29.3.20

Felipe Fortuna: "Sem"




Sem


Quisera escrever branco em branco

e ainda assim mudar de linha.

O verso interpretado, a música

conduzida no ar como um salto,

mas cada palavra invisível.



(         ). Equilibrar

Vogais de cores corrompidas,

e a sílaba desaparece

Quando é lida. Quisera então

Escrever o poema sem.






FORTUNA, Felipe. "Sem". In:_____. Em seu lugar. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Barléu, 2005.

25.3.20

Johann Wolfgag von Goethe: "Elfenlied" /"Canção dos elfos": trad. de Paulo Quintela




Canção dos elfos


À meia-noite, quando já os homens dormem,
É então para nós que a lua brilha,
Que para nós a estrela começa a cintilar;
Vagueamos e cantamos
E é então que gostamos de dançar.

À meia-noite, quando já os homens dormem,
Sobre prados, junto aos alnos,
Buscamos o nosso lugar,
Vagueamos e cantamos
E dançamos um sonho de luar.




Elfenlied


Um Mitternacht, wenn die Menschen erst schlafen,
Dann scheinet uns der Mond,
Dann leuchtet uns der Stern;
Wir wandeln und singen,
Und tanzen erst gern.

Um Mitternacht, wenn die Menschen erst schlafen,
Auf Wiesen an den Erlen
Wir suchen unsern Raum
Und wandeln und singen
Und tanzen einen Traum.





GOETHE, Johann Wolfgang von. "Elfenlied" / "Canção dos elfos". In:_____. Poemas. Antologia. Org. e trad. por Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.



22.3.20

Rogério Batalha: "Inútil reclamar"




Inútil reclamar


inútil reclamar
se o que se foi é nuvem
que se enruga ao bel prazer
e como tal é viagem que não cessa.

inútil reclamar
se o corpo que é feito de trevas
e varandas
no fundo sempre se orna de esperanças.

inútil reclamar
se o que se perde se veste do bagaço do vivido
e é justamente daí – que reacende –
seu facho perdido.





BATALHA, Rogério. "Inútil reclamar". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: TextoTerritório, 2016.

20.3.20

Salgado Maranhão: "A pelagem da tigra"






A pelagem da tigra

São feitas de crisântemos as fibras
desse fogo que se molda à palavra
(e a esse jogo em que o amor se equilibra
como se a vida, então, lhe fosse escrava);
ou, talvez, da pelagem de uma tigra
(que ocultasse um vulcão em sua lava)
para blefar que fica enquanto migra
para fingir que beija quando crava.
Mas isto são hipóteses ou arenga
ao que se queira e não está à venda:
um terçar de lábios na carne brusca.
São só pegadas do que seja a lenda
de algum tesouro que se nos ofusca,
que ao tê-lo não se tenha mais que a busca.






MARANHÃO, Salgado. "A pelagem da tigra". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

18.3.20

Paulo Henriques Britto: Da série "Caderno". I




Da série Caderno



I

Escrevo nas nuvens.
Tenho um caderno sempre aberto numa nuvem,
e nele escrevo. É nuvem, não papel.

Mas as palavras são de terra. Escrevo terra,
mesmo escrevendo nas nuvens.
Só às palavras-terra me aferro.

Outras sei que são só som:
são ar. E há também as pura tinta
descarnada. Que são água.

A água é boa e o ar é bom.
A carne é terra: também soa,
também sobe às nuvens, certo,

e arde como a chama mais impura.
Porém é terra. E só palavras-terra
me aterram.





BRITTO, Paulo Henriques. Da série Caderno. I. In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

16.3.20

Antonio Cicero: "Canção do amor impossível"



Canção do amor impossível



Como não te perderia

se te amei perdidamente

se em teus lábios eu sorvia

néctar quando sorrias

se quando estavas presente

era eu que não me achava

e quando tu não estavas

eu também ficava ausente

se eras minha fantasia

elevada à poesia

se nasceste em meu poente

como não te perderia





CICERO, Antonio. "Canção do amor impossível". In:_____. SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

14.3.20

Antonio Carlos Secchin: "Com todo o amor..."




Com todo o amor...


Com todo o amor de Amaro de Oliveira.
São Paulo, 2 de abril de 39.
O autógrafo se espalha em folha inteira,
enredando o leitor, que se comove,

não na história narrada pelo texto,
mas na letra do amor, que agora move
a trama envelhecida de outro enredo,
convidando uma dama a que o prove.

Catharina, Tereza, Ignez, Amália?
Não se percebe o nome, está extinta
a pólvora escondida na palavra,

na escrita escura do que já fugiu:
Perdido entre os papéis de minha casa,
Amaro ama alguém no mês de abril.





