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16.11.08

João Cabral e o verso livre

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 15 de novembro:



João Cabral e o verso livre

Em 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a seu colega, Vinícius de Moraes: “Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno”.

Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César Carvalho que “uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil”.

Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia.

Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o daqueles para quem tudo o que não é espontâneo – logo, tudo o que dá trabalho, tudo o que é difícil – é falso. O segundo, no qual ele mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo – logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil – é falso. Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do difícil, trabalhoso e único em poesia.

“O poeta”, disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, “é aquele que nunca aprende a escrever”. Poderíamos também dizer que o poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras do famoso “O lutador”, de Drummond: “Lutar com palavras / É a luta mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã”. O poeta luta para dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável – ou seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios méritos, independentemente de servir ou não servir para nada ulterior – feito de palavras.

A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por todo trabalho e toda técnica. A “poesia” fica assim reduzida à facilidade de uma expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa. Assim, ela exprime, espelha ou repete a vida cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo também se manifesta como o artesanato da escrita tradicional de versos. Através de estudo e exercício, o versejador é capaz de adquirir destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que fazer um “poema”, através da repetição do que é convencionalmente “poético”. Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

No fundo, o problema de Cabral era evitar todo tipo de facilidade, e não, ao contrário do que as duas citações do início deste artigo possam ter levado a crer, opor-se ao verso metrificado ou ao verso livre. Cabral achou um modo próprio de driblar tanto a facilidade dos versos livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das técnicas tradicionais. Quando jovem, ele usava versos livres, mas de um modo que – como uma vez explicou a Carlos Carvalhosa – lhe desse tanto trabalho quanto como se fosse metrificado. Mais tarde, passou a usar métrica, mas procurando evitar os ritmos associados a ela; e, embora empregasse rimas, não as fazia perfeitas, mas toantes. Naturalmente, tais soluções foram úteis para ele, mas não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que, na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar nem procedimentos tradicionais nem procedimentos experimentais, e que seria capaz de usar uns ou outros, na medida em que aumentassem, e não na medida em que aliviassem, a dificuldade do seu trabalho.

Frente às tendências contemporâneas a dissolver e diluir a poesia e a arte, talvez os poetas – e os artistas em geral – devam refletir sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra, será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo determinadas condições – pouco importa se por ele inventadas ou se tomadas de empréstimo à tradição – que, dificultando o seu trabalho, tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento, elaboração e criatividade.

11.10.08

João Cabral sobre o verso livre: em 1953 e 35 anos depois

João Cabral em 1953:

Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno. Pois a verdade é que a realidade presente é rica demais para caber nessas formas hoje requintadas e artificiais das épocas de estabilidade cultural.
Isso não se aplica, é claro, às formas da poesia popular que usam a métrica e a rima com absoluta liberdade, sem transformá-las em condição essencial e ponto de partida da criação poética.

(Entrevista a Vinícius de Moraes, Manchete, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1953)


João Cabral em 1988:

(...) Uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil.

(Entrevista a Mário César Carvalho, Folha de S,Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 24 de maio de 1988)



De: CABRAL de MELO NETO, J. ATHAÍDE, F. (Org.) Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.