31.8.21

Friedrich Hölderlin: "Sokrates und Alcibiades" / "Sócrates e Alcibíades": trad. de Antonio Cicero

 



Sócrates e Alcibíades



Por que honras, divino Sócrates,

   Sempre esse mesmo jovem? Não conheces nada maior?

       Por que o apreendem com amor, 

   Como aos deuses, os teus olhos?


Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivaz

    Quem entende o nobre jovem é quem bem captou o mundo

          E, no fim das contas, o sábio

        Se curva bastante ao belo.





Sokrates und Alcibiades



»Warum huldigest du, heiliger Sokrates,

     Diesem Jünglinge stets? kennest du Größers nicht?

Warum siehet mit Liebe,

     Wie auf Götter, dein Aug' auf ihn?«


Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste,

     Hohe Jugend versteht, wer in die Welt geblickt,

 Und es neigen die Weisen

      Oft am Ende zu Schönem sich.





HÖLDERLIN, Friedrich. "Sokrates und Alcibiades" / "Sócrates e Alcibíades". In:_____ Sämtliche Gedichte. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 2005.





29.8.21

Adriana Calcanhotto: "Sobre a tarde"

 



Sobre a tarde

um e-mail para carlos drummond de andrade



Cai a tarde

Como sempre


Como sempre

Diferente


Cai a tarde

De onde não se sabe

Pela Farme

Sobre a gente


Cai a tarde

Sem parar


Cai a tarde

E tudo parda


Cai a tarde

Meu amor rega as plantas


Cai a tarde

A tarde toda

Na velocidade da luz





CALCANHOTTO, Adriana. "Sobre a tarde". In: Creio que foi o sorriso. Uma antologia. Org. por Jorge Reis Sá. A Casa dos Ceifeiros, 2020.

26.8.21

Alberto da Costa e Silva: "O amor aos sessenta"

 



O amor aos sessenta



Isto que é o amor (como se o amor não fosse

esperar o relâmpago clarear o degredo):

ir-se por tempo abaixo como grama em colina,

preso a cada torrão de minuto e desejo.


Ser contigo, não sendo como as fases da lua,

como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,

mas como numa rosa as pétalas fechadas,

como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos


contra o casco do barco que se vai, sem avanço

e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.

Ser assim quase eterno como o sonho e a roda

que se fecha no espaço deste sol às estrelas


e amar-te, sabendo que a velhice descobre

a mais bela beleza no teu rosto de jovem.





COSTA E SILVA, Alberto da. "O amor aos sessenta". In: Antonlogia poética da Academia Brasileira de Letras. Brasília: Edições Câmara,, 2020.


24.8.21

Felipe Fortuna




Corpo a corpo



Meu corpo se destina a muitos corpos

em que me enterro antes da morte.


Gosto de prová-los como quem veste a chuva,

e a confusão das águas me desnuda.


Meu corpo e os outros corpos sempre em luta:

caio dentro da arena de areia extensa


em que meu sangue e as palavras se misturam. 






FORTUNA, Felipe. "Corpo a corpo". In:_____ "Poemas da pele". In:_____ Em seu lugar. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2005.

22.8.21

Manuel António Pina: "O lado de fora"

 



O lado de fora



Eu não procuro nada em ti,

nem a mim próprio, é algo em ti

que procura algo em ti

no labirinto dos meus pensamentos.

 

Eu estou entre ti e ti,

a minha vida, os meus sentidos

(principalmente os meus sentidos)

toldam de sombras o teu rosto.

 

O meu rosto não reflete a tua imagem,

o meu silêncio não te deixa falar,

o meu corpo não deixa que se juntem

as partes dispersas de ti em mim.

 

Eu sou talvez

aquele que procuras,

e as minhas dúvidas a tua voz

chamando do fundo do meu coração.





PINA, Manuel António. "O lado de fora". In:_____. Poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.



20.8.21

Antonio Cicero: "Colono lacônico"

 



Colono lacônico


É propício que Afrodite sempre vença as primeiras batalhas

e Atena sempre as últimas.

Hera deve perder.


Jamais regressarei a Esparta.





CICERO, Antonio. "Colono lacônico". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 2012.

18.8.21

Luís Turiba: "Cachoeira"

 



Cachoeira


A vida

começa a correr

mais rápida

do que as

próprias pernas


não tropeçar nas mesmas

não se afogar nas perdas


vida é rio manso

a escorrer nas beiras

rumo a cachoeiras


descalço d'alma

com os pés no

riacho da ilusão




TURIBA, Luís. "Cachoeira". In: Correio Brasiliense. Brasília, 17 de agosto de 2021.


15.8.21

Eugénio de Andrade: "O amor"

 



O amor



Estou a amar-te como o frio

corta os lábios.


