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18.8.19

Antonio Cicero: Sobre "A poesia e a crítica"

Falo um pouco de poesia e da ABL na seguinte entrevista que dei para o Canal Curta, por ocasião do lançamento do meu livro A poesia e a crítica, em 2017:


23.8.17

Lúcio Carvalho: "A poesia, a crítica e um tanto mais"


Gostei também do artigo "A poesia, a crítica e um tanto mais", de Lúcio Carvalho, na revista digital "amálgama", editada por Daniel Lopes. Encontra-se aqui:
https://www.revistaamalgama.com.br/07/2017/resenha-a-poesia-e-a-critica-antonio-cicero/ 

8.1.15

Salman Rushdie sobre o ataque à Charlie Hebdo




"A religião, que é uma forma medieval de irracionalidade, quando se combina com armamentos modernos, torna-se uma ameaça real às nossas liberdades. O totalitarismo religioso tem causado uma mutação mortal no coração do Islã. Vimos as consequências trágicas disso hoje em Paris. Estou com Charlie Hebdo, como todos nós devemos estar, para defender a arte da sátira, que sempre foi uma força pela liberdade e contra a tirania, a desonestidade e a burrice. O “respeito pela religião” tornou-se um chavão que significa “medo da religião”. As religiões, como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e, sim, nossa destemida falta de respeito."



RUSHDIE, Salman. Declaração ao Wall Street Journal. 07/01/2015.

25.12.14

Francisco Bosco: de "Flashes"





O desafio da crítica é aproximar-se e distanciar-se o máximo possível da obra -- ao mesmo tempo.


BOSCO, Francisco. "Flashes". In:_____. Da amizade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

8.12.11

Thomas Jefferson: "Assenta a razão..."




Assenta a razão firmemente em seu lugar e convoca a seu tribunal todo fato, toda opinião. Questiona corajosamente até a existência de um deus; pois, se houver um deus, ele deve antes aprovar a homenagem da razão do que a do temor de olhos vendados.



JEFFERSON, Thomas. "Letter to Peter Carr, Aug. 10, 1787". Disp. no site The letters of Thomas Jefferson: 1743-1826, no URL http://www.let.rug.nl/usa/P/tj3/writings/brf/jefl61.htm.

29.10.10

Entrevista à Sibila

Está no ar a entrevista "A poesia não nasce das regras", que dei aos poetas Luis Dolhnikoff e Régis Bonvicino, da revista Sibila. O endereço é: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1338-a-poesia-nao-nasce-das-regras.

27.11.09

Caetano Veloso: trecho de entrevista

A julgar pelo ódio que se manifestou em alguns dos comentários (que não publiquei por considerá-los ofensivos) ao artigo do Ferreria Gullar que eu aqui postara na segunda-feira, Caetano Veloso tem razão no seguinte trecho da entrevista que deu a O Globo na quinta-feira, 26:


As críticas não o incomodam?

CAETANO: Eu não me incomodo, por exemplo, que esteja todo mundo me xingando porque eu disse que Lula fala como um analfabeto, como se fosse uma novidade. Não me incomodo que um monte de gente esteja me xingando, porque eu não quero a aprovação de todo mundo. Eu acho que querer a aprovação de todo mundo é péssimo. Isso é um problema. Eu acho ruim, no Brasil hoje, ninguém poder dizer nenhuma palavra que pareça ser antipática, crítica ou hostil a Lula. Por que não pode? É muito ruim, isso. Isso é um projeto que aconteceu na União Soviética, com Stálin, na China, com Mao Tsé-Tung, acontece ainda em Cuba, com Fidel. Não se pode dizer, só se pode adular o líder. Isso para mim é o que há de pior. Nesse ponto, eu nem me incomodo de o jornal ter distorcido o que eu disse, botando, na primeira página, como se eu tivesse querido agredir o Lula e compará-lo com Marina. Eu estava comparando Marina com Lula e com Obama. Como Lula, ela é de origem humilde etc; como Obama - e diferentemente de Lula -, ela escreve bem, fala bem. Lula, de fato, usa metáforas cafonas, linguagem grosseira e erra a gramática do português, a norma culta. Todo mundo sabe que é assim. Os linguistas aplaudem, o povo acha bom, eu também acho bom, eu votei em Lula chorando, para se eleger - não para se reeleger. Eu chorei dentro da cabine. Chorei de emoção. Pode ser que eu chore quando vir esse filme, porque eu chorei vendo "2 filhos de Francisco" e possivelmente chorarei vendo "Lula, o filho do Brasil". Mas talvez não chore tanto quanto chorei no dia em que votei em Lula para presidente.

