30.5.10

Heidegger, Descartes e a razão




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 28 de maio:



Heidegger, Descartes e a razão


EM ARTIGO intitulado "Irracionalismo", publicado há duas semanas nesta coluna, observei que, paradoxalmente, uma das explicações para a enorme influência de Heidegger sobre tantos intelectuais franceses parece ser justamente o seu feroz anticartesianismo.

Além disso, relacionei o irracionalismo que identifico nesses intelectuais "pós-modernistas" com a relativização a que o autor de "Caminhos de floresta" tenta submeter o próprio conceito de razão.

Quarta-feria desta semana, o sr. Maurício Tuffani publicou, na seção “Tendências e Debates” da Folha um artigo intitulado "O tabu em torno da razão" [que também se encontra em seu blog, aqui: http://laudascriticas.wordpress.com/2010/05/26/tabu/], em que, por um lado, afirma ser indevida minha atribuição a Heidegger de um feroz anticartesianismo e, por outro lado, pretende questionar minha crítica à tentativa heideggeriana de relativizar a razão. Tomo-o como ocasião para melhor explicar o que penso.

Confesso que o artigo me surpreendeu. Supõe-se que alguém que se arvore em defensor de determinado autor tenha um grande interesse nele, de modo que, além de ter lido ao menos algumas de suas obras, conheça e admire o teor geral do seu pensamento.

Ora, as palavras do sr. Tuffani evidenciam que ele não conhece bem a obra do autor que pretende socorrer. Não há outra explicação possível para sua declaração de que, em relação a Heidegger, "não faria sentido o rótulo "anticartesianismo", mesmo sem o adjetivo "feroz'"."

Digo isso porque um dos pontos em torno dos quais há praticamente consenso entre os comentadores de Heidegger é exatamente quanto ao caráter anticartesiano da obra do "Mestre da Floresta Negra". É que Heidegger considera Descartes o fundador da metafísica moderna da subjetividade. Essa metafísica, segundo ele, leva às últimas consequências aquela que, iniciada na antiguidade, com Platão, identifica-se com o que o autor de "Ser e tempo" considera o "esquecimento do ser". Heidegger pensa, ademais, que toda a filosofia moderna, inclusive a de Nietzsche, é refém da interpretação cartesiana do ente e da verdade. Ora, o pensamento de Heidegger pretende lutar exatamente contra esse esquecimento, do qual supõe decorrer o niilismo moderno, "o sombreamento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do ser humano, a suspeita rancorosa contra tudo o que é criador e livre". É evidente, portanto, que tal pensamento não poderia deixar de se constituir fundamentalmente contra a interpretação cartesiana do ente e da verdade: ergo, contra Descartes.

Naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo. E embora, ao contrário do que o sr. Tuffani afirma, Heidegger nem sequer mencione Descartes no parágrafo 24 de "Ser e tempo", ele dedica os parágrafos 19, 20 e 21 do livro – e incontáveis parágrafos dessa e de outras obras – a atacar o filósofo francês.

Se isso não bastar para qualificar de "feroz" o anticartesianismo de Heidegger, lembro que ele, em "As questões fundamentais da filosofia", queixa-se da importância que é dada, nas universidades alemãs, ao estudo de Descartes, pois assegura que esse filósofo representa "o início de uma mais ampla decadência fundamental da filosofia".

No meu artigo, eu dera um exemplo da tentativa de Heidegger de relativizar o conceito de razão, tal como empregado pela tradição filosófica. Tentando rebater-me, o sr. Tuffani diz que "Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas". Ora, o que é recusar uma coisa como absoluta senão relativizá-la?

Concluindo seu artigo, o sr. Tuffani, citando a tese de Nietzsche de que toda filosofia esconde intenções morais, afirma que as minhas, sejam quais forem, "parecem fazer do questionamento da razão um tabu".

Primeiro, confesso não entender como alguém que pense desse modo não tenha explicitado as intenções morais que o predispõem contra a defesa da razão.

Segundo, observo que o questionamento da razão não é um tabu; contudo, como todo questionamento é feito pela própria razão, é evidente que esta, ao se questionar, não pode deixar de se afirmar.

Terceiro, chamo atenção para o fato de que defender a razão, assim como defender a liberdade de pensamento contra o dogma, o obscurantismo e o irracionalismo já constitui indiscutível obrigação moral.

26.5.10

Arnaldo Antunes: "margem"




qual

mar

gem

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gem

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fico

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o o

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ANTUNES, Arnaldo. N. D. A. São Paulo: Iluminuras, 2010.

23.5.10

John Keats: trecho do poema "Endymion": trad. p. Augusto de Campos





Endymion (trecho)

O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.


Endymion (trecho)

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.



KEATS, John. "From Endymion" / "Do Endymion". In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats: Entreversos. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Editora Unicamp, 2009.

