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10.1.10

As minorias que estão "por dentro"



O seguinte artigo foi publicado no sábado, 9 de janeiro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:


ANTONIO CICERO

As minorias que estão por dentro


NO LIVRO "AS ESTRELAS Descem à Terra", o filósofo Theodor Adorno observa que aquele que conhece a astrologia já se considera acima do homem comum, isto é, do homem que aceita acriticamente o senso comum sobre o mundo existente.

"A astrologia", diz Adorno, "à maneira de outras crenças irracionais, como o racismo, oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".

Essa descrição da astrologia aplica-se bem a inúmeras outras ideologias, religiosas e laicas. Como pretendo dizer algo tanto sobre aquelas quanto sobre estas, mas não há espaço para isso tudo numa só coluna, falarei apenas das religiosas neste artigo, deixando as laicas para o próximo.

Lembremo-nos, por exemplo, do cristianismo primitivo. Segundo seu verdadeiro fundador, o apóstolo Paulo, Deus disse: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes". Paulo pergunta: "Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?" E explica, adiante: "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus [...]. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe como eles são fúteis". No lugar da sabedoria deste mundo, Paulo propõe a fé, que, como diz, não se baseia na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

Com essas penadas são varridas, entre outras coisas, a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas. As obras de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Cícero, Homero, Hesíodo, Píndaro, Virgílio e inúmeros outros são cassadas, entre as quais (segundo a sabedoria dos sábios, a inteligência dos inteligentes e a erudição dos eruditos, tanto da época de Paulo quanto da nossa) algumas das maiores preciosidades jamais produzidas pelos seres humanos.

Nesse caso, os que estão "por dentro" da palavra de Deus não apenas se sentem superiores ao homem comum, como diz Adorno, mas também -e sobretudo- aos "sábios", aos "inteligentes" e aos "eruditos". Vingam-se assim -de novo, nas palavras de Adorno- de se sentirem excluídos dos privilégios educacionais.

Foi indignado com as palavras de Paulo acima citadas que Nietzsche afirmou que a religião cristã, sendo "inimiga mortal da sabedoria do mundo, isto é, da ciência, aprovará todos os meios pelos quais a disciplina do espírito, a integridade e o rigor em ciências do espírito puderem ser envenenados, caluniados, desacreditados. A fé como imperativo é o veto contra a ciência -na prática a mentira a todo custo... Paulo compreendeu que a mentira, que a "fé" era necessária; mais tarde a Igreja compreendeu Paulo".

Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, na Idade Média, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica foi assumida- quanto para os que deles eram excluídos.

Isso não quer dizer que não tenha havido seitas que se considerassem acima do senso comum e se rebelassem contra a sabedoria deste mundo, inclusive contra a pretensa sabedoria da doutrina católica. Durante a Idade Média, proliferaram seitas de hereges, milenaristas, salvacionistas etc. a manifestar seu ódio contra toda sabedoria humana e, em particular, contra a razão.

Assim também fizeram os líderes da reforma protestante. Não admira que Martinho Lutero, declarado discípulo de Paulo, tenha chamado a razão de "puta amaldiçoada". "A razão", diz, "tem que ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que pisar toda razão, senso e entendimento".

Em que essas ideologias religiosas são próximas da astrologia, tal como descrita por Adorno? Em se considerarem acima do senso comum e em proporcionarem aos seus adeptos a sensação de pertencerem a uma minoria que está "por dentro".

Mas não é toda ciência assim? A diferença, para Adorno, é que a astrologia consiste numa "crença irracional". Falarei disso no próximo artigo.

E em que são distantes da astrologia? Em desprezarem não só o senso comum, mas toda sabedoria humana, inclusive a razão. Nesse sentido, as ideologias laicas, de que falarei também no próximo artigo desta coluna, estão bem mais próximas da astrologia.