26.4.09

Oscar Wilde: de "The critic as artist"

Trecho do diálogo "The critic as artist":



Nenhum poeta canta porque tem que cantar. Pelo menos, nenhum grande poeta o faz. Um grande poeta canta porque resolve cantar. É assim agora e sempre foi. Às vezes somos levados a pensar que as vozes que se ouviam na alvorada da poesia eram mais simples, mais arejadas, mais naturais que as nossas e que o mundo que os poetas primevos contemplavam e pelo qual passeavam era dotado de uma espécie de virtude poética própria que podia quase sem alteração passar à canção. Hoje a neve está acumulada no Olimpo e suas encostas íngremes e escarpadas estão ermas e estéreis, mas imaginamos que outrora os alvos pés das musas roçavam o orvalho das anêmonas pela manhã e, à noite, chegava Apolo para cantar aos pastores do vale. Mas com isso estamos apenas atribuindo a outras eras o que desejamos, ou cremos desejar, para a nossa. Nosso senso histórico é deficiente. Todo século que produz poesia é, na medida em que o faz, um século artificial, e a obra que nos parece o produto mais natural e simples da sua época é sempre o resultado do esforço mais autoconsciente. Creia-me, Ernest, não há belas-artes sem autoconsciência, e a autoconsciência e o espírito crítico são uma coisa só.



De: WILDE, Oscar. "The critic as artist". The complete works of Oscar Wilde. London and Glasgow: Collins, 1966.

7.9.08

Sobre os poemas enviados a este blog

Em comentário ao poema "Um fio do seu cabelo", do Arnaldo Antunes, Adriano Nunes escreveu: "SE FOSSE POSSÍVEL E SE VOCÊ QUISER, GOSTARÍAMOS TODOS DO BLOG, COM CERTEZA, QUE VOCÊ CRITICASSE, EXPUSESSE UM COMENTÁRIO SOBRE AS POESIAS QUE NÓS, OS BLOGUEIROS, ENVIAMOS PARA VOCÊ". Como sinto que isso é um sentimento não apenas dele, resolvi postar aqui a minha resposta:



Querido Adriano,

Obrigado pela distinção que me confere, supondo que pudesse ser de alguma valia a opinião que eu expressasse sobre os poemas que você e outros freqüentadores deste blog me enviam.

Francamente, eu gostaria de poder fazer o que você pede, mas, infelizmente, não é viável. Gosto de vários dos poemas que me enviam (inclusive seus); não gosto tanto de vários outros; mas não acho certo publicar uma opinião leviana, baseada apenas numa primeira impressão. De que vale uma primeira impressão, em matéria de poesia? Deixe-me dar um exemplo. Na década de setenta, quando eu morava na Inglaterra, ouvi elogios a um poeta inglês chamado Philip Larkin. Comprei um livro seu. Como me tinha sido recomendado por alguém cuja opinião eu prezava muito, li-o mais de uma vez. Ainda hoje o tenho, com alguns poemas marcados. Lembro-me porém de ter achado Larkin um poeta menor. Não entendi como podiam elogiá-lo tanto. Pareceu-me mesquinho, insípido, provinciano. Logo me esqueci dele. Décadas depois, no mês passado, deparei-me com uma citação de um poema de Larkin. Fiquei arrepiado. Era um grande poema. Procurei meu antigo volume. Vi que o que tinha nas mãos era um exemplar de uma obra prima. Por que se deu essa mudança em meu gosto? Mistério.

Assim, a menos que me tenha debruçado um bom tempo sobre a obra (e não apenas sobre um ou alguns poemas) de um poeta, não me sinto com o direito de desencorajá-lo, caso não aprecie o(s) texto(s) que ele enviou. Eu posso simplesmente não o(s) ter entendido por não ter sentido afinidade com o projeto poético dele: e isso, possivelmente, por uma falha minha, e não dele.

Por outro lado, lembro as palavras de Eliot: “nenhum poeta honesto jamais pode ter certeza do valor permanente do que escreveu: ele pode ter perdido tempo e atrapalhado a própria vida por nada”. Com que direito eu, sem fundamento suficiente, encorajaria alguém a talvez atrapalhar a própria vida por nada?

