A seguinte entrevista, que dei para a Revista E, do SESC de São Paulo, foi publicada em junho.
1 - Em entrevista à Revista E a professora Walnice Nogueira Galvão afirmou que a poesia tem sorte. Por não ser um objeto de consumo comercial, pouco vendida, os poetas a fazem sem o peso da indústria cultural, que a tudo comercializa e esteriliza. E que por isso a qualidade da poesia é superior à da prosa. O que você pensa a respeito desta visão?
É verdade que não se faz poesia por dinheiro. É mais comum fazê-la por amor. Isso é sem dúvida uma peculiaridade importante da poesia. Contudo, ocorre, em primeiro lugar, que mesmo algo que não seja desprovido de valor comercial pode ser feito apenas por amor; tanto que é impossível dizer que nenhum dos romances que já foram best-sellers tenha valor estético; ou que as telas que Picasso pintou na década de 1950, e que já então valiam fortunas, não tenham valor estético; etc.
Em segundo lugar, ocorre que o fato de que algo não tenha valor comercial não significa que ele não possa ser feito em troca de outras moedas, que não o dinheiro; tais são os aplausos, a fama, o prestígio etc. Há, por exemplo, poetas que escrevem para adular determinado público ou para, correspondendo às exigências de determinados críticos ou modas, ganhar elogios.
Finalmente, em terceiro lugar, não devemos confundir ética com estética. É verdade que, como diz Augusto de Campos, o poeta não deve ir atrás de recompensas. De maneira geral, a heteronomia atrapalha. Mas, para o bem ou para o mal, a verdade escandalosa é que, em matéria de arte, nem as boas intenções, a boa fé, a honestidade, a ética, o amor etc., garantem coisa nenhuma, nem as más intenções estragam tudo.
2 – A reunião da obra, em bons volumes, de poetas antes citados como marginais, caso de Roberto Piva, Chacal e mesmo Paulo Leminsky, mostra que essa geração passou a ser melhor compreendida, que suas rebeldias foram deglutidas?
Creio que, a longo prazo, a rejeição provinciana de tudo o que não se conforma às convenções em voga tende a ser superada, e os bons poetas tendem a ser reconhecidos. De todo modo, os poetas ditos “marginais” eram muito diferentes uns dos outros. A marginalidade que tinham em comum era sobretudo uma marginalidade em relação ao circuito editorial. Pensando bem, o fato, observado pela Walnice Nogueira Galvão, de que praticamente nenhum livro de poemas é objeto de consumo comercial faz de praticamente toda poesia uma atividade relativamente marginal.
3 – Já há algum tempo a poesia que é praticada no Brasil não está sintonizada com nenhum movimento literário. Cada um faz a sua poesia em seu canto. Como leitor, você enxerga alguma característica marcante nesta produção? Seria ela mais lírica?
Não enxergo nenhuma única característica marcante. Pode ser que no futuro se enxergue. Hoje não é possível. Há de tudo. Penso que o resultado da experiência das vanguardas, independentemente das intenções delas, foi o de mostrar que não é possível a priori receitar as formas com que os bons poemas devem ser feitos. Um soneto pode ser mais criativo que um poema hologramático. É preciso julgar caso a caso. Os poetas contemporâneos não podem deixar de saber disso.
4 – A poesia é um gênero mais sofisticado que a prosa, que requer um entendimento mais elaborado do leitor. Você acredita que uma das razões de se ler pouca poesia seja pelo fato de ser pouco ministrada na escola? Poesia se aprende na escola?
