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4.2.19
Hélio Schwartsman: "Trevas cristãs"
Ontem foi publicado na Folha de São Paulo um artigo em que, oportunamente, Hélio Schwartsman nos lembra do perigo que pode representar um lema como "Deus acima de todos", do Presidente Jair Bolsonaro, do seu Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, e de outros membros do atual governo brasileiro:
Trevas cristãs
O “Deus acima de todos” que integrou o lema da campanha de Jair Bolsonaro e ainda o acompanha em muitas de suas declarações deveria provocar calafrios em todas as pessoas historicamente alfabetizadas, sejam elas religiosas ou não. Como a maioria dos brasileiros votou em Jair Bolsonaro conhecendo seu lema, parece lícito concluir que ou a maioria das pessoas é masoquista ou não é historicamente alfabetizada.
Nesta última hipótese, nossos professores de história, todos eles esquerdistas, fracassaram miseravelmente em mostrar para seus alunos os crimes cometidos em nome de Deus. Um bom jeito de sanar essa falha é a leitura de “The Darkening Age” (a idade das trevas), de Catherine Nixey (há uma edição lusitana).
A tese central do livro é simples. O cristianismo triunfou na Europa e cercanias destruindo o mundo clássico que o precedeu. O “destruir” deve ser interpretado literalmente, para incluir a pilhagem de templos, vandalização de estátuas, queima de livros e, é claro, tortura e assassinato de adversários. Nixey conta os detalhes dessa história.
Para dar uma ideia da escala da destruição, estima-se que apenas 10% da literatura clássica tenha sobrevivido até a Idade Moderna. Se considerarmos só os latinos, o quadro é ainda pior. Só 1% do que foi escrito por romanos não cristãos foi preservado. Santos das Igrejas Católica e Ortodoxa, como João Crisóstomo, gabavam-se de ter feito desaparecer toda uma cultura.
O que mais perturba na leitura de “The Darkening Age” é a total semelhança entre o que fizeram os cristãos dos anos 300, 400 e 500 o que fazem hoje membros do Taleban e do Estado Islâmico. A intolerância que militantes religiosos radicais mostram para com outros credos, os assassinatos praticados com requintes de crueldade e a insana “certeza” de estar obedecendo a comandos de um ente supremo infalível revelam quão perigoso é pôr Deus acima de tudo.
Hélio Schwartsman
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16.11.17
A.C. Grayling: trecho de "As religiões não merecem tratamento especial"
Dado que hoje – 16 de novembro –
é reconhecido pela UNESCO como o Dia Mundial da Filosofia, resolvi postar a
tradução de um pequeno trecho de um artigo do filósofo inglês A.C. Grayling. O
texto, que me parece muito oportuno no momento atual, intitula-se “As religiões não merecem tratamento especial”.
Já no século XVII,
o filósofo Descartes dizia, no seu Discurso do
método, que, “a pluralidade de vozes não
é uma prova que valha nada para as verdades um pouco
difíceis de descobrir , porque
é bem mais provável que um homem só as tenha encontrado do que
todo um
povo”. Ou seja, ele sabia que nenhuma crença – nenhuma crença religiosa, por
exemplo – merece intrinsecamente mais respeito do que qualquer convicção individual.
Mas passemos às palavras de
A.C. Grayling:
Está na hora de inverter o senso comum de que o comprometimento
religioso intrinsecamente mereça respeito e deva ser tratado com luvas de
pelica e protegido pelo costume e, em alguns casos, por leis que proíbem que ele seja criticado ou ridicularizado.
Está na hora de nos recusarmos a andar na ponta dos pés em torno de
pessoas que exigem respeito, consideração, tratamento especial ou qualquer
outro tipo de imunidade simplesmente porque têm uma fé religiosa, como se ter
fé fosse uma virtude merecedora de privilégios, e como se fosse nobre acreditar
em afirmações sem base e em superstições antigas. Nada disso: a fé é o
comprometimento com uma crença contrária à evidência e à razão.
Ora, acreditar em algo contra a
evidência e contra a razão – acreditar em algo por fé – é ignóbil,
irresponsável e ignorante, e merece o oposto do respeito. Está na hora de dizer
a verdade.
Está na hora de exigir dos crentes
que mantenham na esfera privada suas escolhas e preferências pessoais
nesses assuntos irracionais e frequentemente perigosos. Qualquer um tem a
liberdade de acreditar no que quiser, desde que não incomode (ou intimide ou
mate) os outros; mas ninguém tem o direito de exigir privilégios meramente na
base de ser devoto desta ou daquela das muitas religiões do mundo.
E, como essa última observação
implica, está na hora de exigirmos – nós, que não somos religiosos – o direito
de não sofrer interferência por parte de pessoas e organizações religiosas. Ninguém tem
o direito de impor suas próprias práticas e escolhas morais às pessoas que não
compartilham do seu ponto de vista.
GRAYLING, A.C. Trecho
de “Religions don’t desserve special treatment”. In: The Guardian, 19 de outubro de 2006.
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30.9.16
Leiam "O povo de Deus e o fim da política", por Jozafá Batista
Recomendo enfaticamente a leitura do artigo do sociólogo Jozafá Batista intitulado "O povo de Deus e o fim da política". E o recomendo, não por ter sido nele citado -- embora isso, para mim, seja uma honra -- mas porque realmente se trata de um artigo importante, principalmente nos tempos atuais. Ele se encontra aqui: http://www.juruaemtempo.com.br/o-povo-de-deus-e-o-fim-da-politica/
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31.10.15
Fernanda Torres: "Da Natureza"
O seguinte artigo de Fernanda Torres foi publicado ontem em sua coluna da Folha de São Paulo:
Da Natureza
Sou católica, mas rejeito o mea-culpa cristão, estranho o sotaque andrógeno dos padres, não creio em redenção pós-mortem e sou propensa às tentações da carne.
Na missa de sete anos da morte do meu pai, no belo Mosteiro de São Bento, tentei, mais uma vez, me ater ao rito, mas foi em vão.
Na saída, padre Matias, um clérigo de vocação, permitiu que visitássemos o claustro.
Na calma atemporal do pátio interno, admirei a dedicação do sacerdote à biblioteca do mosteiro. Ali, sim, comunguei de sua devoção à Igreja.
A arte e o intelecto são a luxúria de Matias, prazeres que não enxergo como pecado.
Meu filho, ainda mais avesso à cruz do que eu, acha impossível conciliar a compaixão de Cristo com a morbidez dos dogmas e a riqueza acumulada do clero.
Não o condeno.
O caráter maniqueísta, culposo, masoquista de uma crença nascida do fundo arcaico do Mediterrâneo, destoa do histórico de opulência do Vaticano e do paganismo greco-romano que, ainda hoje, nos rege.
Ganhei de aniversário do poeta Antonio Cicero um livraço que esclarece o paradoxo.
