20.12.10

Os cartazes da ATEA





Ninguém ignora que já houve tempo em que, para escapar do preconceito racial, alguns negros – principalmente alguns mestiços – se sentiam compelidos a provar de algum modo que, apesar de terem pele escura, não eram tão escuros “por dentro”, pois tinham a alma branca. Como faziam? Tomavam, em muitas questões, o partido dos racistas. Distanciavam-se, nessa medida, dos demais negros e mestiços. Algumas pessoas, em alguns lugares, mesmo no Brasil, ainda agem assim.

Observo hoje algo semelhante entre os ateus. Vou dar um exemplo.

Uma campanha da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) pretende combater o preconceito contra os ateus, colocando em ônibus urbanos cartazes que ridicularizam certas crenças prejudiciais ao ateísmo. Uma delas é, por exemplo, que, dada a premissa – falsa – de que a religião é a fonte da moral, o homem sem religião não tem moral ou caráter.

Contra esse preconceito, a ATEA preparou um cartaz que afirma: “Religião não define caráter. Diga não ao preconceito contra ateus”. E pôs o retrato de Charles Chaplin, com a legenda “Não acredita em Deus” ao lado do retrato de Adolf Hitler, com a legenda “Acredita em Deus”.

Ei-lo:



Ora, diante desse cartaz, jornalistas que normalmente costumam ter opiniões bastante racionais e inteligentes – inclusive alguns que se dizem ateus –, afirmam coisas tais como: “seria fácil inverter a lógica da propaganda, opondo, por exemplo, Madre Teresa de Calcutá (a religiosa) a Joseph Stálin (o ateu)”.

Será que quem diz isso não percebe que a oposição que propõe (que não passa de um lugar comum) não inverte em nada a lógica da propaganda da ATEA? O que esta diz é que “Religião não define caráter”: logo, que se pode ter bom ou mau caráter, independentemente de se ser religioso ou ateu.

São os religiosos que há tempos usam a oposição entre o mau ateu (Stalin) e a boa religiosa (Madre Teresa) para tentar provar que os religiosos são bons e os ateus são maus. E os ateus da ATEA não “invertem” essa “lógica”, mas simplesmente a rejeitam, por espúria.

Esse cartaz não faz propaganda anti-religiosa ou ateísta. Ele apenas combate o preconceito anti-ateu. Pois bem, esse preconceito é tão forte que, até o momento em que escrevo, nenhuma companhia de ônibus aceitou ostentar esse ou os demais cartazes da ATEA.

6 comentários:

Aetano disse...

Não sou ateu, mas numa sociedade livre deve haver espaço para os cartazes da ATEA.

Aeta

P.S. Feliz Natal e um intenso Ano Novo pra vc, Cicero. Vc faz falta na Folha...

Paulodaluzmoreira disse...

Preciso e incisivo, Cícero!

Anônimo disse...

Caro Cícero,
Não sei se sou agnóstico, ateu ou alguma outra coisa, mas não professo nenhuma fé no sobrenatural já há muitos anos.
Acho compreensível que muitas pessoas acreditem em um deus, porque, afinal, há tanto tempo que a humanidade faz isso, que deve existir alguma motivação forte e complicada convivendo com nossas dúvidas e sentimentos de medo da morte, busca da origem, esperança e amor, que seriam totalmente solucionadas através de uma divindade.
Mas, honestamente, acho impossível conviver intelectualmente com essas empresas financeiras multinacionais a que chamamos de religiões, porque elas levantam construções teóricas complicadíssimas e super detalhadas em cima de absolutamente nada; em cima do desconhecido, do oculto e do improvado.
E afirmo (sem orgulho) que, quanto mais o tempo passa, tenho maior preguiça em discutir assuntos cujas dúvidas, para mim, não sobreviveram, e que para os crédulos são certezas com origens que, também para mim, se tornaram inexplicáveis ou até mesmo absurdas.
Talvez esse meu silêncio motivado pela falta de saco não me torne alvo de preconceitos por ser incrédulo, e por isso eu tenha achado bastante estranho fazer uma campanha sobre o direito ao ateísmo em ônibus.
Mas considero um absurdo que ela seja proibida com base em legislações que efetivamente não são aplicáveis, mas que talvez tenham sido “encaixadas” por pressão das empresas de transportes, que evitavam misturar sua imagem com a do ateísmo, num país religioso e sobretudo tão místico como o Brasil.
Naveguei um pouco no site da ATEA, e confesso que não consigo entender alguém desperdiçar argumentos intelectuais com uma pobre coisa como o Datena.
Abraço,
JR.

one of us! disse...

Concordo inteiramente com o seu posicionamento. Fiquei pesaroso com a sua saída da "Ilustrada" - e feliz com a sua entrada na "Ilustríssima". Abraços.

Oleg disse...

Só uma observação: Stalin jamais foi ateu! Quando jovem, estudou num seminário ortodoxo, visando ser padre. Mais tarde, chegou a perseguir a igreja ortodoxa de modo ferrenho, mas em momento algum abriu mão das crenças tradicionais no ambiente íntimo.

Anônimo disse...

Estou lendo na web as repercussões da iniciativa da Atea e caí aqui no seu blog.
A meu ver a Atea está equivocada na forma como está conduzindo sua justa reivindicação. É pena porque devemos sim acabar com todo tipo de preconceito.
Postei também no meu blog a respeito. Se quiser olhar uma outra opinião, dê uma passada lá e será bem vindo.
Atena