, de uma nacionalidade, de uma classe social, de uma cultura, de uma religião etc.
Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que "os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho", o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas.
Os "artífices do ódio" que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa.
Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas. "Posso ser ao mesmo tempo", diz, no que é sem dúvida uma auto-descrição, "asiático, cidadão indiano, bengali com ancestrais de Bangladesh, residente americano ou britânico, economista, filósofo amador, escritor, sanscritista, alguém que crê fortemente no secularismo e na democracia, homem, feminista, heterossexual, defensor dos direitos gays e lésbicos, praticante de um estilo de vida não-religioso, de background hindu, não-brâmane, descrente em vida depois da vida (e, caso interrogado, descrente em vida antes da vida também)". E complementa: "Isso é apenas uma pequena amostra das diversas categorias às quais posso simultaneamente pertencer".
De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações.
Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos exclusivamente como membros de uma comunidade. Ora, isso significa ignorar que, em grande medida, somos capazes de escolher nossas crenças, associações e atitudes, e que devemos aceitar responsabilidade pelo que, ainda que implicitamente, escolhemos.
Já Huntington, partindo do princípio de que "de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião", acaba caindo numa unidimensionalidade identitária que, como todas, só se pode afirmar às custas da violentação dos fatos.
Assim, por exemplo, Sen observa que Huntington, ao descrever a Índia como uma "civilização hindu", ignora a importância do fato de que, excetuando-se a Indonésia e, marginalmente, o Paquistão, a Índia tem mais muçulmanos do que qualquer outro país do mundo.
Assim também, tentando confinar o pensamento dos membros de cada civilização nos marcos de uma identidade específica, finita, reificada, Huntington chega ao ponto de pretender que "as idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio". Por trás de tais pretensões se encontra, sem dúvida, o pressuposto implícito de que a razão crítica pertence à "civilização ocidental".
Contra tal pressuposto, Sen cita o fato de que, já em 1590, o imperador indiano Akbar, muçulmano, afirmava que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, argumentando que é por meio da razão que cada um deve justificar -e, se necessário, rejeitar- a fé que herdou.
Ademais, tendo sido atacado pelos tradicionalistas, favoráveis à fé instintiva, Akbar afirmou que a necessidade de cultivar a razão e rejeitar o tradicionalismo é tão patente que não necessita de argumentação, pois "se o tradicionalismo fosse certo, os profetas teriam apenas seguido os mais velhos (e não teriam apresentado novas mensagens)".
É a identidade racional de Akbar que aqui prevalece sobre a sua identidade muçulmana e tradicional: o que prova que Sen tem razão ao afirmar que somos consideravelmente livres para decidir o grau de prioridade que a cada momento atribuímos a cada uma das identidades que simultaneamente possuímos.
Parece-me auspicioso que justamente um oriental tenha escrito uma obra capaz de funcionar como um poderoso antídoto contra as tendências irracionalistas do pensamento ocidental contemporâneo.
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28.7.07
Barbárie e civilização
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da “Ilustrada” da Folha de São Paulo sábado, 28 de julho de 2007:
ANTONIO CICERO
Barbárie e civilização
________________________________________
O civilizado é aquele que reconhece que as convicções de qualquer cultura são falíveis
________________________________________
"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.
Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".
É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".
Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".
Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?
Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.
Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.
Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.
Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade.
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.
Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas freqüentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.
A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a conseqüente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.
Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista -e não a partir de crença alguma- que se constitui a civilização.
ANTONIO CICERO
Barbárie e civilização
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O civilizado é aquele que reconhece que as convicções de qualquer cultura são falíveis
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"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.
Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".
É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".
Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".
Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?
Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.
Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.
Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.
Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade.
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.
Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas freqüentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.
A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a conseqüente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.
Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista -e não a partir de crença alguma- que se constitui a civilização.