"A Virada" (Companhia das Letras), do teórico e professor de Harvard Stephen Greenblatt, narra a descoberta, em 1417, do poema "De Rerum Natura", "Da Natureza", de Tito Lucrécio Caro, por um dos primeiros humanistas, calígrafo e caçador de livros, Poggio Bracciolini.
Escrito no séc. 1 a.C., o poema permaneceu esquecido em um dos tantos monastérios que, depois do apagão do Império Romano, guardaram o que restou do saber da antiguidade.
"Da Natureza" resistiu aos incêndios das bibliotecas, à fúria bárbara e à censura cristã. Seu conteúdo é fiel ao atomismo de Demócrito, ao prazer de Epicuro e à ideia de que o destino dos homens não é regido pela vontade dos deuses.
A ligação entre o poema de Lucrécio e Epicuro veio à luz muito tempo depois do feito de Poggio. Em 1753, rolos de papiro com trechos de "Da Natureza" foram encontrados nas escavações do balneário de Herculano, vizinho à Pompeia, também soterrado pelo Vesúvio em 79 d.C.
A biblioteca da casa abastada de Herculano pertenceu a uma elite epicurista que cultivava uma existência livre do medo da danação divina.
"A Virada" explica o porquê de Platão e Aristóteles terem sido absorvidos pelo cristianismo, enquanto Epicuro foi jogado no lixo da história.
Seu universo sem ideal ou alma transcendente, regido por partículas, com deuses indiferentes à necessidade humana e espécies evoluindo ao acaso não caberia na fé cristã. Difamado, a felicidade terrena que pregava foi transformada em escárnio e excesso.
Os 7.400 versos de Lucrécio serviram de estopim para a Renascença e a modernidade. Bruno, Galilei, Shakespeare, Maquiavel e Botticelli os leram, e também o avô de Darwin, Montaigne, More, Moliére e Thomas Jefferson.
Quem diria que, 600 anos depois de "Da Natureza" renascer das cinzas, a Guerra Santa voltasse à baila e o humanismo caísse em desuso?
Preservamos muitos dos pavores medievais, mas evoluímos ateus. Somos materialistas que rezam o Pai Nosso.
Vem daí a minha dificuldade de comungar na missa, vem de Poggio o prazer intelectual do padre Matias e de Epicuro a profunda empatia que sinto ao caminhar por Pompeia e pensar que, sim, eu poderia ser um deles.
Fernanda Torres
13.1.15
A imprensa face ao terrorismo 2
A propósito da postagem “A imprensa
face ao terrorismo”, recebi um comentário – anônimo, é claro – equivocadíssimo. Como tenho observado muita gente jovem cometer os
mesmos equívocos do autor desse comentário, resolvi, em vez de postá-lo como comentário, reproduzi-lo aqui, numa nova postagem, e criticá-lo, segmento por segmento, equívoco por
equívoco:
"Liberdade de Expressão... Muito complicado. Onde é que existe isso? Qualquer pessoa que passou perto de uma redação de jornal sabe que isso é um mito. Ou como diz, você, "ideologia". O pessoal do Charlie Hebdo batia em gente sem poder. Quem dá bola para religião no Ocidente? Vivemos como queria Goethe: "Quem tem arte e ciência não precisa de religião. Quem não tem arte e ciência, que tenham religião". Ou seja, religião hoje é coisa de gente sem poder e cultura. Dai ser tão fácil se declara ateu (eu sou!). Quantas capas a C.H. dedicou ao turma de Wall Street, que destroem economias e infelicitam milhões de pessoas (vide Espanha, Portugal e Grécia). Dona Angela Merke, a Margaret Thatcher repaginada, foi agraciada com quantas capas dos iconoclastas de araque da C.H.? Ou seja, eles faziam o jogo de sempre da imprensa: livrar a cara dos poderosos e atacar os sem poder. Deviam ser assassinados? Claro que não! Avaliaram mal a situação ao se meter com gente rustica e deu no que deu. Se tivessem se metido com os verdadeiros poderosos teriam apenas perdido o crédito, os anúncios, seriam importunados pelos Impostos, bombeiros, perderiam a revista, mas estariam vivos. Iriam trabalhar no Le Figaro..."
Vejamos:
“Liberdade de
Expressão... Muito complicado. Onde é que existe isso? Qualquer pessoa que
passou perto de uma redação de jornal sabe que isso é um mito. Ou como diz,
você, "ideologia"."
Isso é uma tolice. Há uma diferença enorme entre um país em
que há liberdade de expressão e um país em que a imprensa é controlada e
censurada. No Brasil, qualquer um que tenha vivido durante a ditadura sabe
disso. Só quem (consciente ou inconscientemente) quer, como você, uma ditadura
é que tenta dizer que não há diferença entre a democracia e a ditadura, entre
imprensa controlada e censurada e imprensa livre.
“O pessoal do Charlie
Hebdo batia em gente sem poder. Quem dá bola para religião no Ocidente? Vivemos
como queria Goethe: "Quem tem arte e ciência não precisa de religião. Quem
não tem arte e ciência, que tenham religião". Ou seja, religião hoje é
coisa de gente sem poder e cultura. Dai ser tão fácil se declara ateu (eu
sou!). Quantas capas a C.H. dedicou ao turma de Wall Street, que destroem
economias e infelicitam milhões de pessoas (vide Espanha, Portugal e Grécia). “
Sabe quem defende ardorosamente a religião no Ocidente? Vou
dar um exemplo: a extrema direita do Partido Republicano, nos Estados Unidos. É exatamente quem defende a total liberdade para a turma de Wall
Street que também defende a religião... O que mostra que você não sabe o que está
dizendo. A religião está sempre ao lado dos mais reacionários; e estes, ao lado
dela. Quem foi o maior aliado – ainda que, talvez, involuntariamente – do fascista
George Bush, dando-lhe pretexto para desavergonhadamente desrespeitar os
direitos humanos, senão exatamente o religioso Bin Laden e a religiosa Al
Qaeda? Quem foram os maiores aliados da fascista Marine Le Pen, senão esses
imbecis religiosos que assassinaram a turma do Charlie Hebdo?
“A religião é coisa de gente sem poder e cultura”, diz você. Ou seja, "pobrezinhos dos religiosos!", não é? Mas vejamos o que eles têm, quando estão no poder ou quando
têm armas:
Na Arábia Saudita, o blogueiro Raif Badaw acaba de ser condenado a mil chibatadas
e dez anos de prisão por ter criticado o clero saudita no site Sauditas Livres
e Liberais.
Há alguns dias o grupo islâmico nigeriano Boko Haram matou
2.000 civis, pondo fogo em suas casas.
Há pouco tempo, os fundamentalistas islâmicos do Taliban, do
Paquistão, mataram mais de cem crianças numa escola.
