.
Acho que algo muito mais radical que um declínio da fé religiosa ocorreu em nosso mundo. Para as pessoas cultas, o mundo se tornou desmistificado. Ou antes, para ser mais preciso, deixamos de tomar os mistérios que vemos no mundo como expressões de algo sobrenatural. Não mais consideramos os acontecimentos estranhos como exemplos da ação de Deus através da linguagem dos milagres. Os acontecimentos estranhos são apenas acontecimentos que não compreendemos. O resultado dessa desmistificação é que já estamos para lá do ateísmo, num ponto em que o assunto já não nos interessa à maneira em que interessava às prévias gerações. Para nós, se descobríssemos que Deus existe, isso seria um fato da natureza como qualquer outro. Às quatro forças básicas do universo – gravidade, eletromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca – adicionaríamos uma quinta, a força divina. Ou, mais provavelmente, veríamos as outras forças como formas da força divina. Se o mundo sobrenatural existisse, ele também seria natural.
Dois exemplos ilustram a mudança do nosso ponto de vista. Quando dei aula na universidade de Veneza, como professor visitante, eu costumava caminhar até uma encantadora igreja gótica, a Igreja da Madonna del Orto. Originalmente, haviam planejado batizá-la de igreja San Christoforo, mas, durante a construção, quando foi encontrada uma estátua da Madonna no pomar local, presumiu-se que ela tinha caído do céu. Uma estátua da Madonna caída do céu no pomar do próprio terreno da igreja era milagre suficiente para justificar a mudança do nome para Igreja da Madonna do Pomar. Eis o que interessa: se hoje uma estátua fosse achada ao lado de um canteiro de obras, ninguém diria que ela houvesse caído do céu. Mesmo se a estátua fosse achada nos jardins do Vaticano, as autoridades eclesiásticas não alegariam que caíra do céu. Pensar isso não seria possível porque, em certo sentido, sabemos demais.
Quando dei aula na Universidade de Florença, a igreja da minha paróquia, se assim puder descrevê-la, era San Miniato, localizada numa colina sobre a cidade, um dos edifícios mais impressionantes de Florença. Por que esse nome? Parece que San Miniato foi um dos primeiros mártires cristãos na história da cidade. As autoridades romanas o executaram no século III, mais ou menos em 250 d.C., na época do imperador Décio. Ele sobreviveu ao ataque dos leões na arena, mas depois lhe cortaram a cabeça. Após ser decapitado, ele se levantou, pôs a cabeça sob o braço, caminhou para fora da arena e, atravessando o rio, saiu da cidade. Então, subiu a colina ao lado sul do Arno, sempre carregando a cabeça, até chegar ao topo, onde se sentou. Nesse lugar se encontra hoje a igreja. Os guias contemporâneos têm um pouco de vergonha de contar essa história, e a maior parte sequer a conta. O que ocorre não é que a achemos falsa, mas que não a levamos a sério nem mesmo como possibilidade.
De: SEARLE, John R. Mind, language, and society. New York: Basic Books, 1998.
Mostrando postagens com marcador Milagre. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Milagre. Mostrar todas as postagens
29.5.09
Assinar:
Postagens (Atom)