Acho em princípio é possível ensinar a ler poesia na escola. A maior parte das pessoas é analfabeta, em relação à leitura de poesia. A leitura de um poema, mesmo quando efetuada em voz baixa ou interior, não se compara às demais experiências de leitura. Não se lê um poema como se lê uma notícia de jornal, uma bula de remédio, uma carta, um ensaio. Lido desses modos, um poema é uma chatice. A leitura de um poema, mesmo em voz baixa, mesmo “para dentro”, deve levar em conta a sua sonoridade. E ela deve ser progressiva e regressiva, prestando atenção a todos os elementos semânticos e sintáticos, formais e materiais, descritivos e alusivos de que o poema é composto. O bom leitor permite que o bom poema o transporte para uma temporalidade diferente da temporalidade cotidiana. Os professores devem ser preparados para ensinar essas coisas aos alunos.
5 – De repente um poeta como W.H.Auden se torna popular, ou quase, porque foi citado num filme como Quatro casamentos e um funeral. É válido este tipo de carona para se popularizar a poesia?
Sim. Por que não? Muita gente diz que passou a gostar de poesia a partir de uma experiência dessa natureza. Outros dizem que passaram a ler poesia depois de prestarem atenção a letras de canções. A partir dessas experiências, cada qual abre – ou não – o seu caminho pela poesia.
6 - A filosofia está na moda? Autores como Allain de Botton e Luc Ferry se tornaram best-sellers ao apresentar aspectos da filosofia numa mais acessível.
Não sei. A palavra “filosofia” quer dizer muitas coisas. Pensar, de maneira geral, sobre o sentido da vida, por exemplo, é chamado “filosofia”. Acho que esses autores talvez ajudem as pessoas a fazer a transição entre tal filosofia espontânea, prática, e a filosofia teórica.
7 - Parece que a filosofia – já houve essa acusação – está sendo usada como instrumento de autoajuda. Para se compreender o amor, o desamor e até angústias contumazes do ser. Você enxerga algo de ruim neste tipo de utilização?
O filósofo Boris Groys pensa que hoje só há lugar para esse tipo de filosofia, e não mais para a filosofia crítica (quando digo “filosofia crítica” não estou necessariamente me refindo à Escola de Franfurt, que é apenas uma espécie de filosofia crítica). Seria um desastre, se as coisas fossem como Groys diz, pois, do meu ponto de vista, a verdadeira filosofia teria deixado de existir. Penso, como Heidegger, que o sentido da filosofia não é tornar as coisas mais fáceis, mas mais difíceis.
Mas não creio que Groys tenha razão, e que hoje só haja lugar para a autoajuda. Pouco me importa que haja quem use a filosofia como autoajuda. Cada um que use como quiser os textos que estão no mundo. Por outro lado, reservo-me o direito de eventualmente criticar um ou outro desses usos. A mim interessa principalmente a filosofia crítica.
8 - Um filósofo e escritor como Nietzsche transformou-se num verdadeiro postulado pop – é citado por poetas, músicos etc. Suas ideias parecem encontrar uma forte ressonância em nossos tempos. Você saberia dizer o por que de tanto sucesso do bom Nietzsche?
São sem dúvida muitas as razões desse sucesso.
Primeiro, ele se tornou uma moda filosófica francesa, lançada por pensadores badalados como Deleuze e Foucault. Como tantas outras modas filosóficas francesas, importamos também essa.
Segundo, acho que uma das razões pelas quais essa moda “colou” é que algumas proposições de Nietzsche são tomadas precisamente como receitas de autoajuda.
Terceiro, Nietzsche é um grande escritor e poeta, e os seus textos são quase todos claros, em comparação com os textos dos filósofos sistemáticos.
Quarto, seu “vitalismo”, sua afirmação da vida, agrada exatamente a quem não tem a “paciência do conceito”: que é a maior parte da humanidade.
Quinto, ele soa paradoxal, iconoclástico e revolucionário.
Sexto, o seu “perspectivismo” corresponde ao relativismo dominante hoje.
Sétimo, ele não se importa de se contradizer e muda frequentemente de ponto de vista, de modo que se pode extrair praticamente qualquer coisa que se queira do pensamento dele.