O ideal seria, portanto, que eu tivesse tempo para me dedicar, como gostaria, a ler escrupulosamente as obras de todos os poetas com os quais, através deste blog, tenho contato e, em seguida, escrevesse responsavelmente sobre elas. Infelizmente não tenho esse tempo: mal tenho tempo para ler coisas que me são essenciais ou para escrever uma fração das coisas que desejo.

Entretanto, ainda que eu tivesse tempo e fizesse tudo isso, não creio que o meu parecer representasse nada de realmente importante para poeta algum. A VERDADE É QUE NINGUÉM PODE OBTER DE OUTRA PESSOA UMA CONFIRMAÇÃO SEGURA DO VALOR DAQUILO QUE ESCREVE. É-SE POETA A DESPEITO DESSE FATO, OU NÃO SE É POETA.

Bandeira confessou uma vez que ficava “sempre embaraçado para dar qualquer conselho” e que dizia ao jovem poeta que continuasse a fazer os seus versos “sem se preocupar com a opinião de ninguém, inclusive a minha”. Sem a menor pretensão de me comparar com Bandeira, é exatamente isso o que eu gostaria de dizer.

Abraço,
Antonio Cicero

18.5.08

A questão da história

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 18 de maio de 2008:


A questão da história

Para o filósofo inglês John Gray, os “humanistas” (palavra pela qual denomina os homens que vêem o mundo com olhos seculares e não religiosos) “gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo; mas a sua crença central no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade acerca do animal humano do que qualquer das religiões do mundo”. Que exista progresso é, segundo ele, “o artigo de fé central das sociedades liberais”.

Com isso, ele repete uma velha pretensão do pensamento reacionário: a de que o iluminismo (palavra mais adequada, neste contexto, do que “humanismo”), no fundo, não se baseie na razão, mas na fé, de modo que não passe de uma nova religião, com a desvantagem de ser, no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana, mais simploriamente otimista do que as religiões tradicionais.

Trata-se, é claro, de um engano. O iluminismo não surgiu da crença na bondade natural ou na infinita perfectibilidade do homem, nem depende de tais pressupostos. Ao contrário: ele se manifesta, já nos séculos 16 e 17, como o mais completo ceticismo, a dúvida mais cabal, a crítica mais impiedosa. Desde os seus primórdios, mesmo avant la lettre, o iluminismo destruiu todas as certezas da filosofia, da teologia, da ciência, da Igreja, da política.

A dúvida e a crítica, ou melhor, a razão, pôs tudo abaixo. Naturalmente, a crença que não resiste à crítica da razão merece cair. Mas a crença na própria razão não seria uma fé? Não: a razão questiona também a si mesma; justamente ao fazê-lo, entretanto, ela não pode deixar de se afirmar.

É em conseqüência da consciência da falibilidade de toda produção de conhecimento que a ciência moderna se constituiu como um processo, em princípio, aberto à crítica, público, capaz de contemplar todas as hipóteses, e sujeito à revisão ou à refutação.

E é pela mesma consciência da falibilidade do conhecimento humano – e não por uma ingênua crença na bondade inata dos homens – que, em última instância, a modernidade política chega a identificar o direito com a liberdade. Ao traduzir para a prática política a certeza de que qualquer crença particular é capaz de ser falsa, o homem moderno questiona a legitimidade de toda imposição ou lei que se baseie nesta ou naquela crença particular, quer de origem laica, quer religiosa. Com isso, ele não concorda em restringir sua liberdade senão à medida que isso seja necessário para compatibilizá-la com a liberdade do outro.

Vê-se assim que nem a “fé no progresso” nem qualquer outro artigo de fé pode ser tomado como central para a constituição das sociedades liberais ou abertas. Se as sociedades liberais ou abertas têm um pressuposto central, trata-se de algo racional e oposto à fé: trata-se, isto é, do falibilismo. Para ela, a tese do progresso é uma hipótese como outra qualquer: nem pode ser descartada nem afirmada a priori.

Entretanto, pode-se perguntar se uma sociedade crítica e moderna como a que acabo de descrever não se considera superior a uma sociedade pré-crítica e pré-moderna: e se nesse caso, ela não pressupõe que a passagem da sociedade pré-moderna para a sociedade moderna configure um progresso.

Aqui, é inevitável responder que sim. Contudo, observe-se que se trata de um progresso cognitivo; ora, o próprio John Gray admite que há progresso na ciência. Julgo, porém, que é necessário refletir melhor sobre o progresso que constitui a modernidade.

