30.12.17

Inês Pedrosa: "Delito de Opinião"



Fiquei muito feliz ao ver que, no seu excelente blogue, “Delito de Opinião” -- cujo endereço é http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/ -- a grande escritora portuguesa Inês Pedrosa havia escolhido o nosso “Acontecimentos” como o “Blogue da Semana”

E ainda mais feliz fiquei com as generosas palavras que ela dedicou tanto ao blogue quanto a mim. Viva Inês Pedrosa! Eis suas palavras:


“Acontecimentos” é o título do excelentíssimo blogue que o poeta e filósofo brasileiro Antonio Cicero mantém há dez anos. Nele encontramos sobretudo poesia (a dele e a de muitos outros grandes poetas) e reflexões sobre poesia: trata-se de um blogue dedicado ao que realmente acontece para lá da superfície, do acontecimento contrário à trovoada de irrelevâncias em que tantas vezes nos deixamos submergir. Vale a pena procurar os textos das crónicas que escreveu para a Folha de São Paulo (por exemplo, nas entradas "barbárie", "civilização" e "direitos humanos"), desmontando, com lucidez, saber e arte, a mitologia contemporânea do relativismo cultural. Encontram-se também textos e entrevistas de outros autores (como o seu muito amigo Caetano Veloso) sobre estes temas. Antonio Cicero é, além de um poeta de altíssima qualidade, um dos filósofos mais estimulantes e argutos do nosso tempo. Como bónus, o poeta a dizer um dos seus mais belos poemas, aqui .      



27.12.17

Antonio Cicero: "Medusa"


  

Medusa

Cortei a cabeça da Medusa
por inveja. Quis eu mesmo o olhar
sem olhos que vê e se recusa
a ser visto e desse modo faz
das demais pessoas pedras: pedras
sim, preciosas, da mais pura água,
onde o olhar mergulha até a medula,
diáfanas, translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes. Na verdade
estes meus olhos provêm de carne
de mulher, não do nada imortal
da divindade. Como encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim, lembrei ser mortal
ela também: e seu pai é um deus
do mar mas eu sou filho de Zeus.
Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei emprestado o espelho
da minha irmã e adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio, vendo
tudo por reflexos: o seu corpo
em terceiro plano, atrás de heróis
de pedra e dos meus olhos esconsos
em primeiríssimo. Eis o corte
da lâmina especular: do lado
de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro
lado eu, olho olhado, olho enviesado
e rosto e corpo entre muitos corpos,
um dos quais o dela. A mesma lâmina
decapitou-a também: do lado
de cá guardo seu olhar e faina;
e lá jaz seu vulto desalmado.
Mas nada é tão simples. Do pescoço
cortado nasceu um cavalo de asas
(é que o deus do mar a engravidara)
e mergulhou no horizonte em fogo
crepuscular. Contam que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma fonte.
A ser não sendo, de madrugada
levanto com sede dessa água.




CICERO, Antonio. "Medusa". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

24.12.17

Carlos Drummond de Andrade: "Receita de ano novo"




Receita de ano novo

                 
Para você ganhar belíssimo Ano-Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano-Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior),
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegrama?).
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano-Novo
cochila e espera desde sempre.
  



ANDRADE, Carlos Drummond de. "Receita de ano novo". In:_____. Receita de primavera e alguns sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2914.

19.12.17

Rainer Maria Rilke: "Der Panther" / "A pantera": trad. de Augusto de Campos



A pantera
                        No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.




Der Panther

                                   Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden, daß er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein großer Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf — Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille —
und hört im Herzen auf zu sein.



RILKE, Rainer Maria. "Der Panther". Trad. de Augusto de Campos In: Coisas e anjos de Rilke. 130 poemas traduzidos. Trad. e org. de Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2013.

16.12.17

Alex Varella e Antonio Cicero: Poemas lidos no MAM



Os poemas lidos na aula "Como ler poesia", dada por Alex Varella e Antonio Cicero no MAM do Rio de Janeiro foram os seguintes:


Alex Varella: “Água marinha” 
Alex Varella: “A invenção do nome” 
Alex Varella: “A paixão do olhar”
Alex Varella: “Negra grega”      
Alex Varella: “O pintor da paleta do mar”
Alex Varella: “O pombo flaneur”
Antonio Cicero: “Consegui”
Antonio Cicero: “Dilema”
Antonio Cicero: “Museu de Arte Contemporânea”
Antonio Cicero: “Prova”
Antonio Cicero: “Virgem”
Carlos Drummond de Andrade: “Os inocentes do Leblon”
Carlos Pena Filho: “Soneto do desmantelo azul”
Carlos Pena Filho: “Olinda”
Carlos Pena Filho: “Pedro Álvares Cabral”
Décio Escobar: “Vicente”      
Eugênio de Andrade: “frutos”
Fernando Pessoa: “O Tejo”
Ferreira Gullar: “A galinha”        
Ferreira Gullar: “Anoitecer em outubro”
Ferreira Gullar: “Galo galo”
Ferreira Gullar: “Sete poemas portugueses, nº 4”
João Cabral de Melo Neto: “A mulher e a casa”
João Cabral de Melo Neto: “Paisagem pelo telefone”
Paulo Leminski: “Adeus coisas que nunca tive”
Ricardo Silvestrin: “Não quero mais de um poeta”
Sosígenes Costa: “Pavão vermelho”



14.12.17

Marina Lima e Antonio Cicero: show "Dois Irmãos"