Há outras razões, é claro, mas essas me são bem evidentes. Tome-se, por exemplo, a afirmação, que se encontra em “Além do bem e do mal”, de que “a falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele. [...] A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida”. A ideia de ter a vida como critério não é exatamente uma receita de autoajuda? E se trata de um texto claro, vitalista, paradoxal, iconoclástico, revolucionário, relativista, que defende a falsidade, logo, a autocontradição, como condição de vida.
Por falar em Nietzsche, acaba de ser publicada em português a obra monumental do Domenico Losurdo, “Nietzsche: o rebelde aristocrata”. Ela deve mexer um pouco com os nossos revolucionários nietzscheanos, pois Losurdo prova documentalmente algo que qualquer um que tenha lido o próprio Nietzsche, e não apenas os seus epígonos, deveria saber, mas não sabe: que ele foi “o mais reacionário dentre os pensadores”.
9 - Aliás, qual é o seu filósofo predileto? Por que?
O que mais gosto de ler é Platão, pela sua prosa maravilhosa. Na verdade, gosto de ler todos os grandes filósofos, mas penso que o maior é Kant. Ele levou às últimas consequências a razão crítica liberada pela filosofia moderna. Entre outras coisas, Kant fundamentou o princípio do direito como liberdade, instituiu a estética moderna e estabeleceu a autonomia da arte. Ninguém jamais o superou em agudeza analítica ou imaginação criativa.
10 - Costuma-se dizer que as décadas de 80 e 90 foram períodos consagrados ao Eu, enquanto os primeiros anos deste século foram marcados pelo consumo e mercado. Você acredita que neste contexto haja ainda espaço para utopias?
Pelo menos as utopias tradicionais perderam o sentido, independentemente de egoísmos ou consumismos. Depois de tantas experiências políticas frustrantes e desastrosas, que custaram milhões de vidas e imenso sofrimento, a ideia de transformar rápida e radicalmente o mundo já não encanta tanta gente. Isso não significa que o mundo não possa ser mudado. Não só ele pode ser mudado, mas tem mudado o tempo todo. Agora mesmo, nos Estados Unidos, conseguiu-se algo que parecia impossível, dada a organização e agressividade das forças reacionárias daquele país: a aprovação do plano de seguro social universal defendido por Obama. Isso é uma mudança para melhor dos Estados Unidos. Penso que, no lugar das utopias tradicionais, temos que garantir a possibilidade de um reformismo permanente.
11 - Afirma-se que nossa época seja marcada pelo conformismo, ditado pelo excesso de consumo e baixa discussão política. Seria essa uma das razões para explicar um momento cultural nomeado pela crítica como vazio e sem grandes desafios?
Tem-se sempre uma visão obscura e indefinida do presente, mas relativamente definida e clara do passado. Já aprendemos a reconhecer a genialidade de certas ideias, obras e pessoas do passado, mas não do presente, que, por isso, nos parece sem graça. Por exemplo, o final do século 19 – quando estavam vivos e produtivos gênios como Mallarmé, Cézanne, Husserl, Freud etc. – era, na época, considerado pelo filósofo austríaco Otto Weininger como “um tempo que não possuía mais nenhum grande artista, nenhum grande filósofo; tempo desprovido de originalidade”.
12 - De outro lado sempre é lembrada a década de 1980 como um período culturalmente rico. Você acredita que isso tenha ocorrido pela luta política contra a ditadura e portanto a cultura, nos tempos atuais, esteja meio sem alvo a ser contestado?
Durante a própria década de 80, ninguém a achava um período culturalmente rico. Ao contrário, ela era tida como a época do triunfo da ideologia yuppie, época absolutamente frívola e sem esperança.
13 - Você morou nos Estados Unidos durante sua infância (me corrija se falei errado). Queria que você comentasse um pouco desse período e se algo o marcou.