Imaginamos o progresso através da metáfora geométrica da construção de uma linha: na construção da linha A-Z, por exemplo, chega-se de A a Z através dos pontos B, C, D etc. Assim, para Marx e Engels, por exemplo, a história progride da comunidade primitiva até o comunismo através do escravagismo, do feudalismo e do capitalismo. Ora, não creio que a metáfora da linha seja adequada para pensar sobre a passagem da pré-modernidade à modernidade.

Parece-me que tal passagem seria mais apropriadamente imaginada através da metáfora astronômica que Kant usou para caracterizar a sua filosofia crítica. Trata-se, em suma, de algo como a revolução copernicana, através da qual a terra passou do centro para a periferia e o sol, da periferia para o centro do mundo.

Nada do que pode ser consistentemente submetido à dúvida, nada do que é contingente, nada do que é instável, oscilante ou precário pode ser o centro imóvel. Neste só se pode encontrar o que não é suscetível de ser consistentemente submetido à dúvida, o que é necessário, o que é fixo, firme e inconcusso. É assim que, através da revolução moderna, as crenças e os objetos das crenças, como, por exemplo, as divindades, passam do centro para a periferia, e a própria faculdade do conhecimento – tendo como núcleo a razão crítica – passa da periferia para o centro. É uma mudança de perspectiva.

13.1.08

O falibilismo versus o relativismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008:



O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas

ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.

Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.

A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.

Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.

A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.

Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.

Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.

Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".

Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.

A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.

Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.

7.10.07

A crítica e a religião

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 6 de Outubro de 2007:


A crítica e a religião

RECENTEMENTE, FORAM publicados vários livros que contestam a religião e mesmo a crença na existência de Deus. Creio que o de Richard Dawkins ("Deus, um Delírio"; Cia. das Letras, 2007; 528 pág., R$ 54) é, até agora, o mais conhecido e discutido, pelo menos no Brasil. Confesso que, inicialmente, não me senti muito animado a lê-lo. É que, tendo conferido algumas recensões de "Deus, um Delírio", eu havia ficado com a impressão de que o forte desse livro era tentar dar uma explicação darwinista das religiões e da crença na existência de Deus.

Ora, embora eu tenha uma admiração imensa pela teoria científica da evolução das espécies, sempre considerei excessivamente grosseiras todas as tentativas que até hoje conheci de exportá-la para o campo da sociedade humana.

Entretanto, alguns excelentes artigos, dentre os quais um do próprio Dawkins e outro do Marcelo Coelho (ambos na Ilustrada de 25/08), acabaram por atiçar a minha curiosidade a tal ponto que, na semana passada, decidi ler "Deus, um Delírio". Resultado: cheguei à conclusão de que se trata, em suma, de um livro desigual, mas que certamente merece ser lido.

Deixarei para comentar o livro do Dawkins outro dia, pois hoje quero tocar em algumas questões incidentais. Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).

A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.

Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.

Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.

Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.

Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".

"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".

Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.

4.10.07

Hudson Carvalho: "Tropa de Elite"

Um artigo do jornalista Hudson Carvalho, especialmente para o nosso blog:


“Tropa de Elite”