No dia 6 de julho deste ano, Marina e eu apresentamos, no palco do projeto Unimúsica, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre, um show intitulado "Dois Irmãos". O Unimúsica acaba de colocá-lo no YouTube. Ei-lo: 


12.12.17

Mário Quintana: "Aula inaugural"



Aula inaugural

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na guerra
                                                                             [do Paraguai…
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia, não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança como David diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas…
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.
(Sabem todas as almas perdidas…)
O solene canto é um archote nas trevas.
(Sabem todas as almas perdidas…)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta.
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa rugir o Caos atônito…



QUINTANA, Mário. "Aula inaugural". In:_____. Nova antologia poética. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

11.12.17

Anônimo: "Traum" / "Sonho mau": trad. Geir Campos



Sonho mau

Esta noite sonhei
Um pesadelo assim:
– Em me jardim crescia
Um pé de alecrim;

Cemitério, o jardim;
A cova era um canteiro;
Flores, botões caíam
Do verde alecrineiro;

As flores coloquei
Juntas num jarro de ouro
Que me caiu dasmãos
E em cacos se quebrou;

Vi então correrem pérolas
E aljôfar cor-de-rosa...
Que quer dizer atl sonho?
Ah, Amada, estarás morta?




Traum

Ich hab die Nacht geträumet
Wohl einen schweren Traum,
Es wuchs in meinem Garten
Ein Rosmarienbaum.

Ein Kirchhof war der Garten
Ein Blumenbeet das Grab,
Und von dem grünen Baume
Fiel Kron und Blüte ab.

Die Blüten tät ich sammeln
In einen goldnen Krug,
Der fiel mir aus den Händen,
Daß er in Stücken schlug.

Draus sah ich Perlen rinnen
Und Tröpflein rosenrot:
Was mag der Traum bedeuten?
Ach Liebster, bist Du tot?




Anônimo. "Traum". In: CAMPOS, Geir. O livro de ouro da poesia alemã (em alemão e português). Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

9.12.17

Torquato Neto e Jards Macalé: "Let's play that"




Let’s play that

Quando eu nasci
Um anjo louco muito louco
Veio ler a minha mão
Não era um anjo barroco
Era um anjo muito louco, torto
Com asas de avião
Eis que esse anjo me disse
Apertando minha mão
Com um sorriso entre dentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Let's play that




NETO, Torquato. "Let's play that". In: MORICONI, Ítalo (org.). Torquato Neto essencial. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


Canção: Jards Macalé canta a canção "Let's play that", parceria dele (música) com Torquato Neto (letra):


7.12.17

Sylvia Beirute sobre a poesia de Antonio Cicero



Fiquei feliz com a análise crítica que a poeta portuguesa Sylvia Beirute fez da poesia que escrevo. Fica aqui: http://sylviabeirute.blogspot.com.br/2010/11/antonio-cicero-poemas-poesia-analise.html.

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Fernando Pessoa: "Nesta vida, em que sou meu sono"



Nesta vida, em que sou meu sono

Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono.
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.

Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhou,
A Presença Real sob o disfarce
Da minha alma presente sem intento.



PESSOA, Fernando. "Nesta vida em que sou meu sono". In:_____. Poesias inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática, 1955.

6.12.17

José Mário Pereira: "O que é um texto literário bom?"



O que é um texto literário bom?

É aquele que se lê com agrado e que convoca à reflexão. Um bom autor maneja bem os recursos de sua língua, e dialoga ao mesmo tempo com a tradição e com os seus contemporâneos.



PEREIRA, José Mário. Entrevista à revista Cândido. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, dezembro de 2017.

4.12.17

Dylan Thomas: "And death shall have no dominion" / "E a morte não terá domínio"



Eu já havia publicado o extraordinário poema "And death shall have no dominion", de Dylan Thomas, e a bela tradução de Augusto de Campos, mas agora resolvi republicá-los, colocando, entre o original e a tradução, um vídeo, retirado do YouTube, em que se ouve a voz de Dylan Thomas. Leiam e ouçam:



And death shall have no dominion

And death shall have no dominion.
Dead man naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan't crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Though they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.










E a morte não terá domínio

E a morte não terá domínio.
Nus, os mortos há de ser um.
Com o homem ao léu e a lua em declínio.
Quando os ossos são só ossos que se vão,
Estrelas nos cotovelos e nos pés;
Mesmo se loucos, há de ser sãos,
Do fundo do mar ressuscitarão
Amantes podem ir, o amor não.
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Sob os turvos torvelinhos do mar
Os que jazem já não morrerão ao vento,
Torcendo-se nos ganchos, nervos a desfiar,
Presos a uma roda, não se quebrarão,
A fé em suas mãos dobrará de alento,
E os males do unicórnio perderão o fascínio,
Esquartejados não se racharão
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Os gritos das gaivotas não mais se ouvirão
Nem as ondas altas quebrarão nas praias.
Onde uma flor brotou não poderá outra flor
Levantar a cabeça às lufadas da chuva;
Embora sejam loucas e mortas como pregos,
Testas tenazes martelarão entre margaridas:
Irromperão ao sol até que o sol se rompa,
E a morte não terá domínio.




THOMAS, Dylan. "And death shall have no dominion" / "E a morte não terá domínio". Trad. Augusto de Campos. In:_____. CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.




2.12.17

Francisco Alvim: "Disseram na Câmara"



Disseram na Câmara

Quem não estiver seriamente preocupado e
perplexo
não está bem informado




ALVIM, Francisco. "Disseram na Câmara". In:_____. Poemas [1968-2000]. São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac Naify/7 Letras, 2004.