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12.1.10
Nicolás Gómez Dávila: de "Sucesivos escolios a un texto implícito"
Quem não se sinta herdeiro até dos seus adversários intelectuais não recolhe senão parte de sua herança.
*
Nada que tenha valor se distingue do que não o tem senão pelo próprio valor.
*
Os filósofos costumam influir mais com o que parecem ter dito que com o que na verdade disseram.
DÁVILA, Nicolás Gomez. Sucesivos escolios a un texto implícito. Barcelona: Áltera, 2002.
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Nicolás Gómez Dávila,
Valor
8.11.09
A questão dos valores
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 31 de outubro (sábado). Normalmente, eu o teria postado aqui no dia 1º de novembro, mas simplesmente me esqueci. Agradecendo a Flávio por me ter chamado atenção para esse esquecimento, posto-o hoje.
A questão dos valores
FALANDO DE obras literárias, a influente crítica norte-americana Barbara Herrnstein Smith afirma que "o valor de uma entidade para um sujeito individual, assim como o seu preço no mercado, é também o produto da dinâmica de um sistema econômico, especificamente da economia pessoal constituída pelas necessidades, pelos interesses e recursos – biológicos, psicológicos, materiais e empíricos – do sujeito".
Se fosse assim, dado que as necessidades, os interesses e os recursos dos indivíduos são bastante diversos, seria inadmissível afirmar simplesmente que uma obra fosse melhor e mais memorável do que outra. "Melhor e mais memorável para quem?", Herrnstein Smith perguntaria. "Com que direito considerar o poema "Os Lusíadas", digamos, melhor ou mais memorável que a canção "A Eguinha Pocotó", quando muita gente prefere esta?"
À pergunta sobre se não há juízos mais valiosos do que outros, ela responderia que também o valor do juízo ou da opinião de uma pessoa varia com as necessidades, os interesses e os recursos de cada uma das pessoas que o avaliam. "O valor -o "ser boa" ou "ser ruim'- de uma avaliação", diz ela, "como de qualquer outra coisa (inclusive qualquer outro tipo de enunciado), é ele próprio contingente, logo, não é uma questão de seu "valor-verdade" abstrato, mas da eficácia com que desempenha várias funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com ele".
Aparentemente, Herrnstein Smith nem sequer se dá conta de que, ao dizer tais coisas, incorre em paradoxos que solapam suas próprias teses. Com efeito, aplicando-se o que ela diz a suas teses, deve-se dizer que elas não podem ter um valor-verdade "abstrato", isto é, não podem ser simplesmente verdadeiras. No máximo, têm alguma eficácia no desempenho de algumas funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com elas.
O mais estranho é que essa atitude de desprezo em relação à verdade e a qualquer valor – atitude que poderia ao menos ter o efeito benigno de conduzi-la à humildade que lhe conviria – súbito converte-se, ao contrário, em petulância pseudocientificista e pseudodesmistificadora, às vezes bem grosseira.
Tentando, por exemplo, atacar a tese do caráter desinteressado do juízo estético, Herrnstein Smith afirma que "uma contabilidade estrita de qualquer uma dessas atividades aparentemente gratuitas levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua utilidade biológica e/ou ao seu valor para a sobrevivência (e sem dúvida a algo muito parecido com "necessidades animais'). [...] Fazê-lo aparentemente produz um lucro a longo prazo, em termos de desenvolvimento cognitivo, flexibilidade comportamental e, portanto, preparo biológico, e nossa tendência geral a praticá-las é, muito provavelmente, produto de mecanismos evolutivos".
Ou seja, embora seus argumentos constituam uma malsucedida tentativa de solapar a possibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro, Herrnstein Smith aceita piamente as teses vulgares do determinismo biologista mais rasteiro e questionável, apto a fazer qualquer marxista sério morrer de vergonha, e as toma por aríetes capazes de demolir a "Crítica do Juízo".
Pergunto-me que pertinaz preconceito positivista leva hoje tantos professores de literatura a preferir sempre dar a razão às mais rasas das "ciências cognitivas", psicologias, sociologias ou antropologias, contra a filosofia.
Ao leitor que -para falar como a própria Barbara Herrnstein Smith- queira investigar quais são os interesses capazes de conduzir alguém a pensar como ela, recomendo a leitura de Arthur Schopenhauer, que explica, por exemplo, que a obra de arte "só fala a cada um segundo a medida de seu próprio valor intelectual; razão pela qual precisamente as obras mais excelentes de cada arte, as produções mais nobres do gênio devem permanecer um livro eternamente fechado à estúpida maioria dos seres humanos, inacessíveis a eles, deles separadas por um largo abismo. [...] É verdade que mesmo os mais tolos deixam as grandes obras valerem por confiarem na autoridade, para não trair a sua própria fraqueza: porém por dentro estão sempre prontos a exprimir o seu juízo condenatório, desde que lhes seja permitido esperar que podem fazê-lo sem se desmascarar: e então descarregam com deleite seu ódio há muito represado contra tudo o que é grande e belo e que, jamais lhes tendo dito coisa alguma, por isso mesmo humilhou-os, e contra os seus realizadores".