Vivi lá na adolescência. O melhor foi ter aprendido bem inglês e a literatura de língua inglesa, mas não me adaptei bem ao high school. Eu praticamente não tinha vida social com os colegas. Meu pai tinha uma grande biblioteca e eu gostava de ficar em casa sozinho, lendo. Mas alguns dos momentos mais marcantes que passei nos Estados Unidos se deram quando meu pai, (que foi um dos intelectuais que haviam fundado, na década de 1950, o Instituto Social de Estudos Superiores -- ISEB), recebia seus amigos brasileiros que passavam por Washington, entre os quais Hélio Jaguaribe, Celso Furtado e Rômulo Almeida. Todos eles moravam em diferentes cidades dos Estados Unidos, e de vez em quando todos se encontravam lá em casa. Para mim era uma festa. Eu era ouvinte entusiasmado das conversas deles.
14 - Você mantém alguma relação intelectual com a poesia americana da década de 1970 e 80?
Já li ou leio alguns poetas dessa época, como John Ashbery (que uma vez eu e Waly Salomão trouxemos ao Brasil, para participar de uma mesa com João Cabral e Joan Brossa, no MAM do Rio), Charles Bernstein, James Fenton, James Tate.
15 - Você mantém a produção de letras de música? O interesse por esse veículo artístico permanece?
Permanece. Mas gosto mais de escrever poesia para ser lida. Amo e admiro meus parceiros, mas gosto de escrever textos que sejam fins em si, sem estar ligados a música nenhuma. Os poemas são autotélicos, isto é, têm sua finalidade em si; já as letras são heterotélicas, isto é, têm sua finalidade noutra coisa, que é a canção.
16 - Dos seus companheiros de viagem, como letristas, na música brasileira, com quem melhor você se identifica: Cazuza ou Arnaldo Antunes?
Uma parte de mim se identifica com um e outra, com o outro. Gosto de ambos.
17 - Letra de música é poesia? Ou é apenas letra de música?
Letra de música é letra de música. Agora, nada impede que haja letras de música que, quando lidas, sejam poemas e, mesmo, grandes poemas, melhores do que a maior parte dos poemas feitos para serem lidos. Não nos esqueçamos de que os poemas líricos gregos eram letras de música. Hoje consideramos os poemas de Safo ou Teógnis obras primas. Ora, eles foram feitos como letras de música.
Mas as letras que servem para a leitura não são necessariamente melhores do que as que não servem para tanto. Uma boa letra de música é simplesmente uma letra que, junto com a sua melodia, constitui uma boa canção. Por outro lado, um poema bom para ser lido pode, ao ser musicado, tornar-se uma letra boa ou ruim. E pode ser uma letra ruim, mesmo que seja um poema bom.
18 - A pergunta que não quer calar: Caetano ou Chico?
Gosto muito de Chico, mas, para mim, Caetano é o maior de todos.
19 - Chico ou Aldir Blanc?
Chico. Mas algumas letras de Aldir, como “Incompatibilidade de gênios”, são geniais.
20 – Fala-se sempre de romance de uma geração. No seu caso, existe alguma letra de música de sua geração? Algo que você leia, ou ouça, e a flagre como um momento de seu tempo?
Sim. “Vapor barato”, do Waly Salomão. A música é do Macalé e a gravação que me arrepia é a da Gal Costa no Disco do show Fatal.
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21.3.10
A antifilosofia
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 20 de março. A versão aqui postada é mais longa do que a impressa que, por limitações de espaço, teve que ser um pouco abreviada.
A antifilosofia
O ROMANCISTA espanhol Javier Cercas, comentando que o pior vício que um filósofo pode ter é se esforçar para ser interessante, observava que "dizer que os homens buscam a felicidade é enfadonho e pouco original, porque os filósofos o dizem pelo menos desde Aristóteles, mas tem a vantagem de ser certo; reivindicar a infelicidade, a doença e a velhice, como faz agora o filósofo alemão Boris Groys, tencionando discordar do discurso dominante da apoteose juvenil, é sem dúvida original, mas tem a desvantagem de ser uma bobagem".