3.10.09

A ressurreição do apóstolo Paulo

Ao escrever o artigo que saiu hoje publicado na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, acabei por fazê-lo muito maior do que o espaço que me é reservado. Normalmente, quando isso acontece, edito o artigo, para que caiba no espaço disponível, sem perder o essencial do seu argumento. Foi o que tentei fazer com o artigo de hoje. Ao relê-lo no jornal, porém, achei que o resultado deixa a desejar: que carece de clareza e precisão. Por isso, excepcionalmente, publico aqui o artigo na sua versão – mais longa – original.


A ressurreição do apóstolo Paulo

HÁ POUCOS meses, o papa Bento 16 anunciou que haviam sido encontrados os restos mortais do apóstolo Paulo. Nesse ponto, Ratzinger estava atrasado. Em alguns círculos de esquerda, esse apóstolo já havia sido ressuscitado há algum tempo. Basta lembrar o livro de Alain Badiou, de 1997 ("São Paulo: a Fundação do Universalismo"), o de Giorgio Agamben, de 2000 ("O Tempo que Resta: Comentário à Carta aos Romanos"), a reedição, em 1993, do livro de Jacob Taubes ("A Teologia Política de Paulo") e as muitas páginas que Slavoj Zizek tem ultimamente dedicado a esse apóstolo (por exemplo, em "O Absoluto Frágil").

Ora, nenhum leitor das invectivas de Paulo contra a filosofia e a racionalidade (por exemplo, em 1Co 1:19-27 e 3:18-20, e Ro 1:21-22) pode ignorar que ele foi um dos fundadores do irracionalismo cristão. De fato, esses escritores me parecem ser atraídos exatamente pelo irracionalismo de Paulo. Por que?

Consideremos Badiou. Recentemente, ele tem escrito (por exemplo, na "Revista Piauí" de agosto de 2007), sobre a "hipótese comunista". Basicamente, esta consistiria na suposição de que seja possível eliminar a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Francamente, não sei se é mesmo possível eliminar a desigualdade ou o aparelho de Estado. Entretanto, Badiou diz também que essa "hipótese" é "uma ideia com função reguladora, e não um programa". Se isso significa que quem adota a "hipótese comunista" é aquele que orienta suas ações políticas no sentido de, entre outras coisas, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo, então ela pode ser aceita por um reformista radical, como eu mesmo.

Badiou porém, longe de se considerar um reformista, pretende ser um revolucionário. Assim também creio serem quase todos os entusiastas da “hipótese comunista”. O que querem é uma revolução que, mais ou menos rapidamente, destrua o capitalismo e construa o comunismo, isto é, que rapidamente, como foi dito, elimine a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Entretanto, desconfio que nenhum desses revolucionários saberia dizer exatamente como se daria tal superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em “socialismo”. Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representa sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se proclamou, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será possível identificar a estatização com o socialismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que “quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge”.

Para Engels, portanto, a propriedade estatal não era a solução. No máximo, ela podia ser usada como um meio para se chegar mais perto da solução. E qual seria essa, segundo ele? Que a sociedade, aberta e diretamente, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a constituição do “modo de produção socialista” (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, Badiou comenta que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa é por Badiou entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas ela está no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube – como se daria tal superação.

Um famoso hino alemão oriental dizia: “Die Partei hat immer Recht”, isto é, "o Partido sempre está certo". Tal secularização do pensamento religioso constitui o ápice do irracionalismo e acabou por produzir incalculável sofrimento. As terríveis experiências do século 20 apenas confirmam empiricamente algo que, por direito, já se sabe desde a Ilustração: nem a Igreja, nem a Bíblia, nem o Partido, nem o líder genial, nem as massas, ninguém é capaz de sempre estar certo. Nada está acima de ser criticado. Por isso, a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. são exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão.

Ora, não há por que pensar que não seja possível, mesmo nos marcos de uma sociedade aberta, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo. Uma das provas de que as coisas podem melhorar é hoje a própria experiência brasileira, nos últimos quinze anos de governos democráticos de esquerda.