6.3.09
A liberdade e o juízo de valor na poesia
Publico a seguir a entrevista que dei ao Héber Sales (cujo blog de poesia, que recomendo, é o Coisas para fazer com palavras). A entrevista foi publicada pela Cronópios.
Por Héber Sales
Filósofo, poeta e compositor, parceiro, entre outros, de Marina Lima, Adriana Calcanhoto, João Bosco e Lulu Santos, Antonio Cicero publicou em 2006 o livro Finalidades sem Fim, uma obra que o coloca, a meu ver, no centro de um espaço ainda muito carente na poesia brasileira: o espaço de uma reflexão unificadora e sistemática sobre a arte. Não é uma posição fácil, já que vivemos num tempo em que todo juízo é relativizado, as grande narrativas são vistas com desconfiança e debater o gosto se tornou politicamente incorreto. Talvez por esses motivos, os ensaios de Finalidades sem Fim ainda não mereceram a devida atenção entre nós, especialmente na academia brasileira, onde eles deveriam estar sendo lidos com entusiasmo. Nesta entrevista, trago a vocês a parte central de um longo bate-papo que Antonio Cicero e eu tivemos há alguns meses. O ponto de partida foi a minha inquietação diante da sua tese do fim das vanguardas. Segundo o filósofo, não há e nem haverá mais vanguardas porque elas já cumpriram o seu papel de desprovincializar a arte e afirmar a validade de toda forma de poesia - o que não significa dizer que todo poema é bom e nem que não haja mais experimentação poética. É a partir dessa afirmação que se desenvolve a nossa sabatina com Antonio Cicero. Vamos a ela.
Héber Sales: Se, como você sustenta no livro Finalidades sem Fim, a desprovincialização da poesia nos permite todas as formas, se a poesia hoje não consiste em nenhuma forma específica, o que é poesia afinal? O que a distingue de outros gêneros?
Antonio Cicero: Tanto sobre o que distingue a poesia de outros gêneros quanto sobre o valor de um poema, um dos caminhos que tenho seguido diz respeito ao grau de escritura de um texto. Considero o poema o mais escrito dos escritos.
Héber Sales: Qual seria então, por exemplo, a diferença entre o poema e o ditado? Enquanto textos prontos e acabados, os ditados parecem compartilhar com o poema muitas das especificidades deste: 1) neles também não se separa O QUE se diz da forma COMO se diz; 2) daí serem igualmente resistentes à paráfrase e à tradução; 3) além disso, eles são entesouráveis, ou seja, são um patrimônio da língua (não sofrem de descartabilidade). A meu ver, a única diferença entre o ditado e os poema seria que, ao contrário deste, o ditado costuma ser usado com uma finalidade cognitiva ou prática. Mas essa distinção poderia ser anulada, e um ditado elevado à condição de poema, caso ele fosse apresentado como objeto sem função específica por uma pessoa socialmente autorizada para tal: ou seja, se um poeta apresentar um ditado como poema, quem irá dizer que não o é, especialmente se o autor usar padrões reconhecidamente poéticos? Será que, no final das contas, poesia não seria simplesmente aquilo que os poetas dizem ser poesia?
Antonio Cicero: Suas observações são pertinentes, você percebeu coisas importantes. Você observa que caracterizo o poema, enquanto poema, como "um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada". De fato, para mim, essa é uma das descrições que chegam mais perto de determinar o que é um poema, SEM A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER JUÍZO DE VALOR. Entretanto, não creio que seja possível determinar totalmente o que é um poema sem a utilização de juízos de valor.
Um ditado, uma vez retirado de todo contexto utilitário ou cognitivo, poderia ser considerado como um poema. Publicado numa revista literária, mesmo sem versos ou título (como os poemas concretos), ele seria considerado como poema: o que uma revista literária faz é exatamente retirá-lo de qualquer contexto utilitário ou cognitivo e apresentá-lo à apreciação estética. O mesmo ocorre, naturalmente, quando Duchamp retira um urinol do seu contexto utilitário ou cognitivo e o expõe num museu: ele passa a ser considerado como obra de arte.