Lembrei-me disso ao ler um livro de Groys recentemente publicado na Alemanha, cujo título em português seria "Introdução à antifilosofia". A observação de Cercas se refere a outra obra desse autor, mas a busca da originalidade a qualquer preço também se encontra no livro mais recente.
Groys fala das "verdades" como produtos oferecidos no mercado. Na Grécia antiga, segundo ele, os sofistas produziam verdades para o mercado. Ao contrário deles, Sócrates se definia como filósofo, isto é, como aquele que ama a verdade, mas não a possui ou produz, ou como aquele que está disposto a adquirir verdades, desde que se convença de que o que lhe oferecem como verdade é o produto autêntico, e não uma falsificação. Assim, a diferença entre o sofista e o filósofo é que este é o consumidor crítico, enquanto aquele é o produtor de verdades.
Contudo, para Groys, o simples fato de descobrir que uma verdade funciona como mercadoria – a descoberta dos interesses econômicos por trás da formulação e da divulgação de uma doutrina – já bastaria para que Sócrates a recusasse. "De Sócrates, através de Marx, até a teoria crítica frankfurtiana", afirma Groys, "pensa-se que a verdade, quando se dá como mercadoria, não é verdade". Isso significa, segundo ele, que não há verdade, pois na economia mercantil nenhuma verdade escapa à condição de mercadoria. A própria filosofia, inclusive a de Sócrates, justamente na medida em que é consumidora crítica de verdades, também faz das verdades mercadorias.
Groys diz que é a partir da compreensão desse fato que surge a antifilosofia. Esta não funciona através da crítica, mas da ordem ou comando. Ordena-se, por exemplo, a transformar o mundo, em vez de explicá-lo (Marx); ou a proibir todas as questões filosóficas e calar sobre o que não pode ser dito (Wittgenstein); ou a transformar o próprio corpo num corpo sem órgãos e pensar de modo rizomático, e não lógico (Deleuze); etc. A verdade - não mais mercantil - somente se revela quando a ordem é obedecida. Primeiro vem o salto à fé; depois se manifesta a verdade da religião. Quem se recusa a obedecer permanece para sempre no escuro e não pode sequer criticar a ordem, pois não a compreende propriamente. A decisão primeira é vital, não filosófica. Creio, de fato, reconhecer esse tipo de irracionalismo decisionista em antifilósofos contemporâneos como Alain Badiou e Slavoj Zizek, que sincretizam Paulo de Tarso e Lenin, Robespierre e Mao Tse-tung.
A mesma recusa do pensamento crítico opera hoje, segundo Groys, não somente nas religiões e ideologias políticas, mas em livros que receitam pensamentos positivos, estratégias de mercado, indicações sobre o combate contra o império americano com a ajuda das "multidões" (Hardt e Negri), comportamentos adequados para os ativistas da esquerda ou da direita etc. Em última análise, as ordens da antifilosofia são conselhos de autoajuda.
Se a antifilosofia é como Groys a descreve, então devemos dizer que ela se baseia numa falácia (coisa que pouco lhe importa, já que ela despreza a crítica, a razão e a lógica). É que, assim como o fato de que todo pato seja animal não significa que todo animal seja pato, o fato de que toda avaliação de mercadorias seja uma espécie de pensamento crítico não significa que todo pensamento crítico seja uma espécie de avaliação de mercadorias; e o fato de que as mercadorias possam ser objetos da crítica não significa que todos os objetos da crítica sejam mercadorias.
Além disso, por que aceitar, sem mais, que as verdades sejam “produzidas” e não descobertas? E que sejam “produzidas” pelos sofistas e “consumidas” pelos filósofos? De onde Groys tira que os filósofos não descobrem ou pretendem descobrir verdades, de modo que se reduzem a meros “consumidores” de verdades “produzidas” por outros? Ou ainda que não sejam críticos os pensamentos dos “antifilósofos” que cita, ou de que eles não tentem provar as suas teses?
