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26.10.21

Konstantinos Kaváfis: "Iwnikon" / "Iônica"

 



Iônica


Esmigalhamos – em verdade – suas estátuas,

os expulsamos – em verdade – dos santuários,

porém dos deuses – nem por isso – pereceram.

Eles, os deuses, Terra Iônica, ainda te adoram,

no íntimo, sua psiquê ainda te rememora.

Quando a manhã de agosto sobre ti alvora,

a vida deles deixa, na atmosfera, um sopro,

e uma figura etérea, um exsurgir de efebo,

como se evanescente no seu passo leve,

vela obre ti, no alto da colina, às vezes.





Iwnikon


Γιατί τα σπάσαμε τ’ αγάλματά των

γιατί τους διώξαμεν απ’ τους ναούς των,

διόλου δεν πέθαναν γι’ αυτό οι θεοί.

Ω γη της Ιωνίας, σένα αγαπούν ακόμη,

σένα η ψυχές των ενθυμούνται ακόμη.

Σαν ξημερώνει επάνω σου πρωί αυγουστιάτικο

την ατμοσφαίρα σου περνά σφρίγος απ’ την ζωή των·

και κάποτ’ αιθερία εφηβική μορφή,

αόριστη, με διάβα γρήγορο,

επάνω από τους λόφους σου περνά.





CAVÁFIS, Constantinos. "Iwnikon" / "Iônica". In: Konstantinos Haroldo Kaváfis de Campos. Poemas de Konstantinos Kaváfis; trad. de Haroldo de Campos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



1.8.20

Haroldo de Campos: "ideocabograma"



ideocabograma




pound attention !

joyce a minute !

  finnegans wait !

  don’t go beckett !

  arnoholzwege :

  i’m cummings !



  mallaimé

. . .





CAMPOS, Haroldo de. "ideocabograma". In:_____. Crisantempo: no espaço curvo nasce um.  São Paulo: Perspectiva, 2004.

21.4.18

Aleksandr Blok: "Do ciclo 'Dança da morte'": trad. de Augusto de Campos



Do ciclo Dança da morte

Noite. Fanal. Rua. Farmácia.
Uma luz estúpida e baça.
Ainda que vivas outra vida,
Tudo é igual. Não há saída.

Morres – e tudo recomeça,
E se repete a mesma peça:
Noite – rugas de gelo no canal.
Farmácia. Rua. Fanal.




BLOK, Aleksandr. "Do ciclo Dança da morte". Trad. de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (organizadores e tradutores). Poesia russa moderna. São Paulo: Perspectiva, 2012.

15.1.17

Haroldo de Campos: "zenbúdica"



zenbúdica

            para aguilar via oswald


               buda
            está
            no   u
            de humor
            e no a
            de    amor




CAMPOS, Haroldo de. "zenbúdica". In:_____. "zen". In:_____. crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.  

10.6.16

Konstatinos Kaváfis: "Melancolia de Jasão de Cleandro, poeta em Comagene, 595 d.C.": trad. de Haroldo de Campos




Melancolia de Jasão de Cleandro, poeta em Comagene, 595 d.C.

Meu corpo, minhas feições envelhecem:
ferida de pavoroso punhal.
Suportá-la? Não sei como! Não tenho forças para suportá-la.
A ti recorro, Arte da Poesia,
para ti me volto,
que tens noções de fármacos e analgésicos,
tentando narcotizar essa dor
em fantasia e palavra.

Ferida de pavoroso punhal.
Favorece-me com teus fármacos, Arte
da Poesia, que fazem – por um
átimo – insensível a ferida.



CAVÁFIS, Constantinos. "Melancolia de Jasão de Cleandro, poeta em Comagene". Trad. de Haroldo de Cmapos. In:_____. Poemas de Konstantinos Kaváfis. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

31.3.16

Catulo: "quinti, si tibi vis oculos debere catullum" / transliteração por Haroldo de Campos




quinti, si tibi vis oculos debere catullum

Quíncio,
queres que Catulo te deva os olhos
e o que há de mais caro que os olhos?
Não lhe roubes o que é
muito mais caro do que os olhos
ou do que há de mais caro que os olhos.