21.5.10

Paul Celan: "Stehen" / trad. Raquel Abi-Sâmara




RESISTIR, à sombra
da ferida aberta no ar.

Resistir-por-ninguém-e-por-nada.
Irreconhecido,
para ti
somente.

Com tudo o que aí tem lugar,
mesmo sem
linguagem.



STEHEN, im Schatten
des Wundenmals in der Luft.

Für-niemand-und-nichts-Stehn.
Unerkannt,
für dich
allein.

Mit allem, was darin Raum hat,
auch ohne
Sprache.




CELAN, Paul. "Stehen". Trad. Raquel Abi-Sâmara. In: GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu? Trad. Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

19.5.10

Gastão Cruz: "O que fez sentido"




O que fez sentido


Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido




CRUZ, Gastão. Escarpas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

16.5.10

Irracionalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo", no sábado, 15 de maio:



A HISTÓRIA da filosofia clássica -e, em particular, da metafísica- ocidental pode ser entendida como o desenvolvimento gradual de uma crítica radical, feita pela razão, à autoridade tanto da tradição quanto do carisma. Descartes, por exemplo, como dizia Alexandre Koyré, preparou "a mais formidável arma de guerra contra a autoridade e a tradição". Kant afirmava que absolutamente tudo devia ser submetido à crítica, sob pena de perder a credibilidade.

Ora, quem acredita nas narrativas de intelectuais "pós-modernistas", como Foucault, Derrida, Deleuze ou Agamben, supõe que os filósofos clássicos e, sobretudo, Descartes produziram um pensamento conservador e repressivo.

Penso que, em grande parte, isso se deve à influência de Heidegger. É verdade que Deleuze não se refere tanto a ele quanto os outros acima citados, mas, ao tentar liquidar o conceito de sujeito, ele prossegue o gesto de Heidegger, como observa Agamben, para quem "a história das relações entre Heidegger e Deleuze -também via Blanchot, trâmite de muito heideggerianismo inconsciente na filosofia francesa contemporânea- ainda tem que ser feita".

Foi através de intelectuais franceses que Heidegger readquiriu, e até superou, seu prévio prestígio intelectual. Paradoxalmente -mas também compreensivelmente-, em parte isso talvez tenha a ver justamente com o feroz anticartesianismo do seu pensamento.

Suponho que não sejam poucos os estudantes franceses que se sintam oprimidos e enojados pelo consenso nacional e secular em torno de Descartes e pela obrigação de conhecer de trás para a frente as "Regras", o "Discurso", as "Meditações", os "Princípios". Heidegger os vinga, pois acusa Descartes de ter inaugurado a metafísica moderna da subjetividade.

Segundo Heidegger, a partir do cogito, de Descartes, o "eu" humano torna-se o único sujeito, para o qual todas as demais coisas são reduzidas a objetos. Concebido como autoconsciência, o sujeito é interiorizado e fechado, ou oposto ao mundo, exceto na medida em que este lhe possa ser instrumental.

Para Heidegger, essa instrumentalização do mundo, em que todas as coisas e, em última análise, os próprios seres humanos viram meros dispositivos, manifesta-se tanto no mundo terrorista do socialismo real e do nazismo quanto no que considera a desolação espiritual dos EUA.

Mas me parece que o namoro desses intelectuais franceses de esquerda com Heidegger tem, mais ainda, a ver com o fato de que, dadas as revelações sobre os regimes terroristas de Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot etc., e dado o colapso da União Soviética, tenha-lhes parecido preferível abandonar de cabeça erguida o marxismo, trocando-o por um modo de pensar pretensamente ainda mais radical do que ele.

Com certeza, a filosofia de Heidegger lhes pareceu pelo menos tão capaz quanto a de Marx, tanto de diagnosticar (mas com maior "profundidade") a realidade (tida por eles como insuportável) do mundo capitalista e liberal em que vivemos, quanto de desprezá-la.

Além disso, é possível, com Heidegger, desdenhar (mas, igualmente, com argumentos mais "profundos") não só o que, desde o marxismo, esses intelectuais, em maior ou menor medida, já haviam considerado como o embuste da democracia, dos direitos humanos etc., mas também o humanismo, o conceito de homem, de sujeito, a razão.

De fato, Heidegger, por meio de um de seus famosos passes etimológicos, chega a tentar relativizar o conceito de razão ("ratio"), tal como empregado pela tradição filosófica, considerando-o como mais superficial do que o seu sinônimo alemão, ("Vernunft"), com o argumento infame de que este, derivado do verbo "vernehmen", "escutar", seria mais "auscultante" do que aquele...

A desqualificação da tradição filosófica não poderia mesmo deixar de se acompanhar de uma desqualificação da razão, uma vez que essa tradição consistiu exatamente no desdobramento da razão ao ponto máximo de sua ambição. Em Deleuze, Foucault e Derrida, o irracionalismo de esquerda é ainda envergonhado e não ousa dizer o seu nome.