Ao escrever o livro em questão, Groys não se considerou antifilósofo, mas fenomenólogo. Ele pretende estar simplesmente a descrever, sem julgar, o que se passa. Mas talvez o modo mais generoso de entender suas teses seja tomá-las como, no fundo, irônicas em relação ao que chama de antifilosofia. Afinal, segundo ele, seus antifilósofos teriam rejeitado a filosofia porque pensavam ter descoberto seu caráter de mercadoria. Mas quem ignora que, entre os livros vendáveis – logo, que se realizam como mercadorias –, os de autoajuda superam, de longe, os de filosofia?
De modo menos generoso, mas mais sincero, diríamos que Groys é simplesmente cínico (no sentido moderno e vulgar dessa palavra). Ele não prova nada do que diz e, como observou Cercas, parece preocupado apenas com a originalidade de suas ideias. Para que? Evidentemente, para melhor “vendê-las”.
A antifilosofia
O ROMANCISTA espanhol Javier Cercas, comentando que o pior vício que um filósofo pode ter é se esforçar para ser interessante, observava que "dizer que os homens buscam a felicidade é enfadonho e pouco original, porque os filósofos o dizem pelo menos desde Aristóteles, mas tem a vantagem de ser certo; reivindicar a infelicidade, a doença e a velhice, como faz agora o filósofo alemão Boris Groys, tencionando discordar do discurso dominante da apoteose juvenil, é sem dúvida original, mas tem a desvantagem de ser uma bobagem".
Lembrei-me disso ao ler um livro de Groys recentemente publicado na Alemanha, cujo título em português seria "Introdução à antifilosofia". A observação de Cercas se refere a outra obra desse autor, mas a busca da originalidade a qualquer preço também se encontra no livro mais recente.
Groys fala das "verdades" como produtos oferecidos no mercado. Na Grécia antiga, segundo ele, os sofistas produziam verdades para o mercado. Ao contrário deles, Sócrates se definia como filósofo, isto é, como aquele que ama a verdade, mas não a possui ou produz, ou como aquele que está disposto a adquirir verdades, desde que se convença de que o que lhe oferecem como verdade é o produto autêntico, e não uma falsificação. Assim, a diferença entre o sofista e o filósofo é que este é o consumidor crítico, enquanto aquele é o produtor de verdades.
Contudo, para Groys, o simples fato de descobrir que uma verdade funciona como mercadoria – a descoberta dos interesses econômicos por trás da formulação e da divulgação de uma doutrina – já bastaria para que Sócrates a recusasse. "De Sócrates, através de Marx, até a teoria crítica frankfurtiana", afirma Groys, "pensa-se que a verdade, quando se dá como mercadoria, não é verdade". Isso significa, segundo ele, que não há verdade, pois na economia mercantil nenhuma verdade escapa à condição de mercadoria. A própria filosofia, inclusive a de Sócrates, justamente na medida em que é consumidora crítica de verdades, também faz das verdades mercadorias.
Groys diz que é a partir da compreensão desse fato que surge a antifilosofia. Esta não funciona através da crítica, mas da ordem ou comando. Ordena-se, por exemplo, a transformar o mundo, em vez de explicá-lo (Marx); ou a proibir todas as questões filosóficas e calar sobre o que não pode ser dito (Wittgenstein); ou a transformar o próprio corpo num corpo sem órgãos e pensar de modo rizomático, e não lógico (Deleuze); etc. A verdade - não mais mercantil - somente se revela quando a ordem é obedecida. Primeiro vem o salto à fé; depois se manifesta a verdade da religião. Quem se recusa a obedecer permanece para sempre no escuro e não pode sequer criticar a ordem, pois não a compreende propriamente. A decisão primeira é vital, não filosófica. Creio, de fato, reconhecer esse tipo de irracionalismo decisionista em antifilósofos contemporâneos como Alain Badiou e Slavoj Zizek, que sincretizam Paulo de Tarso e Lenin, Robespierre e Mao Tse-tung.