CAMPOS, Haroldo de. "quinti, si tibi vis oculos debere catullum". In:_____. "Novas transluminuras". In:_____. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.


LXXXII

Quinti, si tibi vis oculos debere Catullum      
aut aliud si quid carius est oculis,  
eripere ei noli, multo quod carius illi      
est oculis seu quid carius est oculis.  



CATULLUS, Gaius Valerius. "Carmen LXXXII: Quinti, si tibi vis oculos debere Catullum". In:_____. Poesies. Paris: Les Belles Lettres, 1949.


20.8.15

Haroldo de Campos: "ideocabograma"




ideocabograma


pound attention !
joyce a minute !
finnegans wait !
don't go beckett !
anoholzwege :
i'm cummings !



mallaimé

...



CAMPOS, Haroldo de. "ideocabograma". In:_____. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

28.4.14

Vielimir Khliébnikov: "Hoje de novo sigo a senda"





Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.



KHLIÉBNIKOV, Vielimir. "Hoje de novo sigo a senda". Trad. Augusto de Campos. In: CAMPOS, Ausgusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia Russa Moderna.São Paulo: Perspectiva, 2012.

23.10.12

Horácio: Ode I.5 / Para Pirra: trad. Haroldo de Campos




Para Pirra

Quem, Pirra
agora
se lava em rosas
(pluma e latex)
na rosicama do
teu duplex?
Quem,
onda a onda,
do teu cabelo
desfaz a trança
platino-blonda?
Pobre coitado
inocente inútil
vai lamentar-se
para toda a vida.
Um deus volúvel
mais do que a brisa
muda em mar negro
seu lago azul.
Pensava que eras
dócil-macia
toda ouro mel.
Não és. Varias.
(Ah quem se fia
no fútil brilho
desse ouropel!)
Eu, por meu turno,
todo ex-aluno,
esta oferenda
ao deus Netuno
padripotente
no teu vestíbulo
deixo suspensa
(vide a legenda):
VMIDA AINDA
A TVNICA



CAMPOS, Haroldo de. "Para Pirra". Apud ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar comum. Alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994.





Ode I.5

Quis multa gracilis te puer in rosa
perfusus liquidis urget odoribus
grato, Pyrrha, sub antro?
cui flavam religas comam
simplex munditiis? heu quotiens fidem
mutatosque deos flebit et aspera
nigris aequora ventis
emirabitur insolens,
qui nunc te fruitur credulus aurea,
qui semper vacuam, semper amabilem
sperat, nescius aurae
fallacis. miseri, quibus
intemptata nites: me tabula sacer
votiva paries indicat uvida
suspendisse potenti
vestimenta maris deo.





19.1.12

Severo Sarduy: "Rothko" / "Rothko": trad. Haroldo de Campos




Rothko

                         A Andrés Sánchez Robayna

No los colores, ni la forma pura.
Memoria de la tinta. Sedimento
que decanta la luz de su pigmento,
más allá de la tela y su armadura.

Las líneas no, ni sombra ni textura,
ni la breve ilusión del movimiento;
nada más que el silencio: el sentimiento
de estar en su presencia. La Pintura

en franjas paralelas cuya bruma
cruza la tela intacta, aunque teñida
de cinabrio, de vino que se esfuma;

púrpura, bermellón, anaranjada…
El rojo de la sangre derramada
selló su exploración. También su vida.


Rothko

                        A Andrés Sánchez Robayna

As cores, não, tampouco a forma pura.
Rememorar da tinta. Sedimento
que se decanta, à luz, de seu pigmento,
além, além da tela e sua armadura.

Sombra alguma, nem linhas, nem textura,
nem a quase-ilusão do movimento;
silêncio, nada mais: o sentimento
de já estar em presença: da Pintura,

suas franjas paralelas, cuja bruma
cruza o intacto da tela, colorida
embora de zarcão, vinho que esfuma;

cor púrpura, cinábrio, tez laranja...
O vermelho do sangue que se esbanja
selou sua exploração. Selou sua vida.