Mas hoje, com Alain Badiou, por exemplo, ele é descarado. Vitalista, voluntarista e fideísta, como convém a um irracionalista, Badiou, emulando o apóstolo Paulo, prefere os acontecimentos milagrosos à racionalidade, a verdade dogmática à argumentação, a fé à razão.

E, segundo seu camarada Slavoj Zizek, "a força incomparável do pensamento de Badiou supera de longe tudo o que se publicou na França nos últimos anos". Pobre França!

10.5.10

Cecília Meireles: "Anoitecer"




Anoitecer

Ao longo do bazar brilham pequenas luzes.
A roda do último carro faz a sua última volta.
Os búfalos entram pela sombra da noite,
onde se dispersam.

As crianças fecham os olhos sedosos.
As cabanas são como pessoas muito antigas,
sentadas, pensando.

Uma pequena música toca no fim do mundo.

Uma pequena lua desenha-se no alto do céu.

Uma pequena brisa cálida
flutua sobre a árvore da aldeia
como o sonho de um pássaro.

Oh, eu queria ficar aqui,
pequenina.



MEIRELES, Cecília. "Poemas escritos na Índia". Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.

8.5.10

Paulo Henriques Britto: "Acalanto"




Agradeço ao Robson Ribeiro por me ter lembrado de "Acalanto", um dos poemas de que mais gosto do livro "Macau", do Paulo Henriques Britto.


Acalanto

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.




BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

5.5.10

José Almino: A estrela fria II





A estrela fria II

Vieste em meio aos livros infantis
na tepidez das chuvas estivais
ao gosto vivo dos fonemas claros
na rima simples dos quintais.
Duraste a amplidão de uma tarde cara
e a minha sina te acolheu, tão viva
e a minha vida te abraçou, tão rara.
Ali, entre aventuras coloridas
no azul do mais azul dos sóis a pino
sagrou-se o meu destino; mais um pouco:
um certo jeito de sorrir que eu tinha
e o doce mandato da alegria
que vez por outra me acalenta a alma.



ALMINO, José. A estrela fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

2.5.10

A ideologia marxista hoje




O seguinte texto é uma versão um pouco mais longa do artigo que foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 1º de maio.


A ideologia marxista hoje


JÁ CITEI uma vez, nesta coluna, a observação do filósofo Theodor Adorno no ensaio "As Estrelas Descem à Terra" de que, ao semierudito, "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais supõe pertencer a uma minoria que está "por dentro'". Na época, mostrei que tal descrição convém também à ideologia religiosa do apóstolo Paulo, assim como à de Martinho Lutero. Pois bem, o fato é que ela se aplica igualmente bem a ideologias seculares, tais como o marxismo vulgar.

Embora tencione dar uma chave para o entendimento do mundo, como uma religião, o marxismo, longe de se tomar como religião, considera-se inteiramente racional, declarando-se tanto filosofia quanto ciência da história e da sociedade. Isso faculta ao semierudito ter-se, do ponto de vista cognitivo, como superior também aos eruditos que, por diferentes razões, não tenham adotado a concepção marxista.

Como, além disso, essa concepção do mundo quer fundamentar uma teoria revolucionária, tendo em vista a superação do capitalismo e a instauração do comunismo, sociedade em que pretende que não haverá mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, os marxistas, já pelo simples fato de se posicionarem a favor de tal revolução, consideram-se, a priori, superiores, também do ponto de vista ético, a todos que não o tenham feito.

Para esse modo de pensar, o mundo existente, em que domina o modo de produção capitalista, é inteiramente degradado. Nele, qualquer progresso é tido como meramente adjetivo, quando não fictício. A democracia existente -qualificada de "burguesa"- não é valorizada senão enquanto caminho para a revolução. Só esta deverá trazer um progresso real.

Hoje, porém, nem os marxistas podem pretender saber como se daria a superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em "socialismo". Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representaria sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se deu, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será realmente possível identificar a estatização com o socialismo, que seria a transição para o comunismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que "quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge". Dado que a propriedade estatal dos meios de produção não garante a posse real deles pelos trabalhadores, ela é capaz de não passar de uma forma de capitalismo de Estado. A superação do capitalismo somente se daria quando a sociedade, aberta e diretamente, sem a intermediação do Estado, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a instauração do socialismo (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, o marxista Alain Badiou reconhece que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa pode ser entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas [nos países socialistas] ela se encontra no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube realmente– como se daria tal superação.

Contudo, só a miopia ideológica impede de ver que, embora a "Revolução" se tenha revelado um beco sem saída, o mundo em que vivemos encontra-se em fluxo incessante; e que a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. -que constituem exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão- constituem também as verdadeiras condições para torná-lo melhor.