Milhões de mulheres são destituídas de existência pública
nos países em vige a Lei Islâmica. As meninas são proibidas de estudar. As
adúlteras são apedrejadas. Os gays são enforcados.
Quando os cristãos tinham poder, torturaram e mataram de
modo atroz milhões de pessoas, como ficou provado pelo historiador Karlheinz
Dreschner, na sua monumental “História criminal do Cristianismo”.
“Dona Angela Merkel, a
Margaret Thatcher repaginada, foi agraciada com quantas capas dos iconoclastas
de araque da C.H.?”
Angela Merkel – ou melhor, a cabeleira dela na cabeça do
Hollande – foi agraciada com ao menos uma capa intitulada “Os estragos do
modelo alemão”, como você pode ver:
“Ou seja, eles faziam
o jogo de sempre da imprensa: livrar a cara dos poderosos e atacar os sem
poder.”
Afinal, Angela Merkel tem poder ou não, segundo você? E o
Hollande? Quanto aos poderosos economicamente, veja, abaixo, uma capa que critica "a Europa dirigida pelos bancos". Ou seja, você é que está errado, de novo: não
sabe do que está falando.
A última parte do e-mail nem sequer merece comentário.
8.1.15
Salman Rushdie sobre o ataque à Charlie Hebdo
"A religião, que é uma forma medieval de irracionalidade, quando se combina com armamentos modernos, torna-se uma ameaça real às nossas liberdades. O totalitarismo religioso tem causado uma mutação mortal no coração do Islã. Vimos as consequências trágicas disso hoje em Paris. Estou com Charlie Hebdo, como todos nós devemos estar, para defender a arte da sátira, que sempre foi uma força pela liberdade e contra a tirania, a desonestidade e a burrice. O “respeito pela religião” tornou-se um chavão que significa “medo da religião”. As religiões, como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e, sim, nossa destemida falta de respeito."
RUSHDIE, Salman. Declaração ao Wall Street Journal. 07/01/2015.
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23.9.12
Folha de São Paulo: "Subdesenvolvimento puro"
O seguinte -- excelente -- editorial da Folha de São Paulo foi publicado no dia 21 do corrente:
Subdesenvolvimento puro
A publicação de mais charges satirizando o profeta Maomé por uma revista francesa, "Charlie Hebdo", faz antever novas manifestações violentas no Oriente Médio.
Alguns já se perguntam se, de fato, vale a pena que sistemas jurídicos de países democráticos deem guarida a manifestações que poderiam ser classificadas como provocação. E a resposta só pode ser um inequívoco "sim".
Ninguém é obrigado a gostar das charges nem do filme produzido nos EUA que deflagrou a onda de protestos, mas é essencial que se preserve o direito das pessoas de exprimir o que bem entendam. E essa liberdade só faz sentido se for robusta, ou seja, se abarcar até aquilo que a maioria considera errado, ou mesmo repugnante.
Defesa tão veemente da liberdade de expressão poderia parecer um capricho, comparável ao fundamentalismo daqueles que querem blindar cultos e profetas de críticas e sátiras. Mas há uma diferença crucial: enquanto a proteção almejada por religiões serviria apenas para evitar que se questionem seus dogmas, a afirmação do direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental.
Para começar, a liberdade de expressão é indissociável da própria noção de democracia representativa. A possibilidade de crítica ampla é decisiva não apenas para controlar governantes como também para constituir um eleitorado razoavelmente bem informado, que é a base do sistema.
Mais que isso: se ideias, teorias e evidências não pudessem ser livremente discutidas, a ciência, com todos os confortos tecnológicos que acarreta, caminharia bem mais devagar -se é que se moveria.
Mesmo no campo da moral, tão cara a religiosos, a liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser discutidos sob todos os aspectos, ajuda a sociedade a encontrar o equilíbrio entre mudança e estabilidade.
A própria noção de modernidade implica aceitar que costumes, tradições e crenças são históricos e se alteram na esteira das transformações da sociedade e do conhecimento objetivo sobre o mundo.
A aversão do fanatismo islâmico à crítica e aos direitos do indivíduo, assim, é um dos fatores que impedem o avanço institucional e científico das sociedades em que se torna dominante -ou seja, impedem seu próprio desenvolvimento. Até que se deem conta da contradição, muito sangue será vertido.
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21.3.12
Alexandre Vidal Porto: "O Brasil não é regido pela Bíblia"
O seguinte artigo de Alexandre Vidal Porto foi publicado em 18 de março do corrente no jornal O Globo:
O Brasil não é regido pela Bíblia
A Constituição determina que o Brasil é um Estado laico e assegura liberdade religiosa para todos os cidadãos. As autoridades devem dar garantias ao culto de qualquer religião, sem, no entanto, agir em nome de nenhuma. Em uma democracia, esses princípios são importantes porque preservam o pluralismo da sociedade e protegem o pleno exercício dos direitos individuais.
Trata-se de uma conquista da civilização ocidental que se encontra ameaçada no Brasil. Hoje, fé e política parecem manter uma relação espúria, na qual princípios religiosos contaminam de forma indevida o processo legislativo nacional. Absurdamente, começa-se a achar natural que projetos de lei submetidos à Câmara dos Deputados, ainda que consonantes com os princípios da Constituição e dirigidos ao todo da população — religiosa ou não —, tenham de passar pelo crivo doutrinário das igrejas e fiquem reféns de sua sanção.
Retira-se, assim, de parcela considerável do povo brasileiro, a possibilidade de regular seus direitos constitucionais fora de preceitos bíblicos que não abraçou. Ao mesmo tempo, as lideranças religiosas assumem ares de superioridade moral e alavancam seus interesses políticos baseados em uma ideologia teocrática de exclusão, que desqualifica quem não partilha de sua fé.
Ninguém é melhor ou mais ético porque tem religião. Cada um tem o direito de escolher os princípios morais que nortearão sua vida de acordo com a sua consciência. Essa prerrogativa fundamenta os direitos individuais. Foi conquistada a duras penas, em reação, justamente, ao monopólio ideológico e religioso que, diversas vezes na história, impôs-se com resultados terríveis para a humanidade.
Ao longo dos séculos, muitas atrocidades foram cometidas em nome da Bíblia e de outros textos religiosos. Não fosse a garantia da pluralidade democrática, o mesmo deputado que vocifera contra cultos de matriz africana ou direitos reprodutivos das mulheres, poderia ter sido queimado na fogueira da Inquisição católica ou morto por apedrejamento como infiel.
O Brasil é um país diverso. E quer continuar a sê-lo. Nele, não deve haver espaço para a intolerância O Congresso não legisla apenas para quem tem religião. Tem de proteger a todos. Tentar impor uma ideologia religiosa por meio da ação legislativa desfigura nossa democracia. Os religiosos têm o direito de observar seus princípios, mas não podem impingilos ao resto da população. O Brasil não é regido pela Bíblia. Que os religiosos cultuem o que quiserem, mas que respeitem quem não pensa e não quer viver como eles.