Assisti a “Tropa de Elite” atendendo a convite generoso da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, na abertura do Festival de Cinema do Rio. No caso, esse inusitado preâmbulo faz-se necessário para me isentar da suspeição de ter visto o filme nos escaninhos da abjeta pirataria. Feita a ressalva, ao filme, pois.
Há várias maneiras de se ver “Tropa de Elite”. Como não sou crítico de cinema, de nada, nem de ninguém, interessam-me mais os aspectos políticos e o ambiente sociológico de segurança e de violência que o filme reflete do que propriamente a obra.
Como filme, “Tropa de Elite” não é nenhuma Brastemp. Nos mesmos moldes, por exemplo, cinematograficamente falando, “Cidade de Deus” é bem melhor, mais consistente e criativo. Mostra melhor o que revela.
Já “Tropa de Elite”, em minha desqualificada visão cinematográfica, perde-se em subtramas pouco densas, ora para enfatizar o infernal embrutecimento do personagem principal mesmo em domínio doméstico, ora para generalizar a podridão que retrata. Na ânsia de culpar igualmente a sociedade perfumada, o aparato policial, os políticos sem escrúpulo e a bandidagem ensandecida, “Tropa de Elite” abusa de soluções generalistas e simplistas. Se fosse um filme americano sobre a SWAT, provavelmente seria depreciado.
Não li o livro “Elite da Tropa” que originou o filme. Disse-me, porém, o ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, co-autor do livro e do roteiro do filme, que ambos são bem diferentes. Considerando-se, entretanto, que livro e filme, embora fantasiosos, tenham um grande embasamento na realidade, podemos observar a situação espelhada como gravíssima e preocupante. Não por apresentar uma novidade; mas, sim, pela dimensão.
Sobre a superfície do universo criminal há farto material ficcional e respaldo cotidiano nas ruas e na mídia. Já as mazelas da polícia, mesmo que também ricamente documentada, não deixam de causar perplexidade no filme. O que tem de mais virtuoso em “Tropa de Elite” é a crua exposição das entranhas de um importante corpo de segurança.
A rigor, lato sensu, a polícia se divide entre corruptos, ladrões, assassinos, torturadores etc. Ou seja, não há mocinhos, não há agentes públicos agindo dentro da lei. No filme, os supostos mocinhos são os policiais boçais que torturam e matam, em contraponto aos policiais que se corrompem, roubam e achacam uma sociedade conivente com o tráfico de drogas, mas que espia sua culpa social, caricaturalmente, com florais assistencialistas.
É certo que tanto na sociedade quanto nos engenhos policiais há gente de outra estirpe. Não há como deixar de imaginar, entretanto, que o quadro real policialesco seja assemelhado ao narrado no filme. Ou pior. Se assim consideramos e se assim é, será que temos soluções realísticas para os problemas? Ou a sociedade e os poderes públicos perderam definitivamente as condições de cuidar dessa moléstia?
O mérito de “Tropa de Elite” não é provar que o cinema nacional evoluiu e há muito equacionou a qualidade de som dos seus filmes. O mérito de “Tropa de Elite” é ensejar uma discussão sobre a natureza das nossas polícias e os papéis que elas têm que cumprir e sob que regras. E isso não pode mais tardar.

Hudson Carvalho

19.7.07

Manuel Bandeira: Grande Sertão: Veredas

AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!
Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo. Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá... Você sabe: a vida é um Itamarati - viver é muito dificultoso.
Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques. Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra "vereda" com o significado que você mesmo define à página 74: "Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda." Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: "ciriri dos grilos", "gugo da juriti" etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é "arga", "suscenso", "lugugem" e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?
Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação lingüística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.
Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.
Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.

E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa'uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que

proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:

O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.
13/03/1957



BANDEIRA, M. "Grande sertão: veredas". In: Poesia completa e prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.

1.7.07

A razão da modernidade

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo, sábado, 30 de Junho de 2007:

A razão da modernidade

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Nossa época, diz Kant, é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se
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SÃO FREQÜENTEMENTE atribuídas à modernidade (ou à racionalidade, ou à razão, ou à "racionalidade moderna" etc.) as inúmeras atrocidades que tiveram lugar no século XX. Entre os mais importantes dos primeiros pensadores hostis à "razão moderna" encontram-se Pascal, Burke e os românticos alemães. Mais próximos de nós, os pensamentos de Nietzsche, Heidegger e dos pós-estruturalistas, por um lado, e de Max Weber e Adorno, por outro, são, provavelmente, as mais importantes matrizes contemporâneas dessa desconfiança.

Entre os contemporâneos, são muitos os que, como Zygmunt Bauman, argumentam que os genocídios e massacres do século passado resultaram das concepções modernas da sociedade. Um exemplo: o cientista político e antropólogo norte-americano James Scott afirma que grande parte das tragédias políticas do século XX "agitaram a bandeira do progresso, da emancipação e da reforma" que, segundo ele, caracterizam os tempos modernos.

Recentemente, porém, o historiador alemão Jörg Baberowski pôs esse senso comum em questão no livro Tempos Modernos? (Moderne Zeiten?. Götttingen, 2006), em que apresenta os resultados de um encontro sobre "Guerra e revolução no século XX", que teve lugar em Tübingen, em 2001.

Suas conclusões indicam que, independentemente da modernidade dos pretextos invocados para justificar a violência na União Soviética, na China ou na Alemanha nacional-socialista, a verdade é que "onde quer que a violência se autonomizou e se tornou uma estrutura dominante, os pretextos foram esquecidos. Stálin e Mao não apenas sonharam com o belo e novo mundo, eles vinham do velho mundo e agiam como se pode esperar de déspotas pré-modernos. [...] Não é acidente que o discurso moderno sobre raças e classes tenha levado ao assassinato em massa na Alemanha, na União Soviética e na China, mas não nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental".