A arrancar a raiz

ao mais diminuto dos rios.


A inundar-te de facas,

de saliva esperma lume.


Estou a rodear de agulhas

a boca mais vulnerável.


A marcar sobre os teus flancos

itinerários da espuma.


Assim é o amor: mortal e navegável.








ANDRADE, Eugénio de. "O amor". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1015. 

12.8.21

Sá de Miranda: "Comigo me desavim"

 



Comigo me desavim



Comigo me desavim,

sou posto em todo perigo;

não posso viver comigo

nem posso fugir de mim.


Com dor, da gente fugia,

antes que esta assim crescesse:

agora já fugiria

de mim, se de mim pudesse.

Que meo espero ou que fim

do vão trabalho que sigo,

pois que trago a mim comigo

tamanho imigo de mim?




SÁ  de Miranda. "Comigo me desavim". In:_____. Obras completas, vol.I. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976.


9.8.21

Paul Verlaine: "Le bruit des cabarets..." / "A voz dos botequins..."

 



A voz dos botequins...


A voz dos botequins, a lama das sarjetas,

Os plátanos largando no ar as folhas pretas,

O ônibus, furacão de ferragens e lodo,

Que entre as rodas se empina e desengonça todo,

Lentamente, o olhar verde e vermelho rodando;

Operários que vão para o grêmio fumando

Cachimbo sob o olhar de agentes de polícia,

Paredes e beirais transpirando imundícia,


A enxurrada entupindo o esgoto, o asfalto liso,

Eis meu caminho -- mas no fim há um paraíso.








Le bruit des cabarets...

Le bruit des cabarets, la fange du trottoir,

Les platanes déchus s'effeuillant dans l'air noir,

L'omnibus, ouragan de ferraille et de boues,

Qui grince, mal assis entre ses quatre roues,

Et roule ses yeux verts et rouges lentement,

Les ouvriers allant au club, tout en fumant

Leur brûle-gueule au nez des agents de police,

Toits qui dégouttent, murs suintants, pavé qui glisse,


Bitume défoncé, ruisseaux comblant l'égout,

Voilà ma route -- avec le paradis au bout.







VERLAINE, Paul. "Le bruit des cabarets..." / "A voz dos botequins...". In: Poetas de França. Trad. de Guilherme de Almeida. São Paulo: Babel, 1965.


6.8.21

Antonio Cicero: "Merde de poète"

 



Merde de poète


Quem gosta de poesia "visceral",

ou seja, porca, preguiçosa, lerda,

que vá ao fundo e seja literal,

pedindo ao poeta, em vez de poemas, merda.





CICERO, Antonio. "Merde de poète". In:_____ A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

4.8.21

Percy Shelley: "Sonnet: to Wordsworth" / "Soneto: a Wordsworth": trad. por Adriano Scandolara

 



Soneto: a Wordsworth


Poeta da Natureza, o dissabor

choraste, que o que parte não regressa:

viço, amizades, o primeiro amor,

só doces sonhos, que a tua mágoa expressa.

Tais dores também sinto. Uma delas

tu a sentiste, mas só eu a lamento.

Lançaste luz, mais erma das estrelas,

em frágil barca, ao hibernal relento:

resististe, rochoso bastião,

contra a cega e violenta multidão:

na pobreza mais nobre, dedicaste

o teu canto à verdade e liberdade, —

e eis-me de luto, porque as desertaste,

que, por tal razão, deixes-nos saudade.






Sonnet: to Wordsworth


Poet of Nature, thou hast wept to know

That things depart which never may return:

Childhood and youth, friendship and love's first glow,

Have fled like sweet dreams, leaving thee to mourn.

These common woes I feel. One loss is mine

Which thou too feel'st, yet I alone deplore.

Thou wert as a lone star, whose light did shine

On some frail bark in winter's midnight roar:

Thou hast like to a rock-built refuge stood

Above the blind and battling multitude:                                  

In honoured poverty thy voice did weave

Songs consecrate to truth and liberty, --

Deserting these, thou leavest me to grieve,

That having been, that thou shouldst cease to be.









SHELLEY, Percy. "Sonnet: to Wordsworth" / "Soneto: a Wordsworth". In:_____ Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. por Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

2.8.21

Marco Lucchesi: "Dalet"

 



Dalet



Mil 

rostos


nas sombras

do nada


descansam 

sseus olhos


e sangram

palavras...


as 

luminescentes


pupilas 

antigas


apagam

o fogo


nas águas

lustrais...


mil

rostos


descansam

os ohos


nas sombras

do nada


enquanto 

mil pedras


enquanto

mil homens


se perdem 

no abismo


por causa 

de um rosto





LUCCHESI, Marco. "Dalet". In:_____ "Alma Vênus". In:_____ Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 2000.