O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 18 de maio de 2008:
A questão da história
Para o filósofo inglês John Gray, os “humanistas” (palavra pela qual denomina os homens que vêem o mundo com olhos seculares e não religiosos) “gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo; mas a sua crença central no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade acerca do animal humano do que qualquer das religiões do mundo”. Que exista progresso é, segundo ele, “o artigo de fé central das sociedades liberais”.
Com isso, ele repete uma velha pretensão do pensamento reacionário: a de que o iluminismo (palavra mais adequada, neste contexto, do que “humanismo”), no fundo, não se baseie na razão, mas na fé, de modo que não passe de uma nova religião, com a desvantagem de ser, no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana, mais simploriamente otimista do que as religiões tradicionais.
Trata-se, é claro, de um engano. O iluminismo não surgiu da crença na bondade natural ou na infinita perfectibilidade do homem, nem depende de tais pressupostos. Ao contrário: ele se manifesta, já nos séculos 16 e 17, como o mais completo ceticismo, a dúvida mais cabal, a crítica mais impiedosa. Desde os seus primórdios, mesmo avant la lettre, o iluminismo destruiu todas as certezas da filosofia, da teologia, da ciência, da Igreja, da política.
A dúvida e a crítica, ou melhor, a razão, pôs tudo abaixo. Naturalmente, a crença que não resiste à crítica da razão merece cair. Mas a crença na própria razão não seria uma fé? Não: a razão questiona também a si mesma; justamente ao fazê-lo, entretanto, ela não pode deixar de se afirmar.
É em conseqüência da consciência da falibilidade de toda produção de conhecimento que a ciência moderna se constituiu como um processo, em princípio, aberto à crítica, público, capaz de contemplar todas as hipóteses, e sujeito à revisão ou à refutação.
E é pela mesma consciência da falibilidade do conhecimento humano – e não por uma ingênua crença na bondade inata dos homens – que, em última instância, a modernidade política chega a identificar o direito com a liberdade. Ao traduzir para a prática política a certeza de que qualquer crença particular é capaz de ser falsa, o homem moderno questiona a legitimidade de toda imposição ou lei que se baseie nesta ou naquela crença particular, quer de origem laica, quer religiosa. Com isso, ele não concorda em restringir sua liberdade senão à medida que isso seja necessário para compatibilizá-la com a liberdade do outro.
Vê-se assim que nem a “fé no progresso” nem qualquer outro artigo de fé pode ser tomado como central para a constituição das sociedades liberais ou abertas. Se as sociedades liberais ou abertas têm um pressuposto central, trata-se de algo racional e oposto à fé: trata-se, isto é, do falibilismo. Para ela, a tese do progresso é uma hipótese como outra qualquer: nem pode ser descartada nem afirmada a priori.
Entretanto, pode-se perguntar se uma sociedade crítica e moderna como a que acabo de descrever não se considera superior a uma sociedade pré-crítica e pré-moderna: e se nesse caso, ela não pressupõe que a passagem da sociedade pré-moderna para a sociedade moderna configure um progresso.
Aqui, é inevitável responder que sim. Contudo, observe-se que se trata de um progresso cognitivo; ora, o próprio John Gray admite que há progresso na ciência. Julgo, porém, que é necessário refletir melhor sobre o progresso que constitui a modernidade.
Imaginamos o progresso através da metáfora geométrica da construção de uma linha: na construção da linha A-Z, por exemplo, chega-se de A a Z através dos pontos B, C, D etc. Assim, para Marx e Engels, por exemplo, a história progride da comunidade primitiva até o comunismo através do escravagismo, do feudalismo e do capitalismo. Ora, não creio que a metáfora da linha seja adequada para pensar sobre a passagem da pré-modernidade à modernidade.
Parece-me que tal passagem seria mais apropriadamente imaginada através da metáfora astronômica que Kant usou para caracterizar a sua filosofia crítica. Trata-se, em suma, de algo como a revolução copernicana, através da qual a terra passou do centro para a periferia e o sol, da periferia para o centro do mundo.
Nada do que pode ser consistentemente submetido à dúvida, nada do que é contingente, nada do que é instável, oscilante ou precário pode ser o centro imóvel. Neste só se pode encontrar o que não é suscetível de ser consistentemente submetido à dúvida, o que é necessário, o que é fixo, firme e inconcusso. É assim que, através da revolução moderna, as crenças e os objetos das crenças, como, por exemplo, as divindades, passam do centro para a periferia, e a própria faculdade do conhecimento – tendo como núcleo a razão crítica – passa da periferia para o centro. É uma mudança de perspectiva.
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18.5.08
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