Baberowski está sem dúvida certo quanto à pré-modernidade desses regimes ditatoriais. Entretanto, ele está errado ao qualificar de modernos os próprios pretextos por eles invocados para fazer o que fizeram. Para explicar por que penso assim, recorro a Immanuel Kant, que pode ser considerado o filósofo clássico da modernidade. "Nossa época", diz ele, na Crítica da Razão Pura, "é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se. A religião, através da sua santidade, e a legislação, através da sua majestade, querem em comum subtrair-se a ela. Mas então suscitam uma justa suspeição contra si, e não podem aspirar ao respeito sincero que a razão só concede àquilo que consegue suportar a sua investigação livre e pública".

Retenhamos os seguintes pontos: 1) a nossa época, isto é, a modernidade, é a época da crítica 2) a crítica é uma manifestação da razão; 3) a crítica se dá o direito de investigar, de modo irrestrito e público, absolutamente tudo; 4) a crítica não respeita ou endossa coisa alguma que não se submeta ao seu escrutínio; e 5) a crítica é capaz de criticar a si própria (pois a própria "crítica da razão pura" é a crítica exercida pela razão pura à própria razão pura).

Etimologicamente, crítica quer dizer separação, distinção, escolha, seleção, distinção, juízo. É a crítica que separa, por exemplo, a esfera religiosa da esfera secular, separação que consideramos característica da modernidade.
É verdade que, além de ser crítica, a razão é também usada como um instrumento para a construção de sistemas de pensamento: de teorias científicas, tecnologias, obras de arte, conceitos filosóficos, concepções teológicas, ideologias (modernas e antimodernas) e até de religiões.

Contudo, na modernidade, essas mesmas construções da razão instrumental, como tudo o que há, também estão sujeitas a serem criticadas pela própria razão. Pois bem, na medida em que as construções da razão sejam subtraídas à crítica, esta as rejeita. É o caso das ideologias que serviram de pretexto para justificar as violências totalitárias.

Ainda mais grave e incompatível com a crítica é a constituição de impedimentos (como a censura) para o seu exercício. Ora, uma vez que qualquer totalitarismo, mesmo quando tenta justificar-se com argumentos racionalmente construídos, estabelece impedimentos para o exercício da crítica universal, irrestrita e pública -que vimos ser essencial à modernidade- todo totalitarismo é essencialmente anti-moderno.

Antonio Cicero

14.6.07

Inês Pedrosa: O lance do poema

Peço desculpas aos caríssimos frequentadores deste blog por não ter sido capaz, nos últimos dez dias, de fazer novas postagens ou de responder aos inúmeros comentários sobre o artigo “Poesia e filosofia”. É que, após pronunciar uma conferência em Lisboa, a convite da Fundação Gulbenkian, intitulada “Da atualidade do conceito de civilização”, fui ver amigos na França e na Bélgica, de modo que tanto me ficou escasso o tempo para escrever quanto precário o meu acesso à Internet. Espero, nos próximos dias, recuperar o tempo perdido.

Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.


Inês Pedrosa
O lance do poema

Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.

O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.

Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.

A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.

21.4.07

Gide, Valéry e a Ilíada

No seu diário, André Gide conta um incidente interessante que ocorreu entre ele e Paul Valéry (tenha-se em mente que Gide amava a Ilíada):

“Acompanho Valéry ao conselho da Rádio e me sento a seu lado, à mesa verde. O nome da Ilíada tendo sido pronunciado, Paul se inclina para mim e, à meia voz: “Você conhece alguma coisa mais aborrecida do que a Ilíada?” Dominando um sobressalto de protesto, acho... mais amigável responder: “Sim, a Chanson de Roland”; o que o faz aquiescer imediatamente.”

« J’accompagne Valéry au conseil de la Radio et prends place à côté de lui autour de la table verte. Le nom de l’Illiade venant à être prononcé, Paul se penche vers moi et, à voix basse: “Connais-tu rien de plus embêtant que l’Illiade?” Maîtrisant un sursaut de protestation, je trouve... plus amicale de répondre: “Oui, la Chanson de Roland”; ce qui le fait acquiescer aussitôt. »

André Gide, Journal I, 1889-1939. Paris : Gallimard, p.1378.