É importante que as autoridades do governo tentem colocar em perspectiva a ação política de grupos religiosos no Brasil. O Estado brasileiro é laico e deve comportar-se como tal. Em mais de uma instância, minorias sociais têm visto seus direitos individuais virarem moeda de troca. Tolerar a intolerância pode render votos, mas não é uma forma justa de governar.
Alexandre Vidal Porto é advogado
2.1.12
Sigmund Freud: de "O futuro de uma ilusão"
Os filósofos esticam o significado de palavras até que essas mal conservam algo do seu sentido original; chamam alguma abstração borrada que criaram de “Deus” e posam para o mundo inteiro como deístas, crentes que conheceram um conceito mais puro de Deus, embora seu Deus seja apenas uma sombra sem substância, e não mais a personalidade poderosa da doutrina religiosa.
FREUD, Sigmund. Die Zukunft einer Illusion. Leipzig: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927.
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26.12.11
Maldita partícula
Recentemente, pesquisadores que trabalham no LHC, que é o maior acelerador de partículas do mundo, disseram ter visto indícios da existência do “bóson de Higgs”, uma partícula que explicaria por que todas as partículas têm massa. O fato de que essa partícula tenha sido apelidada de “partícula de Deus” animou muitos religiosos a pensarem que, caso seja provada sua existência, ela, de algum modo, reforçará a combalida hipótese da existência de Deus.
Ledo engano. Em interessante artigo intitulado "Maldita partícula", publicado no dia 18 do corrente na Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman mostra que o apelido “partícula de Deus” é um caso de “inadequação entre referência e significado”. Segundo ele, “o apelido surgiu em 1993, como título do livro do físico Leon Lederman: "The God Particle" (a partícula de Deus). O problema é que esse título foi, segundo o autor, dado contra a sua vontade. Lederman queria chamar o livro de "maldita partícula" ("goddamn particle"), "porque ninguém conseguia achá-la". Esperto, o editor ficou só com a primeira sílaba, ‘God’, e a obra e o apelido foram um sucesso. Agora, parece, até encontraram a maldita partícula.” Que os religiosos tirem o cavalinho da chuva...
27.1.11
Keith Parsons: "Adeus a tudo aquilo"
O seguinte artigo do professor de filosofia da religião Keith Parsons tornou-se, como diz a comentadora Julia Galef, “viral” na Internet. Ele foi reproduzido e comentado em inúmeros sites e blogs.
Parsons sempre foi crítico do teísmo, o que não é comum em professores de filosofia da religião. Mas se estes são, em sua maioria, teístas, por outro lado, a maioria dos filósofos (73%, segundo uma pesquisa recente citada por Julia Galef), é composta de ateus.
John Fischer, outro filósofo da religião ateu, professor da Universidade da California Riverside, diz: “Creio que a maior parte dos filósofos basicamente concorda com um livro que John Mackie escreveu muitos anos atrás chamado O milagre do teísmo. O milagre a que ele se refere é que alguém possa ser teísta hoje em dia. Para os filósofos, a decisão contra Deus foi resolvida centenas de anos atrás. A filosofia da religião parece muito com apologética, isto é, com um esforço para racionalizar crenças pré-existentes. O rebuliço em torno de Parsons trouxe à tona algo que existe: um desprezo ou ceticismo que muitos filósofos sentem sobre a validade da filosofia da religião.
O que Fisher diz pode ser exemplificado por um texto do importante filósofo norte-americano John Searle, que traduzi para este blog em maio de 2009 e se encontra aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2009/05/john-r-searle-de-mind-language-and.html. Eu o havia citado em outubro de 2007, em artigo para a “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, que se encontra aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2007/10/crtica-e-religio.html.
Adeus a tudo aquilo
Ao longo dos últimos dez anos publiquei, neste ou naquele veículo, cerca de vinte trabalhos sobre a filosofia da religião. Tenho um livro sobre o assunto, Deus e o ônus da prova, e outro que critica a apologética cristã, Por que não sou um cristão. Durante minha carreira acadêmica debati com William Lane Craig duas vezes e duas vezes com criacionistas. Escrevi uma tese de mestrado e uma de doutorado sobre a filosofia da religião, e ministrei cursos sobre o assunto inúmeras vezes. Mas não mais. Basta. Estou de volta ao meu interesse real, que se situa na história e filosofia da ciência e, após terminar alguns compromissos em andamento, não escreverei mais nada sobre a filosofia da religião. Eu poderia dar muitos motivos. Por um lado, acho que um grande número de filósofos representaram os argumentos a favor do ateísmo e do naturalismo tão bem quanto possível. Graham Oppy, Jordan Howard Sobel, Nicholas Everitt, Michael Martin, Robin Le Poidevin e Richard Gale têm produzido obras de grande sofisticação que destroem os argumentos teístas tanto em suas formulações clássicas quanto nas mais recentes. Ted Drange, JL Schellenberg, Andrea Weisberger, e Nicholas Trakakis apresentaram poderosos, e, a meu ver, irrespondíveis argumentos ateológicos. Gregory Dawes tem um livro extraordinário mostrando exatamente o que há de errado com "explicações" teístas. Erik Wielenberg mostra muito claramente que a ética não precisa de Deus. Com humildade honesta, realmente não creio que tenha muito a acrescentar a estas obras excelentes.
Em primeiro lugar, porém, o que me motiva é um sentimento de tédio, por um lado, e de urgência, por outro. Dois anos atrás, ministrei um curso de filosofia da religião. Estávamos usando, entre outras obras, Cartas para um Thomas em dúvida: argumentos a favor da existência de Deus, de Stephen C. Layman. Nas aulas tento apresentar material que considero antitético ao meu próprio ponto de vista da forma mais justa imparcial possível. Com o livro de Layman, fiz um esforço enorme para consegui-lo. Achei-me, literalmente, temendo ter de passar por essa obra em sala de aula: não, deixe-me salientar, porque estivesse intimidado pela força dos argumentos. Ao contrário, achei os argumentos tão execráveis e sem sentido que me aborreciam e enojavam. Ora, Layman não é um maluco ou um ignorante, ele é o autor de um livro de lógica muito útil. Tenho que confessar que hoje considero "os argumentos a favor do teísmo" como fraudes e já não consigo apresentá-los aos alunos como se represetassem uma posição filosófica respeitável, assim como não conseguiria apresentar o desígnio inteligente como uma teoria biológica legítima. Aliás, ao dizer que considero os argumentos para o teísmo como fraudes, não pretendo acusar as pessoas que os usam de vigaristas, que visam enganar-nos com afirmações que sabem serem falsas. Não: os filósofos teístas e apologistas são quase dolorosamente sinceros e honestos; não penso que haja um Bernie Madoff no grupo. Simplesmente não consigo mais levar a sério seus argumentos e, quando não conseguimos levar uma coisa a sério, não devemos lhes dispensar uma atenção acadêmica séria. Passei para um colega os cursos de filosofia da religião.