Mas, naturalmente, os seguidores do apóstolo Paulo não pensam assim. Apesar de reconhecer que "o marxismo, o movimento operário, a democracia de massas, o leninismo, o Partido do proletariado, o Estado socialista, todas essas invenções notáveis do século 20 não nos são mais realmente úteis", Badiou prefere crer na Revolução do que na razão. Para ele, a Revolução Francesa abrira um primeiro período revolucionário; a Revolução Russa, um segundo. Aguardando o próximo, ele confessa: "Não estou em condições de dizer com certeza o que é a essência do terceiro período revolucionário que vai se abrir". Ele tem certeza de que ocorrerá algo decisivo no terceiro – note-se bem a mística do numero – período revolucionário, embora não saiba o que será. Em suma, adota um estilo escatológico, sem nada dizer. Por que isso?

Porque ele é “revolucionário”, ou melhor, apocalíptico. Badiou rejeita a democracia parlamentar porque quer rejeitar em bloco a sociedade aberta em que vive: “A hipótese comunista”, afirma, “não coincide de maneira nenhuma com a hipótese democrática”. Se como dissemos, a sociedade aberta é uma exigência inegociável da crítica, isto é, da razão, então, embora não o confesse literalmente, é a razão que, no fundo Badiou tenciona relativizar. “Há algo no devir de uma verdade”, afirma ele, “que ultrapassa as possibilidades estritas da mente humana”.

Aqui entra o apóstolo Paulo. Embora a racionalidade clássica considerasse irracionalistas as teses de Paulo, estas, segundo Badiou, constituíram um "acontecimento" que superou aquela, inaugurando um novo tipo de universalismo e de verdade. “Todo procedimento de verdade”, diz ele, “rompe com o princípio axiomático que governa a situação e organiza a sua série repetitiva. Um procedimento de verdade interrompe a repetição e não pode portanto ser sustentado pela permanência abstrata própria à unidade da conta, subtraída da conta”. Ou seja, o “procedimento de verdade” é incomensurável com o que, antes da sua instauração, passa por verdade.

Segundo Badiou, o conhecimento (savoir), pertencente à ordem do Ser, opõe-se à verdade, manifesta em acontecimentos que não pertencem à ordem do ser, mas surgem ex nihilo, à maneira de milagres. Para Slavoj Zizek, também entusiasta de Paulo, "Badiou está inteiramente justificado ao insistir que -- usando o termo com seu peso teológico integral -- milagres ocorrem sim". A verdade milagrosa é singular, pois não poder ser classificada em gênero nenhum; universal, pois ultrapassa todas as particularidades acessíveis ao conhecimento; e axiomática, pois transcende tudo o que pode ser provado ou demonstrado.

Badiou pensa que a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, ela não passa, portanto, de uma crença. Comentando -- e aprovando -- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é 'dogmática' no sentido preciso de fé incondicional, de uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma 'argumentação'". Ora, ocorre que aquilo que não pode ser refutado por nenhum argumento é exatamente o irracional. Em suma, trata-se aqui do mais puro irracionalismo religioso.

De todo modo, podemos nos perguntar qual é o procedimento de verdade que autoriza Badiou a afirmar suas teses. Certamente não pode ser o que ainda não foi instaurado; e como poderia ser o que vigora contemporaneamente, se este é objeto constante do seu escárnio?

O fato é que – como aliás convém a quem, como bom discípulo de Paulo de Tarso, literalmente exalta as três virtudes teologais – Badiou sustenta suas teses exclusivamente na fé.

6.4.08

A astúcia do diabo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 5de abril de 2008:


A astúcia do diabo

NUM POEMA em prosa, Baudelaire põe em cena um pregador segundo o qual a mais admirável astúcia do Diabo é nos persuadir de que não existe. Não é difícil entender por que, se o capeta existir, terá interesse em nos fazer crer o contrário.

Em primeiro lugar, ele saberá que quem acredita que ele existe tende a acreditar que também Deus existe (o poeta João Cabral foi a exceção que confirma a regra), coisa que não lhe interessa. Além disso, provavelmente lhe parecerá mais fácil induzir à tentação as pessoas que sequer acreditam que ele exista do que as que o temem.

