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12.6.10

Resposta a Maurício Tuffani

Resposta a Maurício Tuffani


Lembro aos leitores que, em 15/05, escrevi um artigo, na Folha de São Paulo, intitulado “Irracionalismo” em que, entre outras coisas, especulo que, paradoxalmente, uma das razões para a popularidade de Heidegger entre os intelectuais franceses pós-modernistas tem a ver com o seu feroz anticartesianismo.

A partir disso, Maurício Tuffani escreveu, no mesmo jormal, um artigo afirmando, sem nenhum fundamento, que Heidegger não era sequer anticartesiano.

Em resposta, mostrei – creio que de modo claro, apesar de sucinto – que o anticartesianismo não é episódico, mas estrutural ao pensamento de Heidegger, de modo que este ficaria sem dúvida horrorizado com essa malograda tentativa de “salvá-lo” do anticartesianismo. Ademais, chamei atenção para o fato de que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano. Caberia, portanto, a meu adversário refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que pensam o contrário (não valeriam textos em que Heidegger parece RESPEITAR Descartes, pois, como observo no mesmo artigo, “naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”).

Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.

Mas onde está a banalização da filosofia? “Está”, segundo Tuffani, “no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. É disso que ele me acusa. Há dois problemas nessa acusação. O primeiro é que ele não cita nenhum exemplo concreto do meu suposto afã banalizador; o segundo é que ele se esquece de que o próprio Heidegger, o filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”...

Ou será que, para Tuffani, estou banalizando Heidegger ao chamá-lo de “anticartesiano”? Creio que se eu tivesse escrito um artigo para provar que Heidegger era “anticartesiano”, isso seria, para os filósofos – embora não para os leigos – banal, uma vez que uma verdade muito repetida é banal. Contudo, o tema do meu primeiro artigo não foi esse. Só toquei nesse assunto porque minha intenção era mostrar a curiosa relação entre o anticartesianismo de Heidegger e sua popularidade entre intelectuais franceses; e, no segundo artigo, só falei do anticartesianismo exatamente porque Tuffani questionara – e, para ser sincero, penso que ele simplesmente ignorava – o fato de que Heidegger era anticartesiano.

No mais, como digo que Heidegger tentou relativizar a razão, Tuffani afirma que não notei que ele “contestara essa rotulação” (sic) no parágrafo 6 de “Ser e tempo”. Engano dele: já em “O mundo desde o fim”, de 1995 (p.96-7 da edição brasileira ou p.89 da edição portuguesa), eu ironizava a pretensão de Heidegger no § 6, dizendo:

“Negando que tenha a pretensão de efetuar uma "má relativização" (schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma "comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como exposição investigadora das suas 'certidões de nascimento'", tendo em vista "delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas"; e complementa: "e isso sempre quer dizer em seus limites". Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos -- para nós, noético-ontológicos – fundamentais”.

Quanto à atitude de Heidegger em relação a Descartes, em “A questão fundamental da filosofia”, não é verdade que, como Tuffani afirma, o “alvo” dele fosse apenas a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Heidegger diz, efetivamente, que a importância atribuída a Descartes é sinal de falta de pensamento e irresponsabilidade das universidades alemãs e, logo depois, explica:

“COM O PROPÓSITO DE DETERMINAR A POSIÇÃO REAL DE DESCARTES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, NO TOCANTE ÀS QUESTÕES FUNDAMENTAIS, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, AFIRMO O SEGUINTE:

“1. A RADICALIDADE DA DÚVIDA DE DESCARTES E O VIGOR DA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSFIA E DO SABER EM GERAL É UMA APARÊNCIA E, ASSIM, FONTE DE ILUSÕES FATAIS, HOJE MUITO DIFÍCEIS DE SEREM ELIMINADAS.

“2. ESSE PRETENSO NOVO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA MODERNA, COM DESCARTES, NÃO APENAS NÃO CONSISTE, COMO É, SOBRETUDO, O INÍCIO DE MAIS UMA DECADÊNCIA DA FILOSOFIA. DESCARTES NÃO LEVA A FILOSOFIA DE VOLTA PARA SI MESMA, PARA SEU FUNDO E SEU CHÃO, MAS A DISTANCIA MAIS AINDA DO QUESTIONAMENTO DA QUESTÃO FUNDAMENTAL” (Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Ed. Vozes, 1007.

Segundo Tuffani, “Verfall” (“decadência”) não exprime, para Heidegger, qualquer avaliação negativa. Novamente, ele confunde as coisas. Segundo Heidegger, o termo “Verfall” não exprime qualquer avaliação negativa quando aplicado ao “Dasein”, isto é, ao ser humano situado no mundo. Observo, en passant, que, na verdade, é altamente questionável que palavras como “decadência”, e “inautenticidade” possam ser usadas sem carga valorativa. Como diz Adorno em Die Jargon der Eigentlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1964, p.81): “As expressões terminologicamente escolhidas não se esgotam nos seus usos que são escolhidos com liberdade subjetiva, mas – e Heidgger, o filósofo da linguagem, devia ser o primeiro a concordar – conservam como seu conteúdo objetivo as normas das quais Heidegger as separa”. De todo modo, é verdade que separá-las das suas cargas valorativas é, de fato, o que Heidegger diz PRETENDER, no livro Ser e tempo, de 1927.

Depois disso, porém, e fora desse contexto, Heidegger continuou a empregar a palavra “Verfall” – “decadência” – pejorativamente, como todo o mundo. O texto sobre Descartes como decadente é de 1933-34. Pela mesma época, em Introdução à metafísica, de 1935, por exemplo, Heidegger declara que “a decadência espiritual da terra já foi tão longe que os povos estão ameaçados de perderem a última força espiritual que lhes permite ver e avaliar enquanto tal a decadência”.

Se Tuffani não percebe a carga pejorativa do vocábulo “decadência” nesse texto, então receio que, se não no que diz respeito à terra como um todo, ao menos no que diz respeito a ele essas palavras de Heidegger foram proféticas.

Em suma, nenhuma das acusações de Tuffani contra mim tem procedência.