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12.4.07
Comentários de Ana e de Paulo de Toledo e resposta
Ana e Paulo de Toledo deixaram comentários hoje. Creio que o de Paulo resume a questão. Apresento-o, seguido da minha resposta:
Paulo de Toledo disse:
caro antonio, concordo contigo plenamente. mas resta uma pergunta: o crítico, ao destacar-se da sua "realidade", não usaria, para isso, além da razão, também seus sentimentos e pré-conceitos e, portanto, a crítica não envolveria sempre um aspecto subjetivo, mesmo que recôndito, inconsciente? então, a razão não seria uma espécie de "ilusão necessária", uma forma de o homem tentar "disfarçar" os seus instintos mais básicos? montaigne, no exemplo dado, não estaria usando a razão como uma forma de escapar de uma espécie de culpa cristã?
Resposta minha:
Eu não diria que o crítico se destaca da sua realidade, mas dos seus “costumes”, como dizia Descartes. Hoje, no lugar de “costumes”, dizemos “cultura”. Ele se destaca porque passa a vê-la como apenas uma cultura entre outras.
Nesse ponto, sejam quais forem as motivações dele, ele está certo: que sua cultura, isto é, os costumes, a religião, as roupas, a língua, a arquitetura, as formas das artes, os mitos, os preconceitos da região do mundo em que foi criado não lhe são naturais, essenciais, ou necessários e que poderiam ter sido outros, tivesse ele nascido na China e não na França, não é uma simples opinião dele, mas uma verdade que ele descobre, não sobre si próprio apenas, mas sobre a relação entre as culturas e os seres humanos. Essa verdade – que nos parece hoje um lugar-comum – é o que constitui a modernidade. É porque somos modernos que essa verdade nos parece evidente. Ela não é a descoberta de nenhuma cultura particular – as culturas particulares se pretendem naturais –, mas da crítica.
A partir dessa descoberta é que se torna possível pensar em estratégias extra-culturais para a obtenção de conhecimentos ultra- ou trans-culturais da realidade, isto é, para escapar da prisão de qualquer cultura particular, conhecimentos que não pertençam a cultura alguma em particular, mas à civilização. E essas estratégias são os métodos e procedimentos científicos.
Paulo de Toledo disse:
caro antonio, concordo contigo plenamente. mas resta uma pergunta: o crítico, ao destacar-se da sua "realidade", não usaria, para isso, além da razão, também seus sentimentos e pré-conceitos e, portanto, a crítica não envolveria sempre um aspecto subjetivo, mesmo que recôndito, inconsciente? então, a razão não seria uma espécie de "ilusão necessária", uma forma de o homem tentar "disfarçar" os seus instintos mais básicos? montaigne, no exemplo dado, não estaria usando a razão como uma forma de escapar de uma espécie de culpa cristã?
Resposta minha:
Eu não diria que o crítico se destaca da sua realidade, mas dos seus “costumes”, como dizia Descartes. Hoje, no lugar de “costumes”, dizemos “cultura”. Ele se destaca porque passa a vê-la como apenas uma cultura entre outras.
Nesse ponto, sejam quais forem as motivações dele, ele está certo: que sua cultura, isto é, os costumes, a religião, as roupas, a língua, a arquitetura, as formas das artes, os mitos, os preconceitos da região do mundo em que foi criado não lhe são naturais, essenciais, ou necessários e que poderiam ter sido outros, tivesse ele nascido na China e não na França, não é uma simples opinião dele, mas uma verdade que ele descobre, não sobre si próprio apenas, mas sobre a relação entre as culturas e os seres humanos. Essa verdade – que nos parece hoje um lugar-comum – é o que constitui a modernidade. É porque somos modernos que essa verdade nos parece evidente. Ela não é a descoberta de nenhuma cultura particular – as culturas particulares se pretendem naturais –, mas da crítica.
A partir dessa descoberta é que se torna possível pensar em estratégias extra-culturais para a obtenção de conhecimentos ultra- ou trans-culturais da realidade, isto é, para escapar da prisão de qualquer cultura particular, conhecimentos que não pertençam a cultura alguma em particular, mas à civilização. E essas estratégias são os métodos e procedimentos científicos.
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25.3.07
Slavoj Zizek: "O cavaleiro dos mortos vivos"
Traduzi e publico a seguir um importante artigo de Slavoj Zizek, aparecido ontem (24/03) no New York Times:
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
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