O seguinte texto foi originalmente uma conferência que pronunciei no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1992, por ocasião da comemoração do septuagésimo aniversário da Semana de Arte Moderna de 1922. Essa conferência foi publicada no meu livro “O mundo desde o fim” (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995). A bem da verdade, trata-se de um texto ainda menos jornalístico do que os que publiquei na minha coluna da “Ilustrada”, mas, como não é demasiadamente longo e, a meu ver, basicamente mantém a sua atualidade, resolvi postá-lo aqui no blog.
O Agoral
As mais diversas e mesmo as mais conflitantes tendências encontraram expressão em 1922. É evidente a heterogeneidade irredutível dos projetos de Tarsila e Plínio Salgado, Graça Aranha e Oswald de Andrade. Isso quer dizer que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos ou na América espanhola, "modernismo", no Brasil, não é em primeiro lugar o nome próprio de um movimento particular de vanguarda entre outros mas a designação comúm a todos eles. Um tal modernismo não tem data. Por isso mesmo, a maior homenagem que lhe pode ser feita não é tratá-lo como antiguidade, mas simplesmente continuá-lo.
Costuma-se confundir modernidade com contemporaneidade. Há quem considere a contemporaneidade como um valor. Há quem pense que o auge do moderno consiste em "captar o novo." Há quem afirme que o grande resultado da Semana de 22 foi tornar o Brasil contemporâneo da Europa. Mas contemporaneidade não é modernidade. Quero aqui afirmar o moderno em oposição ao contemporâneo.
Que quer dizer contemporâneo? Se digo que Mário foi contemporâneo de Oswald, isso significa que Mário foi do mesmo tempo que Oswald. Se digo que Mário é contemporâneo simplesmente, isso significa que Mário é do mesmo tempo que eu, que estou falando. Assim, quando comento música contemporânea, por exemplo, estou necessariamente falando da música do meu tempo, seja quem eu for. Ser contemporâneo significa ser presentificável ou comparecível a mim, que estou empregando a palavra "contemporâneo." Eu, que falo, sou em todos os casos possíveis a instância perante a qual pessoas e coisas contemporâneas são apresentáveis, a instância que reconhece a contemporaneidade delas.
Uma vez que a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas e pessoas que me são contemporâneas. E exatamente porque sou contemporâneo dessas coisas, não faria sentido para mim desejar sê-lo.
Por outro lado, se me digo contemporâneo não desta ou daquela coisa mas contemporâneo simpliciter, não posso deixar de estar empregando incorretamente a palavra "contemporâneo", pois então não estou dizendo absolutamente nada: o meu enunciado, nesse caso, não é verdadeiro nem falso. Dizê-lo ou dizer o seu oposto são a mesma coisa: ele não chega a fazer declaração alguma. Para declarar alguma coisa, meu enunciado teria que explicitar de que objeto me digo contemporâneo. A contemporaneidade é sempre relativa. Uma vez que não se pode ser contemporâneo de modo absoluto, já que isso nada quer dizer, tampouco se pode desejar sê-lo.
Contudo, se não se pode desejar a contemporaneidade, crer-se desejá-la não deixa de ser sintoma de alguma coisa. Se digo desejar a contemporaneidade, é porque não suponho estar no centro mas na periferia do mundo. Ora, que o sujeito se considere central e o objeto, periférico, e não vice-versa
é justamente a grande revolução axio-gnoseológica da modernidade, realizada em primeiro lugar pelo cogito e, em segundo lugar, pela in-versão kantiana da Revolução de Copérnico. Assim, quem pretende ser uma espécie de antena que capte o novo, inconscientemente já se condenou de antemão à posição do não-moderno e provinciano em relação ao que considera como os centros produtores do novo.
Mas até agora falei somente do contemporâneo. E o moderno? A palavra mesma consiste em adjetivo oriúndo do advérbio latino modo, que quer dizer agora mesmo. Moderno é, portanto, o que toma por referência o agora; trata-se, em suma, do que podemos chamar de agoral.