Como disse, há também um sentido de urgência. Acabo de completar 58 anos e quero dedicar os relativamente poucos anos restantes de minha vida acadêmica àquilo que não apenas respeito, mas amo. Adoro a astronomia; adoro a geologia; adoro a paleontologia, e acho a história desses campos fascinante. Também estou muito interessado nos problemas filosóficos associados com as ciências históricas. Como compreender e reconstituir acontecimentos que tiveram lugar no fundo do tempo é um interesse profundo e permanente para mim. Publiquei dois livros sobre a história da paleontologia de dinossauros, e voltarei a esse tipo de coisa.
Assim, com exceção dos compromissos que estou terminando agora, abandono a filosofia da religião. Talvez ainda responda a algumas críticas aos meus trabalhos publicados. Por exemplo, o Secular Web tem uma crítica longa do meu ensaio "Não se necessida de criador”, e eu poderia responder a ela. Continuarei de vez em quando a postar coisas no Secular Outpost. Quanto ao resto de vocês, que estão combatendo o bom combate contra o sobrenaturalismo, por favor continuem. Alguém precisa se opor a esse tipo de coisa. Apenas, não serei eu.
Keith Parsons
PARSONS, Keit. "Goodbye to all that". The secular outpost. Disp. em: http://secularoutpost.infidels.org/2010/09/goodbye-to-all-that.html. Postado em 01/09/2010.
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21.12.10
Sobre os ateus envergonhados
Confirmando o que observei sobre os ateus envergonhados, hoje uma carta de leitor à Folha, escrita por uma pessoa que se diz ateia, afirma considerar “boa notícia a informação [...] de que a campanha contra a discriminação ao ateísmo foi cancelada. Ela me pareceu agressiva demais”.
Então é agressivo dizer que “a religião não define o caráter”? É agressivo dizer a verdade? Por que é que os ateus devem ouvir calados as proposições não apenas falsas mas caluniosas e ofensivas dos religiosos sobre o ateísmo, porém os religiosos devem ser poupados de ouvir verdades simples como essa?
Segundo o mesmo leitor, os ateus não necessitam “usar a mesma intolerância e ódio que os religiosos têm pelos que não creem na mesma coisa que eles”. Também acho. Mas deixar de se defender da intolerância, do ódio e das calúnias dos religiosos não é uma demonstração de tolerância, mas de covardia, que só faz confirmar aos religiosos intolerantes, raivosos e caluniosos que é assim mesmo que eles devem continuar a ser.
Então é agressivo dizer que “a religião não define o caráter”? É agressivo dizer a verdade? Por que é que os ateus devem ouvir calados as proposições não apenas falsas mas caluniosas e ofensivas dos religiosos sobre o ateísmo, porém os religiosos devem ser poupados de ouvir verdades simples como essa?
Segundo o mesmo leitor, os ateus não necessitam “usar a mesma intolerância e ódio que os religiosos têm pelos que não creem na mesma coisa que eles”. Também acho. Mas deixar de se defender da intolerância, do ódio e das calúnias dos religiosos não é uma demonstração de tolerância, mas de covardia, que só faz confirmar aos religiosos intolerantes, raivosos e caluniosos que é assim mesmo que eles devem continuar a ser.
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20.12.10
Os cartazes da ATEA
Ninguém ignora que já houve tempo em que, para escapar do preconceito racial, alguns negros – principalmente alguns mestiços – se sentiam compelidos a provar de algum modo que, apesar de terem pele escura, não eram tão escuros “por dentro”, pois tinham a alma branca. Como faziam? Tomavam, em muitas questões, o partido dos racistas. Distanciavam-se, nessa medida, dos demais negros e mestiços. Algumas pessoas, em alguns lugares, mesmo no Brasil, ainda agem assim.
Observo hoje algo semelhante entre os ateus. Vou dar um exemplo.
Uma campanha da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) pretende combater o preconceito contra os ateus, colocando em ônibus urbanos cartazes que ridicularizam certas crenças prejudiciais ao ateísmo. Uma delas é, por exemplo, que, dada a premissa – falsa – de que a religião é a fonte da moral, o homem sem religião não tem moral ou caráter.
Contra esse preconceito, a ATEA preparou um cartaz que afirma: “Religião não define caráter. Diga não ao preconceito contra ateus”. E pôs o retrato de Charles Chaplin, com a legenda “Não acredita em Deus” ao lado do retrato de Adolf Hitler, com a legenda “Acredita em Deus”.
Ei-lo:
Ora, diante desse cartaz, jornalistas que normalmente costumam ter opiniões bastante racionais e inteligentes – inclusive alguns que se dizem ateus –, afirmam coisas tais como: “seria fácil inverter a lógica da propaganda, opondo, por exemplo, Madre Teresa de Calcutá (a religiosa) a Joseph Stálin (o ateu)”.
Será que quem diz isso não percebe que a oposição que propõe (que não passa de um lugar comum) não inverte em nada a lógica da propaganda da ATEA? O que esta diz é que “Religião não define caráter”: logo, que se pode ter bom ou mau caráter, independentemente de se ser religioso ou ateu.
São os religiosos que há tempos usam a oposição entre o mau ateu (Stalin) e a boa religiosa (Madre Teresa) para tentar provar que os religiosos são bons e os ateus são maus. E os ateus da ATEA não “invertem” essa “lógica”, mas simplesmente a rejeitam, por espúria.
Esse cartaz não faz propaganda anti-religiosa ou ateísta. Ele apenas combate o preconceito anti-ateu. Pois bem, esse preconceito é tão forte que, até o momento em que escrevo, nenhuma companhia de ônibus aceitou ostentar esse ou os demais cartazes da ATEA.
14.11.10
Liberalismo e religião
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 14 de outubro:
Liberalismo e religião
NO INTERESSANTE artigo "Patologias do indivíduo" (Opinião, 9/11), Vladimir Safatle afirma que "a vida contemporânea demonstrou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se nos dois polos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular". Trata-se, para ele, do movimento pendular do pensamento conservador.
Num primeiro momento, a vitória do Partido Republicano nas recentes eleições americanas – que provavelmente até ocasionou o seu artigo – parece dar-lhe razão. Ocorre porém que, justamente nos Estados Unidos, o "pensamento conservador" se define em oposição ao "pensamento liberal", de modo que a vitória dos republicanos sobre os democratas foi tomada por todos como uma vitória dos conservadores CONTRA os liberais.
O que diferencia o conservadorismo americano do europeu é que os Estados Unidos não tiveram uma aristocracia. Principalmente depois da Revolução Francesa, o conservadorismo europeu, nostálgico do "ancien régime", definia-se contra a Ilustração, a secularização, o liberalismo e o individualismo, que considerava alienantes, e exaltava os valores da comunidade, da autoridade, da hierarquia e do sagrado.
