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15.10.20

Antonio Cicero: "As Musas, a Memória e o esquecimento"

 



As Musas, a Memória e o esquecimento

  

Vivemos numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.

Acontece que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.

E como ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas, como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.

Pois bem, penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.

A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, ao princípio do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.

Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.

Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana e nos libertarmos da prisão utilitária do mundo do desempenho é quando nos deixamos levar a viajar por uma obra de arte: a viajar, por exemplo, através de um poema. Ao viajar por um poema, deixamos de lado o princípio do desempenho e apreendemos a vida em si.

As Musas eram tidas pelos gregos como filhas da deusa Memória. Normalmente, supõe-se que isso signifique que elas guardam o passado. Penso que a leitura dos poetas gregos mostra o contrário. O que o fato de que as Musas sejam filhas da Memória significa é que aquilo que elas produzem seja inesquecível: seja memorável. Assim são os grandes poemas. É isso que permite que, por exemplo, o poeta romano Horácio (que, aliás, estudou em Atenas) possa dizer, na sua Ode III.xxx, (que se encontra também em latim aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html) sobre sua poesia:

Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o Pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
 Melpómene, com o délfico louro.

 


Antonio Cicero

5.6.11

Antonio Cicero: A poesia como liberdade e experiência do ser




O seguinte artigo, em que apresento o ciclo de conferências Forma e Sentido: Poesia, que terá lugar no espaço do Oi Futuro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e será inaugurado na próxima 3ª feira, com conferência de Tzvetan Todorov, foi publicado ontem, sábado, no suplemento "Prosa e Verso", de O Globo. O leitor encontrará informações detalhadas sobre esse ciclo de conferências no seguinte endereço: http://www.formaesentido.com.br


A poesia como liberdade e experiência do ser

Curador de ciclo de palestras sobre o tema, Antonio Cicero, afirma que inutilidade do poema o torna indispensável


Vivemos numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.

Acontece que, de maneira geral, a fruição de um poema exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.

O fato é que, numa época em que todos se queixam de falta de tempo, é evidente que sobram argumentos para aqueles que pretendem não haver mais, na nossa época, lugar para a poesia. E não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo.

Pois bem, penso o contrário. É exatamente nesta época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por que? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.

A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.

Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.

Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana é quando, concedendo a um poema a concentração por ele solicitada, permitimos que ele “esbanje” o nosso tempo. Configura-se então um tempo livre, isto é, um tempo que já não se encontra determinado pelo princípio do desempenho. Afinal, a rigor, o poema não serve para nada. Ou bem a leitura de um poema recompensa a si própria, isto é, vale por si, ou bem ela não vale absolutamente nada.

É nesse tempo livre que nos deleitamos em flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não-linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. E, para tanto, deixamos que em nosso pensamento interajam e brinquem uns com os outros todos os recursos de que dispomos: razão, intelecto, experiência, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor, memória, cultura, crítica etc. Desse modo, a leitura de poesia proporciona uma apreensão alternativa – e poderosa – do próprio ser.

Em todo caso, foram semelhantes reflexões sobre o sentido da poesia no mundo contemporâneo que me motivaram a conceber uma série de palestras proferidas por alguns dos teóricos e/ou poetas que tenham pensado de modo profundo e original sobre essa questão.