13.4.07

Comentário de Lucas Nicolato e resposta

Lucas Nicolato deixou um comentário, que publico, seguido da minha resposta:

Meus questionamentos anteriores concentraram-se na idéia de que, tendo surgido em determinada sociedade, a “modernidade” seria tão local quanto a própria cultura daquela sociedade. Ora, mesmo que a “modernidade” que conhecemos fosse produto da cultura cristã, sua genealogia não a condenaria a ser “mero” aspecto da cultura local. Embora talvez não seja possível sua manifestação em um ambiente em que não haja língua ou cultura, a capacidade humana de crítica nem por isso deixa de ser uma realidade por si só, nem perde suas características. De fato, a modernidade é “um” salto para o universal, e ainda seria, mesmo que só pudesse ser produzida em condições locais muito específicas. Nesse sentido, não apenas concordo com sua resposta, como me arrisco a tomar suas idéias de forma radical.Não obstante, há ainda algo que julgo fazer sentido na expressão “fundamentalismo iluminista” e que está relacionado à nossa discussão. Se a modernidade, como o pleno uso da razão, não se confunde com uma cultura específica, como o Islã, e se a razão pode se expressar através de quaisquer línguas ou meios culturais, tal fato não exclui sua imagem inversa: a de que as crenças específicas de uma sociedade podem se manifestar através do uso da razão e do valor dado a ela. Mais especificamente, me questiono se o papel preponderante dado ao “salto universal” (ou a esse salto em particular, pois nada garante que não haja outros saltos) em nossa cultura tem algo de universal. Está claro que a capacidade de crítica e abstração pode ser desenvolvida em diversos ambientes culturais, mas isso não significa que o valor dado ao uso dessa razão não seja uma construção cultural particular. Creio que o autor do artigo referia-se a uma suposta atitude arrogante frente ao fato de que outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa. Tal atitude não seria propriamente “moderna”, mas fundamentalista, na medida em que toma um julgamento particular (o uso da razão é de importância máxima) em uma verdade presumidamente universal que pode, portanto, ser imposta a outrem. Claro, um “fundamentalismo iluminista” é profundamente contraditório e irracional, mas isso não impede que seja adotado por determinadas pessoas.


Resposta minha:

Não creio que a sua tentativa de salvar a expressão “fundamentalismo iluminista” possa escapar das aporias do relativismo cultural, nas quais eu havia tocado, ao falar da insustentabilidade da tese multiculturalista de Ash. O fundamentalismo iluminista consistiria, segundo você, em tentar impor a modernidade ou a razão a culturas para as quais elas não tenham tanta importância quanto para a nossa. Você parte de dois pressupostos. O primeiro é o de que uma cultura não deve impor os seus valores a outras: o de que é preciso respeitar os valores particulares das diferentes culturas. O segundo é o de que a modernidade/razão tem mais importância para a nossa cultura do que para outras.

Concordo com o seu primeiro pressuposto. Há, porém, um problema que você não me parece ter suficientemente levado em conta, isto é, a determinação do status desse pressuposto mesmo. Ele pertence a uma das culturas particulares ou é, como afirmei no artigo sobre Ali e Ash, exterior, anterior e superior a elas?

Se ele pertencer a uma das culturas em jogo – digamos, à “cultura ocidental” --, então, de fato, ele não pode, segundo seus próprios pressupostos, ser imposto senão a essa mesma cultura: ser auto-imposto. Ele poderá, porém, ser negado por outras culturas, que se afirmem superiores às demais. Aqui não estou falando de uma hipótese abstrata. Os fundamentalistas islâmicos não raro se reportam a uma sura do Alcorão que diz: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. Adicione-se que, para eles, os principais idólatras de hoje são precisamente os ocidentais modernos. Veja o resultado: o relativista, para não ser chamado de “fundamentalista do iluminismo”, se proíbe de criticar o fundamentalista muçulmano; este, porém, permite-se, com boa consciência, usar contra aquele não apenas as armas da crítica, mas a crítica das armas... Como diz o físico Steven Weinberg, “com ou sem religião haverá pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas que as pessoas boas façam coisas más, só a religião consegue”.

Para que tenha alguma eficácia, portanto, o seu pressuposto tem que ser exterior (ele não pode fazer parte desta ou daquela cultura, mas da modernidade/razão, que está fora de todas elas), anterior (como uma constituição, ele precisa limitar a priori a soberania da cultura em questão: a sura mencionada, por exemplo, não pode ser interpretada de modo literal ou fundamentalista) e superior (como uma constituição, ele precisa anular qualquer disposição contrária às suas determinações).