Os Estados Unidos, porém, já surgiram com a afirmação tanto da separação entre o Estado e a religião quanto das liberdades individuais. A divergência entre conservadores e liberais americanos se dá principalmente no sentido e no alcance que cada um deles atribui a cada um desses pontos. O primeiro é um ponto fundamental para os liberais. Quanto aos conservadores, basta lembrar a recente demonstração de ignorância da candidata republicana ao Senado pelo Estado de Delaware, Cristine O'Donnell, que reconheceu publicamente desconhecer que a separação entre o Estado e a religião se encontra estabelecida na famosíssima primeira emenda da Constituição dos EUA.
Quanto às liberdades individuais, os liberais tendem, cada vez mais, a entendê-las no sentido mais amplo e universal possível, considerando que compete à sociedade, por meio do aparelho de Estado, garantir que, em princípio, todos os cidadãos tenham a oportunidade de exercê-las plenamente, oferecendo-lhes, para tanto, as condições necessárias de saúde pública, educação, renda mínima etc. Como o famoso economista liberal Paul Krugman recentemente declarou, o termo "liberal" nos Estados Unidos significa mais ou menos o mesmo que "social-democrata" significa na Europa.
Já os conservadores americanos, opondo-se à interpretação ampla das liberdades individuais, tentam reduzi-las basicamente à garantia do "laissez-faire", isto é, da ausência ou da minimização da intervenção do Estado na sociedade e na economia. Para eles, qualquer interpretação mais ampla das liberdades individuais é suspeita, e "social-democracia" é sinônimo de "comunismo".
A quem pode interessar diretamente tal conservadorismo, senão à plutocracia americana, aos grandes bancos, corporações e bilionários? Pode-se facilmente entender como é que, contra qualquer mudança, esses conservadores deem graças a Deus pela sobrevivência e expansão da religião e de pretensos "valores genuinamente americanos".
O estranho é que os republicanos tenham sido capazes de seduzir para esse conservadorismo parte considerável da população interiorana e branca norte-americana, principalmente a parcela composta de subempregados, desempregados e ameaçados de desemprego. O ex-colunista do Wall Street Journal, Thomas Frank, chama atenção, em seu famoso livro “What’s the matter with Kansas?”, para o paradoxo de que essa população vote predominantemente no Partido Republicano, apesar de ter sido economicamente prejudicada exatamente pela política conservadora de privatização, desregulamentação, favorecimento dos monopólios econômicos em todas as áreas, desde a bancária até a de radiodifusão e a de empacotamento de carne – o que resultou no sucateamento das indústrias do centro-oeste –, destruição do estado de bem-estar social, desmantelamento do movimento operário etc.
Uma explicação possível para essa aparente incongruência é que, dado que foi a partir dos anos 1960 que tiveram início não somente as mais importantes ampliações dos direitos – das liberdades – dos negros, dos gays, das minorias em geral, das mulheres etc., mas também o declínio econômico de grande parte da população do interior, esta tenha acreditado no mito conservador de que tal declínio tenha sido causado pela ampliação desses direitos. Assim, ela culpa o liberalismo cosmopolita por ter destruído os "valores genuinamente americanos" -- e, segundo crê, "cristãos" -- dos anos 1950, sua época áurea.
De todo modo, é preciso reconhecer que a relação entre o liberalismo e a religião é um tanto mais complexa do que a que Safatle esboçou.
8.11.10
Bill Maher: "Religião não causa mal nenhum"
Na semana passada assisti, na HBO, a um programa engraçadíssimo e inteligente do comediante Bill Maher. Como ontem descobri que um dos seus trechos mais engraçados se encontrava no You Tube, resolvi postá-lo aqui. Aí está:
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23.10.10
Maria Rita Kehl: "Repulsa ao sexo"
O seguinte -- excelente -- artigo de Maria Rita Kehl foi publicado no jornal O Estado de São Paulo no dia 18 de setembro, isto é, duas semanas antes do episódio lamentável de sua demissão, em consequência da publicação de um artigo seu ("Dois pesos") que destoava da linha política declaradamente adotada pelo jornal, de apoio, nas atuais eleições, ao candidato José Serra.
Repulsa ao sexo
Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células–tronco.
Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.
Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.
O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.
O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século XVII.
A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.
A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores contaminados.
Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.
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17.10.10
A questão do aborto
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 16 de outubro.
A questão do aborto
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Quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, mas uma crença religiosa
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Se não me engano, algum tempo atrás Lula previu que, nas eleições deste ano, todos os candidatos à Presidência seriam de esquerda. De fato, os três mais votados candidatos do primeiro turno, logo, os dois do segundo, são considerados de esquerda.
Serão mesmo? Pensaria o contrário quem, sem nada saber dos candidatos, visse as fotos diárias que a imprensa publica de cada um deles a assistir à missa; ou suas confraternizações com pastores e políticos evangélicos; ou lesse suas declarações de fé; ou as promessas de obediência que fazem a líderes religiosos; ou suas renegações da proposta da descriminalização do aborto...
Dois dias atrás, afirmando que uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja, Contardo Calligaris postergou uma discussão sobre o aborto. Acho que ele estava certo. Contudo, tendo lido inúmeros ataques à tese de que o aborto deve ser descriminalizado, mas nenhum argumento a favor dela, resolvi lembrar alguns.
E, para mim, os argumentos mais decisivos são os do filósofo francês Francis Kaplan no seu livro "O Embrião É um Ser Vivo?", por ele resumidos em entrevista que a Folha publicou em abril de 2008.
Segundo Kaplan, deve-se distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo". Um ser vivo não é apenas um ser que tem funções (pois várias partes do ser vivo têm funções), mas um ser que tem todas as funções necessárias para estar vivo. Assim é um ser humano, por exemplo. Já o olho do ser humano, na medida em que lhe faculta enxergar, está vivo, mas não é um ser vivo. O olho está vivo somente na medida em que faz parte do ser vivo que é o ser humano.
Assim também o embrião está vivo somente enquanto parte de outro ser vivo, que é a sua mãe. Por si mesmo, "as funções vitais de que ele precisa para estar vivo são as da mãe. É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento, que pode usar somente por lhe chegar previamente digerido pela mãe; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o oxigênio; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam".
E mais: "Não é o embrião que se desenvolve: é a mãe que, por meio da produção da serotonina periférica no sangue, determina, durante mais da metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega".
Kaplan explica, ademais, que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, o feto não tem atividade cerebral. Acontece que, como ele observa, "um homem sem atividade cerebral é considerado clinicamente morto". Ora, “o prazo de três meses é o prazo dentro do qual a maioria das mulheres que querem abortar aborta, mesmo quando podem fazê-lo legalmente mais tarde”. Vê-se assim que não tem o menor sentido comparar o aborto com o assassinato de uma criança, como alguns religiosos costumam fazer. E que pensar então da tese de que a vida da mãe não vale mais que a do feto?