CAMPOS, Haroldo de. "Três (re)inscrições para Severo Sarduy". In:_____. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010

28.12.11

Haroldo de Campos: "O poeta ezra pound desce aos infernos"





O poeta ezra pound desce aos infernos

não para o limbo
dos que jamais foram vivos
nem mesmo
para o purgatório dos que esperam
mas para o inferno
dos que perseveram no erro
apesar de alguma contrição
tardia e da silente senectude
- diretamente com retitude -
o velho ez
já fantasma de si mesmo

e em tanta danação
quanto fulgor de paraíso



CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

7.9.11

Gonzalo Rojas: "Orquídea en el gentío" / "Orquídea: entre tanta gente": transcriação de Haroldo de Campos




Orquídea: entre tanta gente

Bonita a cor do cabelo desta moça, bonito
                                                        o cheiro
de abelha do seu zumbido, bonita a rua,
bonitos os pés de luxo nos dois
sapatos áureos, bonita a maquiagem
das pestanas às unhas, o fluvial
de suas esplêndidas artérias, bonita a physis
e a metaphysis da ondulação, bonito o metro
e setenta da estatura, bonito o pacto
entre osso e pele, bonito o volume
da mãe que a urdiu flexível e a
ninou esses nove meses, bonito o ócio
animal que nela anda.

Orquídea en el gentío

Bonito el color del pelo de esta señorita,
                                              bonito el olor
a abeja de su zumbido, bonita la calle,
bonitos los pies de lujo bajo los dos
zapatos áureos, bonito el maquillaje
de las pestañas a las uñas, lo fluvial
de sus arterias espléndidas, bonita la physis
y la metaphysis de la ondulación, bonito el
                                         metro
setenta de la armazón, bonito el pacto
entre hueso y piel, bonito el volumen
de la madre que la urdió flexible y la
durmió esos nueve meses, bonito el ocio
animal que anda en ella.



ROJAS, Gonzalo. "Orquídea en el gentío". Transcriação de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, Haroldo de. "Sympoética latino-americana". In:_____O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010.

30.7.11

Severo Sarduy: "Morandi" / "Morandi": tradução de Haroldo de Campos

Morandi

Una lámpara. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidad ni pertinencia
que estar ahí, que dar a la consciencia
un soporte casual. Mas no la huella

del hombre que la enciende o que los usa
para beber: todo ha sido blanqueado
o cubierto de cal y nada acusa
abandono, descuido ni cuidado.

Sólo la luz es familiar y escueta
el relieve eficaz; la sombra neta
se alarga en el mantel. El día quedo

sigue el paso del tiempo con su vaga
irrealidad. La tarde ya se apaga.
Los objetos se abrazan: tienen miedo.



Morandi

Uma lâmpada. Um copo. Uma garrafa.
Sem outra utilidade nem premência
que estar aí, que dar à consciência
um suporte casual. Que traço grafa

o gesto que uma acende e os outros usa
para beber? Tudo foi clareado
ou coberto de cal e nada acusa
abandono, descuido nem cuidado.

A luz somente é familiar e reta,
o relevo eficaz; sombra direta
se alonga na toalha. O dia cedo

segue o passo do tempo, lento, a vaga
irrealidade. A tarde já se apaga.
Objetos se abraçam: sentem medo.



SARDUY, Severo. In: CAMPOS, Haroldo. "Três (re)inscrições para Severo Sarduy". In:_____O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010.

13.2.11

Catulo: "vivamus, mea lesbia, atque amemus": trad. por Haroldo de Campos




vivamus, mea lesbia, atque amemus

Vivamos minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
- todas -
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.



vivamus, mea lesbia, atque amemus

vivamus, mea lesbia, atque amemus,
rumoresque senum severiorum
omnes unius aestimemus assis.
soles occidere et redire possunt:
nobis, cum semel occidit brevis lux,
nox est perpetua una dormienda.
da mi basia mille, deinde centum,
dein mille altera, dein secunda centum,
deinde usque altera mille, deinde centum.
dein, cum milia multa fecerimus,
conturbabimus illa, ne sciamus,
aut nequis malus invidere possit,
cum tantum sciat esse basiorum.