De todo modo, para uma pessoa que crê que o demo não só existe como que pretende, sob algum disfarce ou através de algum mandatário, persuadir-nos de que não existe, exatamente a persuasividade e a racionalidade de seus argumentos atestarão a sua origem diabólica. E tal pessoa pensará a mesma coisa sobre qualquer consideração que ponha em questão a existência de Deus. Sendo assim, argumento nenhum jamais poderá fazê-la duvidar dessas crenças. Com efeito, a astúcia de satanás é postulada exatamente para blindá-las contra o assalto de qualquer crítica.

Naturalmente aquilo que, do ponto de vista do crente, é força, do ponto de vista da razão é fraqueza. Para esta, tudo o que se imuniza à crítica, tudo o que se furta à prova é irracional. Racionais são a própria crítica, a abertura à crítica e tudo aquilo que, enfrentando a crítica – ainda que diabólica –, a ela sobreviva. Já o irracionalismo é – como a própria tese da astúcia do Diabo – a tentativa de desqualificar o racional.

Observe-se que, se a tese – ou melhor, se a falácia – da astúcia do Diabo caracteriza o arquiinimigo de Deus como aquele que argumenta e critica, isto é, como aquele que é racional, ela explicitamente caracteriza os crentes e, implicitamente, o próprio Deus, como irracionalistas. Na verdade, embora há tempos não seja essa a doutrina dominante da Igreja Católica, trata-se de uma tese perfeitamente compatível com algumas das concepções mais vetustas do Cristianismo. O apóstolo Paulo, por exemplo, regozija-se de que, segundo o profeta Isaías, Deus mesmo tenha afirmado: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes".

Ora, que a doutrina de uma religião possa ser irracionalista ou conter fortes elementos irracionalistas não é surpreendente, já que ninguém é religioso graças a considerações intelectuais, mas por outros motivos, como o desejo de comunidade.

Mais surpreendente é observar que diferentes variantes da falácia da astúcia do Diabo, adaptadas para os mais diferentes fins, tenham sido adotadas por pensadores laicos e modernos.

Em psicanálise, por exemplo, a denegação é a astúcia através da qual o analisando (análogo ao Diabo) nega a interpretação do analista (análogo ao crente). Ao fazê-lo, porém, ele inconscientemente a confirma, segundo o analista. O próprio Freud – tendo reconhecido que, desse modo, garante-se sempre o triunfo do analista, pois, quando o paciente o aprova, lhe dá razão, mas, quando o contradiz, trata-se apenas de um sinal de resistência, o que de novo lhe dá razão – explica que essa questão só se resolve na prática, no contexto concreto da análise.

Um exemplo mais grave é a tese de Heidegger de que o mundo moderno já se encontra tão destituído, do ponto de vista espiritual, que não consegue mais sequer perceber a falta de Deus como uma falta. Assim, do mesmo modo que o crente supõe que aquele que negue a existência do Diabo ou de Deus involuntariamente a confirma, Heidegger supõe que aquele que negue sentir falta de Deus com isso dá, também inconscientemente, ainda maior evidência da falta que Ele faz do que aquele que abertamente reconheça sentir falta d'Ele.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas considero especialmente interessante – por poder ser estendida a grande parte do pensamento marxista sobre ideologia – a afirmação de Adorno de que a aparente liberdade em vigor no mundo moderno torna mais difícil a percepção da servidão real em que se vive, a qual, com isso, é agravada. Isso quer dizer que aquele que, no mundo moderno, pretenda ser livre ou demonstrar a sua liberdade é ainda mais dominado do que quem já se considere escravo. Pelo mesmo raciocínio, quanto menos um pensmento se considere ideológico, tanto mais o será.

É assim que, há séculos, a falácia da astúcia do Diabo tenta in limine desqualificar qualquer objeção que se pretenda fazer ao irracionalismo a que ela no fundo serve.