Diga-se a verdade: quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, como alega, mas sim uma crença religiosa segundo a qual nem o prazer sexual pode ser um fim em si mesmo nem o ser humano é dono de si próprio ou do seu corpo.
Ora, cada qual tem o direito à crença religiosa que bem entender, mas o Estado, que deve ser laico, não pode adotar nenhuma delas em particular.
Nenhuma mulher recorre ao aborto por prazer, mas em consequência de sofrimento, e para evitar ainda maior sofrimento para si, para sua família e para a criança que nasceria.
É uma grande crueldade que o Estado penalize essas mulheres e, principalmente, as mulheres pobres que, sem recursos, são obrigadas a praticar o aborto nas piores condições imagináveis.
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16.10.10
Barak Obama: Discurso (com legendas)
Agradeço ao Poeta Alberto Pucheu por me ter chamado atenção para o seguinte vídeo, que mostra um excelente discurso do então candidato a Presidente dos Estados Unidos, Barak Obama. Não dá para não ficar com pena da indigência mental dos NOSSOS atuais candidatos a presidente, quando falam dos mesmos temas!
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24.1.10
Os paradigmas de Thomas Kuhn
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 23 do corrente:
Os paradigmas de Thomas Kuhn
No último artigo, citei a observação de Adorno de que "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".
Chamei a atenção para o fato de que essa descrição da astrologia se aplica a inúmeras outras ideologias, tanto laicas quanto religiosas. Falei destas e fiquei de falar daquelas no artigo de hoje.
Entretanto, vários leitores afirmaram não ver diferença qualitativa entre ciência e religião, ou entre razão e fé. Alguns mencionaram, nesse contexto, as teses do famoso historiador das ciências Thomas Kuhn. Resolvi então comentar tais teses, bem como o uso delas feito pelo relativismo cultural contemporâneo, sob a forma do "construcionismo social".
Para Kuhn, a ciência tem início quando uma comunidade de pesquisadores em determinado campo alcança consenso em torno de um "paradigma", isto é, de uma teoria que funcione como o fundamento da sua pesquisa subsequente. Assim foi, durante a Idade Média, a astronomia geocêntrica de Ptolomeu. Se, por um lado, o processo de adoção de tal paradigma ocorre como uma "revolução científica", por outro lado, após a sua adoção, o trabalho do cientista passa a ser o que Kuhn chama de "ciência normal". Esta se dá como o trabalho rotineiro de pesquisa e solução de enigmas, a partir do paradigma. Constituindo a própria condição de possibilidade da ciência normal, o paradigma dominante então é ferrenhamente defendido pelos cientistas.
Com o tempo, porém, acumulam-se enigmas insolúveis nos quadros do paradigma adotado. A ciência entra em "crise". Com isso, torna-se concebível a adoção de um novo paradigma, capaz de solucionar pelo menos os mais importantes desses enigmas ou anomalias.
Quando ele é encontrado, dá-se uma nova revolução científica. Assim foi a astronomia heliocêntrica de Copérnico, ao substituir a geocêntrica de Ptolomeu. Repete-se então todo o processo.
Segundo Kuhn, os diferentes paradigmas são "incomensuráveis". Isso implica que um paradigma não pode ser entendido a partir de outro, isto é, antes de ser adotado. Sendo assim, a transição de um paradigma para outro não pode ser feita gradualmente. Ela deve ocorrer de uma vez só, como uma "conversão" religiosa. Depois que ela tem lugar, é como se o cientista tivesse passado a habitar outro mundo.
Com o tempo, o próprio Kuhn acabou fazendo ressalvas à tese da incomensurabilidade. Ignorando-as, os construcionistas sociais a tomaram ao pé da letra. Se quem ainda não adotou um paradigma é incapaz de compreendê-lo, argumentam, como poderia julgá-lo, compará-lo a outro, criticá-lo?
Assim se confirma o relativismo cultural. Não admira que os defensores de teorias pseudocientíficas como o desígnio inteligente ("intelligent design") tentem legitimar-se através das teorias de Kuhn. Explica-se também que, acreditando poder ir ainda mais longe, muita gente não veja grande diferença entre a "fé" do cientista no seu paradigma científico e a fé do religioso no seu paradigma religioso...
É espantoso que uma obra como a de Kuhn, cujo sentido seria mostrar a especificidade do empreendimento científico, possa, contra uma gigantesca evidência empírica, servir para confundir a ciência justamente com a religião, em luta contra a qual ela historicamente se constituiu. Se aceitarmos esse resultado, então na ciência, como, aliás, diz o colega de Kuhn, Paul Feyerabend "anything goes", vale tudo.
Mas não é possível aceitá-lo. A versão construcionista social das teorias de Kuhn pode ser rejeitada "in limine", como todo relativismo, simplesmente por ser autofágica. Constituindo ela mesma um paradigma, ela é, segundo seus próprios pressupostos, incomensurável com outros possíveis paradigmas, de modo que não pode ser julgada, comparada com eles ou criticada por quem ainda não a tenha adotado. Sendo assim, desqualifica a si própria: quem ainda não a adotou carece de qualquer razão para adotá-la, e quem já a adotou não é capaz de justificar racionalmente tal decisão a quem não a tenha adotado.
Mais ainda: consiste num empreendimento irrealizável, segundo ela mesma, pois, precisamente ao supor que os paradigmas não possam ser julgados, comparados com outros ou criticados, ela se proíbe de afirmar qualquer coisa sobre eles.
Os paradigmas de Thomas Kuhn
No último artigo, citei a observação de Adorno de que "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".
Chamei a atenção para o fato de que essa descrição da astrologia se aplica a inúmeras outras ideologias, tanto laicas quanto religiosas. Falei destas e fiquei de falar daquelas no artigo de hoje.
Entretanto, vários leitores afirmaram não ver diferença qualitativa entre ciência e religião, ou entre razão e fé. Alguns mencionaram, nesse contexto, as teses do famoso historiador das ciências Thomas Kuhn. Resolvi então comentar tais teses, bem como o uso delas feito pelo relativismo cultural contemporâneo, sob a forma do "construcionismo social".
Para Kuhn, a ciência tem início quando uma comunidade de pesquisadores em determinado campo alcança consenso em torno de um "paradigma", isto é, de uma teoria que funcione como o fundamento da sua pesquisa subsequente. Assim foi, durante a Idade Média, a astronomia geocêntrica de Ptolomeu. Se, por um lado, o processo de adoção de tal paradigma ocorre como uma "revolução científica", por outro lado, após a sua adoção, o trabalho do cientista passa a ser o que Kuhn chama de "ciência normal". Esta se dá como o trabalho rotineiro de pesquisa e solução de enigmas, a partir do paradigma. Constituindo a própria condição de possibilidade da ciência normal, o paradigma dominante então é ferrenhamente defendido pelos cientistas.