SECCHIN, Antonio Carlos. "Com todo o amor". In: SABINO, Paulo et al. (orgs.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

12.3.20

Adriano Espínola: "Língua mar"




Língua-mar


A língua em que navego, marinheiro,

na proa das vogais e consoantes,

é a que me chega em ondas incessantes

à praia deste poema aventureiro.

É a língua portuguesa, a que primeiro

transpôs o abismo e as dores velejantes,

no mistério das águas mais distantes,

e que agora me banha por inteiro.

Língua de sol, espuma e maresia,

que a nau dos sonhadores-navegantes

atravessa a caminho dos instantes,

cruzando o Bojador de cada dia.

Ó língua-mar, viajando em todos nós!

No teu sal, singra, errante, a minha voz.





ESPÍNOLA, Adriano. "Língua-mar". In: SABINO, Paulo et al. (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

10.3.20

Geraldo Carneiro: "o elogio dos soníferos"




o elogio dos soníferos

soníferos eu lanço contra as feras
que me devoram a solidez do sono.
a solidão em si não me apavora.
os outros são o inferno, o purgatório
e às vezes são também o paraíso.
não sei do inverno que virá ou não
virá, ainda não formei juízo.
aliás, juízo sempre me faltou
e há de faltar, espero, até a morte,
esse capítulo da história natural,
contra o qual não farei rebelião.
amparo metafísico? não tenho.
invejo o céu, a dança das esferas,
morro de inveja do Ptolomeu,
vagando a salvo nas cosmologias
com Deus no centro, o resto ao seu redor.
não tenho centro, cetro ou direção.
a mim só não me falta coração





CARNEIRO, Geraldo. "o elogio dos soníferos". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

8.3.20

Antonio Cicero: orelhas do livro "Alguns poemas e + alguns", de Jorge Salomão




Eis o que escrevi, em 2016, nas orelhas do livro Alguns poemas e + alguns, de Jorge Salomão:




EU NÃO SOU UM POETA,
diz Jorge Salomão no primeiro poema de alguns poemas e + alguns,

sou um malabarista
e dos piores que existem
quando vou andar no arame
logo caio no chão

É que Jorge é um poeta-malabarista: um malabarista enquanto poeta e um poeta enquanto malabarista. Ele conta que quando vai andar no arame logo cai no chão? Mas isso confirma o que digo, pois é exatamente para cair no chão que ele vai andar no arame. E o que ele faz no chão, lê-se no segundo poema do livro:

cato versos pelo chão das ruas
cato versos pelo chão de casa
cato versos dentro de mim

E o poeta-malabarista não cai apenas no chão, mas também no azul:

alguém cantando um blues
eu caindo no azul

Junto com ele, também o seu leitor, ao cair no chão do azul ou no azul do chão, redescobre o mundo. E não é esse o sentido de toda grande poesia? Assim, o leitor de alguns poemas e + alguns terá o prazer redescobrir

à moda de bandeira
a rua
o casario
a ladeira
o espelho d’água
a baía de guanabara
ou ao constatar que
como não há solução
só problemas
a questão é filosofar
e como um trapezista pular
e acreditar:
o que se passa sob o sol
é tudo ficção


É tudo ficção e é tudo verdade nos versos que o poeta-malabarista catou no chão em que faz questão de cair ou mergulhar. 



ANTONIO CICERO




In: SALOMÃO, Jorge. Alguns poemas e + alguns. Rio de Janeiro: Rubra Editora, 2016.





7.3.20

Jorge Salomão: "Tem horas que pareço eu"




Foi com enorme tristeza que eu soube, há pouco, da morte do admirável poeta e performer Jorge Salomão, que foi um dos meus maiores amigos. Publico abaixo o último poema dele, que acabo de ler, em artigo de Cláudio Leal, no site da Folha de São Paulo:



Tem horas que pareço eu


Tem horas que pareço eu
Tem horas que pareço Man Ray
Eu sou do tamanho da minha cor
Da cor da fita do Bonfim

Tem horas que me camuflo
Tem horas que sou molusco
Tem horas que nada sei
Tem horas que sou Man Ray

Tem horas Itapagipe
Tem horas Cubana
Tem horas curtindo cena
Tem horas olhando o mar

Tem horas que nada pareço, sem chão nem teto
Tem horas vários retratos
Tem horas que sou possível
Tem horas escuridão.







2.3.20

Francisco Alvim: "Bruma"




Bruma


Teu ser inconcluso
trabalha na pedra
e a pedra se esgarça
em bruma.

Tão nítida a hora
as coisas tão nítidas
tua face contudo
na bruma

Talvez tua fala
o som de teus passos
possam desfazer
a bruma

Tua fala é bruma
Teus passos são bruma




ALVIM, Francisco. "Bruma" In:_____. Sol dos cegos. Rio de Janeiro, 1968.