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6.7.21

José Régio: "Testamento do poeta"

 



Testamento do poeta



Todo esse vosso esforço é vão, amigos:

Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.

Demais, já desisti de quaisquer portos;

Não peço a vossa esmola de mendigos.


O mesmo vos direi, sonhos antigos

De amor! olhos nos meus outrora absortos!

Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,

Que fostes o melhor dos meus pascigos!


E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje

Que tudo e todos vejo reduzidos,

E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.


Para reaver, porém, todo o Universo,

E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....

Basta-me o gesto de contar um verso.




RÉGIO, José. "Testamento do poeta". In: BERARDINELLI, Cleonice (org.).Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

9.11.20

José Régio: "Momento"

 



Momento


Quem, nos meus olhos ardentes,

Na minha testa cansada,

Perpassa os dedos clementes,

Poisa a mão fresca orvalhada...?


Talvez a brisa da tarde,

Que passa, e não faz alarde...


Talvez a brisa da tarde!


Sim, só a brisa; e mais nada.







RÉGIO, José. "Momento". In:_____. Antologia. Org. por Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.











9.5.18

Eugénio de Andrade: "As mãos e os frutos"



As mãos e os frutos

Shelley sem anjos e sem pureza,
Aqui estou à tua espera nesta praça,
Onde não há pombos mansos mas tristeza
E uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
Das casas não vale a pena porque estão
Gastas pelo relógio e pelas luas
E pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
Que dizer-te desta história de maneira
Que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
Tecendo estes versos e a noite
Que te há-de trazer e nos há-de deixar sós.




ANDRADE, Eugénio de. "As mãos e os frutos". In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Cinco séculos de sonetos portugueses: de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

4.9.16

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: "Mestre, meu mestre querido!"


No domingo passado, no dia 28 de agosto deste ano, a querida Professora Cleonice Berardinelli completou cem anos. Para homenageá-la, publico aqui um poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, "Mestre, meu mestre querido!", que a Professora Cleonice, em um dos excelentes ensaios de seu livro Fernando Pessoa: outra vez te revejo... (Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004), declarou ser "poema perfeito e completo":



Mestre, meu mestre querido!

Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.




PESSOA, Fernando. "Mestre, meu mestre querido!". In:_____. "Ficções do interlúdio / Poesias de Álvaro de Campos". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.  

6.2.14

Eugénio de Andrade: "Soneto menor à chegada do verão"





Soneto menor à chegada do verão

Eis como o verão
Chega de súbito,
Com seus potros fulvos,
Seus dentes miúdos,

Seus múltiplos, longos
Corredores de cal,
As paredes nuas,
A luz de metal,

Seu dardo mais puro
Cravado na terra,
Cobras que despertam
No silêncio duro –

Eis como o verão
Entra no poema.



ANDRADE, Eugénio de. In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

6.8.13

Sophia de Mello Breyner Andresen: "Soneto de Eurydice"







Soneto de Eurydice

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.



ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.