Sem dúvida você considerará justamente tal afirmação da modernidade/razão como exterior, anterior e superior a qualquer cultura como algo que pertence à nossa cultura, e que não temos direito de exportar, sob pena de nos tornarmos “fundamentalistas do iluminismo”. Com efeito, segundo você, “outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa”. Aqui chegamos ao seu segundo pressuposto, com o qual não concordo.

O problema é o que você quer dizer com “nossa” cultura? O Cristianismo? Você se esquece das guerras religiosas do Cristianismo? Acontece que a razão/modernidade se desenvolveu apesar do Cristianismo, e contra ele. Não foi o Cristianismo que relativizou a si mesmo; nenhuma cultura relativiza a si própria. Essa relativização foi feita pela razão/modernidade, que não é uma cultura e se encontra fora da “nossa” e de todas as demais culturas. Como eu já disse no texto anterior, ela não surge de qualquer cultura, mas do desvio, da crítica, da separação, levada a cabo por alguns indivíduos, em relação à cultura em que foram criados.

Não é, portanto, que a nossa cultura tenha adotado a razão/modernidade. É que a razão/modernidade trava, há séculos, uma luta titânica com a nossa – e com toda – cultura particular, para estabelecer regras tais como o seu primeiro pressuposto: de que uma cultura não deve impor os seus valores a outras, de modo que é preciso respeitar os valores particulares das diferentes culturas. Mas isso, como eu disse, só pode ser feito a partir do reconhecimento universal (não pelas culturas, mas pelos indivíduos, pelas sociedades e pelos Estados e organismos internacionais) de que a razão/modernidade não é uma cultura particular: de que ela é exterior, anterior e superior a qualquer cultura particular.

12.4.07

Comentários de Ana e de Paulo de Toledo e resposta

Ana e Paulo de Toledo deixaram comentários hoje. Creio que o de Paulo resume a questão. Apresento-o, seguido da minha resposta:

Paulo de Toledo disse:
caro antonio, concordo contigo plenamente. mas resta uma pergunta: o crítico, ao destacar-se da sua "realidade", não usaria, para isso, além da razão, também seus sentimentos e pré-conceitos e, portanto, a crítica não envolveria sempre um aspecto subjetivo, mesmo que recôndito, inconsciente? então, a razão não seria uma espécie de "ilusão necessária", uma forma de o homem tentar "disfarçar" os seus instintos mais básicos? montaigne, no exemplo dado, não estaria usando a razão como uma forma de escapar de uma espécie de culpa cristã?


Resposta minha:

Eu não diria que o crítico se destaca da sua realidade, mas dos seus “costumes”, como dizia Descartes. Hoje, no lugar de “costumes”, dizemos “cultura”. Ele se destaca porque passa a vê-la como apenas uma cultura entre outras.

Nesse ponto, sejam quais forem as motivações dele, ele está certo: que sua cultura, isto é, os costumes, a religião, as roupas, a língua, a arquitetura, as formas das artes, os mitos, os preconceitos da região do mundo em que foi criado não lhe são naturais, essenciais, ou necessários e que poderiam ter sido outros, tivesse ele nascido na China e não na França, não é uma simples opinião dele, mas uma verdade que ele descobre, não sobre si próprio apenas, mas sobre a relação entre as culturas e os seres humanos. Essa verdade – que nos parece hoje um lugar-comum – é o que constitui a modernidade. É porque somos modernos que essa verdade nos parece evidente. Ela não é a descoberta de nenhuma cultura particular – as culturas particulares se pretendem naturais –, mas da crítica.

A partir dessa descoberta é que se torna possível pensar em estratégias extra-culturais para a obtenção de conhecimentos ultra- ou trans-culturais da realidade, isto é, para escapar da prisão de qualquer cultura particular, conhecimentos que não pertençam a cultura alguma em particular, mas à civilização. E essas estratégias são os métodos e procedimentos científicos.

27.3.07

Oscar Wilde: The Critic as Artist

Do diálogo de Oscar Wilde O crítico como artista (The critic as artist):

Ernest: Mas qual é a diferença entre a literatura e o jornalismo?
Gilbert: O jornalismo é ilegível, e a literatura niguém lê. É só.


Ernest: But what is the difference between literature and journalism?
Gilbert: Oh! journalism is unreadable, and literature is not read. That is all.