Com o tempo, porém, acumulam-se enigmas insolúveis nos quadros do paradigma adotado. A ciência entra em "crise". Com isso, torna-se concebível a adoção de um novo paradigma, capaz de solucionar pelo menos os mais importantes desses enigmas ou anomalias.
Quando ele é encontrado, dá-se uma nova revolução científica. Assim foi a astronomia heliocêntrica de Copérnico, ao substituir a geocêntrica de Ptolomeu. Repete-se então todo o processo.
Segundo Kuhn, os diferentes paradigmas são "incomensuráveis". Isso implica que um paradigma não pode ser entendido a partir de outro, isto é, antes de ser adotado. Sendo assim, a transição de um paradigma para outro não pode ser feita gradualmente. Ela deve ocorrer de uma vez só, como uma "conversão" religiosa. Depois que ela tem lugar, é como se o cientista tivesse passado a habitar outro mundo.
Com o tempo, o próprio Kuhn acabou fazendo ressalvas à tese da incomensurabilidade. Ignorando-as, os construcionistas sociais a tomaram ao pé da letra. Se quem ainda não adotou um paradigma é incapaz de compreendê-lo, argumentam, como poderia julgá-lo, compará-lo a outro, criticá-lo?
Assim se confirma o relativismo cultural. Não admira que os defensores de teorias pseudocientíficas como o desígnio inteligente ("intelligent design") tentem legitimar-se através das teorias de Kuhn. Explica-se também que, acreditando poder ir ainda mais longe, muita gente não veja grande diferença entre a "fé" do cientista no seu paradigma científico e a fé do religioso no seu paradigma religioso...
É espantoso que uma obra como a de Kuhn, cujo sentido seria mostrar a especificidade do empreendimento científico, possa, contra uma gigantesca evidência empírica, servir para confundir a ciência justamente com a religião, em luta contra a qual ela historicamente se constituiu. Se aceitarmos esse resultado, então na ciência, como, aliás, diz o colega de Kuhn, Paul Feyerabend "anything goes", vale tudo.
Mas não é possível aceitá-lo. A versão construcionista social das teorias de Kuhn pode ser rejeitada "in limine", como todo relativismo, simplesmente por ser autofágica. Constituindo ela mesma um paradigma, ela é, segundo seus próprios pressupostos, incomensurável com outros possíveis paradigmas, de modo que não pode ser julgada, comparada com eles ou criticada por quem ainda não a tenha adotado. Sendo assim, desqualifica a si própria: quem ainda não a adotou carece de qualquer razão para adotá-la, e quem já a adotou não é capaz de justificar racionalmente tal decisão a quem não a tenha adotado.
Mais ainda: consiste num empreendimento irrealizável, segundo ela mesma, pois, precisamente ao supor que os paradigmas não possam ser julgados, comparados com outros ou criticados, ela se proíbe de afirmar qualquer coisa sobre eles.
10.1.10
As minorias que estão "por dentro"
O seguinte artigo foi publicado no sábado, 9 de janeiro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:
ANTONIO CICERO
As minorias que estão por dentro
NO LIVRO "AS ESTRELAS Descem à Terra", o filósofo Theodor Adorno observa que aquele que conhece a astrologia já se considera acima do homem comum, isto é, do homem que aceita acriticamente o senso comum sobre o mundo existente.
"A astrologia", diz Adorno, "à maneira de outras crenças irracionais, como o racismo, oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".
Essa descrição da astrologia aplica-se bem a inúmeras outras ideologias, religiosas e laicas. Como pretendo dizer algo tanto sobre aquelas quanto sobre estas, mas não há espaço para isso tudo numa só coluna, falarei apenas das religiosas neste artigo, deixando as laicas para o próximo.
Lembremo-nos, por exemplo, do cristianismo primitivo. Segundo seu verdadeiro fundador, o apóstolo Paulo, Deus disse: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes". Paulo pergunta: "Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?" E explica, adiante: "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus [...]. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe como eles são fúteis". No lugar da sabedoria deste mundo, Paulo propõe a fé, que, como diz, não se baseia na sabedoria humana, mas no poder de Deus.
Com essas penadas são varridas, entre outras coisas, a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas. As obras de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Cícero, Homero, Hesíodo, Píndaro, Virgílio e inúmeros outros são cassadas, entre as quais (segundo a sabedoria dos sábios, a inteligência dos inteligentes e a erudição dos eruditos, tanto da época de Paulo quanto da nossa) algumas das maiores preciosidades jamais produzidas pelos seres humanos.
Nesse caso, os que estão "por dentro" da palavra de Deus não apenas se sentem superiores ao homem comum, como diz Adorno, mas também -e sobretudo- aos "sábios", aos "inteligentes" e aos "eruditos". Vingam-se assim -de novo, nas palavras de Adorno- de se sentirem excluídos dos privilégios educacionais.
Foi indignado com as palavras de Paulo acima citadas que Nietzsche afirmou que a religião cristã, sendo "inimiga mortal da sabedoria do mundo, isto é, da ciência, aprovará todos os meios pelos quais a disciplina do espírito, a integridade e o rigor em ciências do espírito puderem ser envenenados, caluniados, desacreditados. A fé como imperativo é o veto contra a ciência -na prática a mentira a todo custo... Paulo compreendeu que a mentira, que a "fé" era necessária; mais tarde a Igreja compreendeu Paulo".
Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, na Idade Média, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica foi assumida- quanto para os que deles eram excluídos.
Isso não quer dizer que não tenha havido seitas que se considerassem acima do senso comum e se rebelassem contra a sabedoria deste mundo, inclusive contra a pretensa sabedoria da doutrina católica. Durante a Idade Média, proliferaram seitas de hereges, milenaristas, salvacionistas etc. a manifestar seu ódio contra toda sabedoria humana e, em particular, contra a razão.
Assim também fizeram os líderes da reforma protestante. Não admira que Martinho Lutero, declarado discípulo de Paulo, tenha chamado a razão de "puta amaldiçoada". "A razão", diz, "tem que ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que pisar toda razão, senso e entendimento".
Em que essas ideologias religiosas são próximas da astrologia, tal como descrita por Adorno? Em se considerarem acima do senso comum e em proporcionarem aos seus adeptos a sensação de pertencerem a uma minoria que está "por dentro".
Mas não é toda ciência assim? A diferença, para Adorno, é que a astrologia consiste numa "crença irracional". Falarei disso no próximo artigo.
E em que são distantes da astrologia? Em desprezarem não só o senso comum, mas toda sabedoria humana, inclusive a razão. Nesse sentido, as ideologias laicas, de que falarei também no próximo artigo desta coluna, estão bem mais próximas da astrologia.
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