CATULLUS, Gaius Valerius. Select poems of Catullus. Edited by Francis P. Simpson. London: Macmillan, 1948.

CAMPOS, Haroldo de. "catuliana". In: Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

29.10.10

Entrevista à Sibila

Está no ar a entrevista "A poesia não nasce das regras", que dei aos poetas Luis Dolhnikoff e Régis Bonvicino, da revista Sibila. O endereço é: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1338-a-poesia-nao-nasce-das-regras.

4.4.10

O que é poesia?



O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 3 de abril:



O que é poesia?


O POETA Edson Cruz perguntou "O que é poesia?" a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta diferente, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a poesia. O resultado se transformou num livro.

Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura.

Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do discurso escrito, em oposição ao oral. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:

1. Enquanto o discurso oral é efêmero, o discurso escrito tem uma permanência indefinida;

2. enquanto o discurso oral é fluido e aberto, isto é, está sempre em movimento, como a vida, e sujeito a mudar a todo instante, o discurso escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança;

3. enquanto o discurso oral se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o discurso escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.

Pois bem, embora todo discurso tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.

Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o destino não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz respeito à primeira característica do discurso escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira característica, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de significar a permanência plena ou concreta do seu texto.

Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada igualmente por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é bem assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu como as transformações pelas quais ele passou antes de ficar pronto.

Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros como numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer como se fosse um desenho animado. Ele pareceria, então, fluido como uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a adicionar fotogramas a essa fita, ele pareceria também aberto como uma fala.

Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro ou útil, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.

Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor -atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos, ou de terem qualquer outra função prática. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É assim que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber "dizer muitas mentiras parecidas com a verdade".

Pois bem, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz respeito a um poema, parece-me em geral menos apropriado falar de "tradução" do que, como dizia o poeta Haroldo de Campos, de "transcriação".

7.2.10

Carpe diem





O seguinte artigo, publicado no sábado, 6 de fevereiro, na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, desenvolve algumas anotações que eu já tinha postado aqui no blog. Aqui publico na íntegra os poemas que, no jornal, publiquei apenas parcialmente:


"Carpe diem"


UM DOS poemas mais famosos do poeta romano Horácio é a ode 1.11. Nela, dirigindo-se a uma personagem feminina, Leucônoe, o poeta lhe diz que não procure adivinhar o futuro:

Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.


[Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
]

A frase "carpe diem" tornou-se um aforismo epicurista e um tema poético a que inúmeros poetas recorrem. No Brasil, por exemplo, Gregório de Matos, imitando um famoso poema de Góngora, diz, em soneto dedicado a uma "discreta e formosíssima Maria":

Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o Dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza
E imprime em toda flor sua pisada.

Ó não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.


O soneto mencionado de Góngora, uma obra-prima, é o seguinte:

Mientras por competir con tu cabello,
oro bruñido al sol relumbra en vano;
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente el lilio bello;

mientras a cada labio, por cogello,
siguen más ojos que al clavel temprano;
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello;

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

no sólo en plata o viola troncada
se vuelva, mas tú y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.


O poeta Mário Faustino escreveu o seguinte belíssimo soneto chamado "Carpe Diem":

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte — mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)



Mas Horácio, em outra ode igualmente famosa, a 3.30, afirma que suas Odes sobreviverão às milenàrias pirâmides:

Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.


[Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex:
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.
]


A própria admiração que a ode continua a suscitar, parecendo confirmar o vaticínio de Horácio, aumenta essa admiração.

Ou seja, enquanto na ode 1.11 o poeta recomenda ignorar o futuro, na ode 3.30 ele exalta o futuro dos seus poemas. Que haja uma contradição aqui não é nenhum problema. Diferentemente dos textos teóricos, os poéticos podem contradizer-se, ainda que sejam do mesmo autor, sem que, com isso, sofram o menor arranhão.

Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores. Um poema é capaz de contradizer a si próprio e ser uma obra-prima: ele pode até ter que se contradizer, como o "Odeio e Amo" ("Odi et amo"), de Catulo, para vir a ser uma obra-prima.

De todo modo, o poeta Haroldo de Campos escreveu um magnífico poema, intitulado "Horácio Contra Horácio", que diz:

ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos
o instante           a ruína           a desmemória


Não só, portanto, aos poetas é lícito contradizerem-se uns aos outros ou a si próprios, tanto em diferentes poemas quanto no mesmo poema, como tais contradições podem constituir o motivo de um poema.

Observo, porém, que a ode 1.11 pode também ser lida de modo que não necessariamente contradiga a ode 3.30. Digamos que a concepção de poesia subjacente à ode 3.30 seja que, dado que o grande poema vale por si, ele é, em princípio, indiferente às contingências do tempo. Sendo assim, não se concebe um tempo em que tal poema venha a caducar.

Logo, mesmo reconhecendo a possibilidade de que os textos se percam, talvez a verdadeira razão do orgulho de Horácio seja o fato de que suas odes intrinsecamente merecem existir. Isso quer dizer que elas merecem existir AGORA.

E merecem existir agora, seja quando for agora: seja quando for que alguém diga ou pense: "agora". É desse modo que, precisamente ao celebrar "o instante a ruína a desmemória", o poema se faz eterno agora. Nesse sentido, apreciá-lo é colher o dia: "carpere diem".

30.1.10

Octavio Paz: "Destino del poeta" / "Destino do poeta": trad. Haroldo de Campos




Destino de poeta

¿Palabras? Sí, de aire,
y em el aire perdidas.
Déjame que me pierda entre palavras,
déjame ser el aire en unos labios,
un soplo vagabundo sin contornos,
breve aroma que el aire desvanece.

También la luz en sí misma se pierde.



Destino do poeta

Palavras? Sim, de ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.



PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco (em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

20.12.09

Haroldo de Campos: "horácio contra horácio"




Haroldo de Campos – que no entanto não só admirava a Ode III.XXX, mas também a traduziu – prefere supor, ao menos no poema "horácio contra horácio", uma contradição entre o carpe diem e a aspiração da Ode III.XXX. Reconheço tratar-se de uma interpretação perfeitamente legítima, mas, para mim, o que em última análise justifica sua adoção é exatamente o fato de ter resultado nesse magnífico poema:


horácio contra horácio

ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos
o instante       a ruína       a desmemória




CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: No espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

18.12.09

Ainda sobre as odes de Horácio




Na Ode III.XXX de Horácio, postada na segunda-feira, dia 15, o poeta diz que seus poemas, inclusive, é claro, essa ode mesma, não serão destruídos pela fuga dos tempos.

Já na Ode I.XI, que postei em 18/05/2009, e que é a origem do conceito de “carpe diem” (“colhe o dia”), o eu lírico recomenda à sua amante, Leucônoe: “Colhe o dia, minimamente crédula no porvir”.

Ou seja, enquanto em III.XXX ele fala do futuro dos seus poemas, em I.XI ele recomenda ignorar o futuro. Que houvesse uma contradição aqui não seria nenhum problema: um poema pode contradizer o outro, sem que nenhum dos dois sofra o menor arranhão. Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores. Um poema é capaz se contradizer a si próprio e ser uma obra prima: ele pode até ter que se contradizer para vir a ser uma obra prima.

De todo modo, não sei sequer se essas duas odes de Horácio realmente se contradizem. Penso que a concepção da poesia que preside a Ode III.XXX é que, dado que os grandes poemas valem por si, eles são inteiramente indiferentes às contingências do tempo. Em princípio, portanto, não haverá tempo em que já não valham. O que interessa é que eles sempre merecem existir agora: seja quando for agora. Apreciá-los é sempre colher o dia: carpere diem. No fundo, portanto, parece-me não haver contradição entre essas duas odes. Algo nesse sentido manifesta-se no meu poema “História”, do livro “A cidade e os livros”, que se refere diretamente à ode XXX.:

[...]
Tudo que há no mundo some:
Babilônia, Tebas, Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta, e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.