A mesma recusa do pensamento crítico opera hoje, segundo Groys, não somente nas religiões e ideologias políticas, mas em livros que receitam pensamentos positivos, estratégias de mercado, indicações sobre o combate contra o império americano com a ajuda das "multidões" (Hardt e Negri), comportamentos adequados para os ativistas da esquerda ou da direita etc. Em última análise, as ordens da antifilosofia são conselhos de autoajuda.
Se a antifilosofia é como Groys a descreve, então devemos dizer que ela se baseia numa falácia (coisa que pouco lhe importa, já que ela despreza a crítica, a razão e a lógica). É que, assim como o fato de que todo pato seja animal não significa que todo animal seja pato, o fato de que toda avaliação de mercadorias seja uma espécie de pensamento crítico não significa que todo pensamento crítico seja uma espécie de avaliação de mercadorias; e o fato de que as mercadorias possam ser objetos da crítica não significa que todos os objetos da crítica sejam mercadorias.
Além disso, por que aceitar, sem mais, que as verdades sejam “produzidas” e não descobertas? E que sejam “produzidas” pelos sofistas e “consumidas” pelos filósofos? De onde Groys tira que os filósofos não descobrem ou pretendem descobrir verdades, de modo que se reduzem a meros “consumidores” de verdades “produzidas” por outros? Ou ainda que não sejam críticos os pensamentos dos “antifilósofos” que cita, ou de que eles não tentem provar as suas teses?
Ao escrever o livro em questão, Groys não se considerou antifilósofo, mas fenomenólogo. Ele pretende estar simplesmente a descrever, sem julgar, o que se passa. Mas talvez o modo mais generoso de entender suas teses seja tomá-las como, no fundo, irônicas em relação ao que chama de antifilosofia. Afinal, segundo ele, seus antifilósofos teriam rejeitado a filosofia porque pensavam ter descoberto seu caráter de mercadoria. Mas quem ignora que, entre os livros vendáveis – logo, que se realizam como mercadorias –, os de autoajuda superam, de longe, os de filosofia?
De modo menos generoso, mas mais sincero, diríamos que Groys é simplesmente cínico (no sentido moderno e vulgar dessa palavra). Ele não prova nada do que diz e, como observou Cercas, parece preocupado apenas com a originalidade de suas ideias. Para que? Evidentemente, para melhor “vendê-las”.
14.9.08
Javier Cercas: trecho de "Todo eran campos"
A mí me parece que el peor vicio de los filósofos –o simplemente de eso que algunos llaman intelectuales– consiste en empeñarse en ser interesantes. Yo debo de estar muy anticuado, porque sigo pensando que la filosofía no sirve para disentir del discurso dominante, sino sólo para decir la verdad, y la verdad no siempre es interesante. Decir que todos los hombres buscan la felicidad es aburrido y poco original, porque los filósofos llevan diciéndolo por lo menos desde Aristóteles, pero tiene la ventaja de ser cierto; reivindicar la infelicidad, la enfermedad y la vejez, como hace ahora el filósofo alemán Boris Groys para disentir del discurso dominante de la apoteosis juvenil –no por la alegría de que esas tres tristes cosas formen parte de la vida–, es desde luego original, pero tiene la desventaja de ser una tontería incapaz de sobrevivir al contraste de la experiencia personal: como todo el mundo, cuando yo tenía 18 años era un príncipe sin miedo; como todo el mundo, ahora que tengo 46 no soy más que un mendigo que, como decía el filósofo Cioran, apenas está aprendiendo a convertir sus terrores en sarcasmos.
De: CERCAS, Javier. "Todo eran campos". El País Semanal. Madrid, 7/9/2008.
De: CERCAS, Javier. "Todo eran campos". El País Semanal. Madrid, 7/9/2008.
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