Agora é, por um lado, o contemporâneo ou prae-s-ente mas, por outro lado, a negação do contemporâneo e presente: por exemplo, o possível e a mudança. O contemporâneo ou presente, enquanto positivo e particular, não passa de uma entre inúmeras possibilidades. Ele é contingente, acidental e relativo. Mesmo que agora não fosse, por exemplo, dia onze de fevereiro de 1992, agora seria agora. A negação do contemporâneo e presente, por outro lado, é necessária, essencial, absoluta. Agora poderia não ser isto ou aquilo mas, em hipótese alguma, agora deixaria de ser a possibilidade dessas ou de outras coisas. Agora mesmo o grande globo inteiro e todas as coisas que possui podem dissolver-se feito um espetáculo insubstancial, sem deixar nem uma núvem para trás. Agora não é em primeiro lugar um mundo determinado mas a indeterminação tenebrosa que gera e traga os mais esplêndidos mundos. Do possível e da mudança, quer dizer, da negação, surgem agora mesmo outras realidades, diferentes das que me são contemporâneas. Estas mesmas, que agora se me dão, são produtos da negação passada. Toda positividade pode ser tomada como negação negada, produto da negação negante que, ao negar-se a si própria, transforma-se no seu oposto. Mas não posso deixar de observar que eu mesmo faço parte do agora. Por um lado, sou corpo, quer dizer, positividade contingente, acidental e relativa isto é, produto, negação negada, mas, por outro lado, sou também possibilidade e mudança, imaginação e liberdade, isto é, negatividade. E' enquanto negação negante ou natura naturans e não enquanto positividade ou natura naturata que sou parte essencial do agora, centro e fonte do mundo.
Esse reconhecimento consiste em uma anamnese. Para se dar a ilusão de solidez e preservar-se do espectro da dissolução e da barbárie, o mundo pré-moderno tenta se esquecer das origens líquidas e flamejantes dos seus precários cristais e toma o poema como mais sagrado do que a poesia. É esse o fetichismo primordial. Só os grandes poetas, bem mais próximos da Loucura e do Cáos e do Oceano e do Abismo do Céu e da Ira, jamais se esqueceram da verdade que se reconhece na modernidade. Em outras palavras, todo artista criativo sempre foi e é moderno. Conversamente, moderno é o ponto de vista da criatividade. Ora, o artista não evita nem procura mas produz o novo: e não o produz a partir de positividade, presença ou contemporaneidade alguma, ainda que recém-nascida, mas do que antes nem sequer se constituira em presença, isto é, a partir da absoluta negação. Do seu ponto de vista, a novidade não passa de uma expressão abstrata da singularidade que discrimina e distingue seu ser, sua imagem, seus gestos ou seus produtos e que torna determinado ato seu ou obra sua algo esquisito, notável, memorável, insubstituível, prototípico. O artista é esquisito (palavra que tomo, é claro, não apenas na acepção portuguesa mas também na do vocábulo latino exquisitus, de requintado, acepção que se conservou nas derivações espanhola, francesa, inglesa etc.), o artista é perverso em relação às versões canônicas, às formas e às ordens, quer dizer, aos mundos positivos do seu tempo. Negação do centro positivo, ou melhor, centro negativo do mundo, o artista, de fato -- e cada ser humano, de direito -- é excêntrico em relação a qualquer centro positivo ou convencional. Como poderia resultar do desejo inevitavelmente esteticista de ser contemporâneo o que só surge feito negação, intempestividade, estranheza, extemporaneidade?
18.12.10
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2 comentários:
Toca o berrante
Toca o berrante
O boiadeiro diante
Da linda donzela
Ou do guapo cavaleiro
Garboso, gostoso, fogoso,
E vai pela estrada
atrás da sua amada
Que distante
Nem ouve o berrante
Ou sente o barulho da poeira
a névoa enrreda seu semblante
Toca o berrante sem explicação
Das coisas que vem do coração.
Memorável esse seu texto,caro Cicero.Obrigado!
Olhando o mistério do tempo
Olhando o mistério do tempo
Miramos o instante inconteste,
Porém ausente, aresta do Nada,
Que, não obstante, desdobra o ser
Na memória vivida, assombrada
Pelo fato de estar assim consciente
De habitar o espaço, inexistente,
Entre o irreal futuro e a saudade ancorada
No desejo atemporal da coisa amada,
Que afinal irrompe, criança, qual
Milagre no ventre do mundo,desatino
Sagrado do divino entre nós:Natal.
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