Examinemos bem o que eu disse: retirado do seu contexto utilitário ou cognitivo, um objeto (que pode ser verbal, como no caso de um poema) passa a ser CONSIDERADO como se considera uma obra de arte. Será que isso quer dizer que ele já é, então, uma obra de arte? Não necessariamente. Eu posso olhar para um pretenso poema numa revista – isto é, um texto que pede para ser considerado como um poema – e dizer: isso não é um poema; é uma bobagem. E se esse juízo se generalizar, é provável que o pretenso poema seja esquecido, que acabe sendo, realmente, considerado apenas uma bobagem por todo o mundo, e que não chegue a ser visto como obra de arte.
Héber Sales: Em que condições então podemos dizer que um texto que se diz poema é um poema, e dos bons?
Antonio Cicero: O que ocorre é que não é possível determinar de modo puramente descritivo se algo é um poema ou não. Para determinar se algo é um poema, entra em jogo, além da descrição que dei acima ("um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada"), algo que pode ser objeto de discussão, mas não pode ser objeto de prova. Refiro-me a um juízo de valor. Além de ser “um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada”, um poema é um objeto que consideramos valer por si, sem necessidade de justificativa ulterior: um objeto ao qual damos valor, sem que tenhamos nenhum interesse ulterior na existência dele.
Héber Sales: E quando é que uma obra de arte vale por si?
Antonio Cicero: Quando, mesmo sem nenhuma finalidade biológica, prática ou cognitiva, ela mobiliza, vitaliza e faz interagirem no mais alto grau as nossas faculdades, as nossas capacidades, os nossos recursos. Quando ela nos atrai e nos faz pensar nela com vários dos recursos de que dispomos: inteligência, razão, cultura, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor etc. Está justamente na provocação e na mobilização dos nossos recursos o valor dela. Um poema que não faça nada disso, ou que o faça muito pouco, não é bom, ou mesmo não é um poema.
Héber Sales: Não seria esse um conceito muito subjetivo e, portanto, relativo? Ele parece justificar a posição daqueles que dizem que cada um deve decidir o que é um poema...
Antonio Cicero: Quando digo que um texto é um poema, ou que é um poema bom, não estou dizendo meramente que gosto dele, mas que todo o mundo que o considere desinteressadamente DEVE reconhecer que se trata de um poema. Se não fosse assim, valeria aqui o ditado “gosto não se discute”. Ora, todo o mundo sabe que o que mais se discute é gosto, quando se refere a obras de arte. Por outro lado, se digo “eu gosto de abacate”, não pretendo o mesmo. Não acho que todo o mundo que seja despreconceituoso DEVA gostar de abacate. É aqui que vale o ditado “gosto não se discute”.
Há, sem dúvida, muita discussão sobre determinados textos. Mas essas discussões mesmas mostram que há alguns terrenos em comum entre os que dela participam. Não se pode provar por a + b que tal texto seja um grande poema, mas milhões de páginas têm sido escritas, há séculos, para argumentar que tais ou quais textos são (ou não são) grandes poemas. Com o tempo, alguns textos acabam sendo reconhecidos QUASE universalmente como clássicos ou canônicos. São textos que entraram para a língua.
Sobre isso, quero comentar uma vez mais a sua observação sobre os ditados populares, o que pode ajudar a compreender o que quero dizer. Os gregos arcaicos, que ainda não empregavam a escrita, como Homero, usavam a mesma palavra – epos – para denominar poema épico, palavra, ditado, gnoma, canção curta etc. (Falo disso no ensaio Epos e mythos em Homero, publicado no meu livro Finalidades sem Fim). O que tinham essas coisas todas em comum? Elas eram memorizadas e, por isso, reiteráveis, ao contrário das falas cotidianas: elas faziam, por isso, parte da língua. Por que eram memorizadas? Com exceção, é claro, dos poemas e das canções, essas coisas eram memorizadas porque se considerava que tinham uma função utilitária na língua. Quem decidia? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Quem decide, ainda hoje se um sintagma qualquer entra para a língua? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Eu posso resolver inventar uma palavra nova e defini-la. Ela pode parecer muito com as outras palavras. Entretanto, não sou eu nem ninguém em particular quem decide se ela vai ser uma palavra ou não, mas o fato de que ela "pegue": de que seja, em geral, usada como uma palavra. O mesmo ocorre com um ditado.
Pois um poema entra para a língua quando se considera, QUASE universalmente, que ele vale por si.
Héber Sales: O teu livro Finalidades sem fim descortina um horizonte muito amplo para o poema. Ele nos convida a penetrar no território da poesia de maneira direta, sem que confundamos os meios (formas/modelos poéticas) com o fim (provocar o livre jogo entre as faculdades do conhecimento). Por outro lado, o conceito de poema defendido nele me parece às vezes tão largo ao ponto de confundir as fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre os gêneros. A prosa de Guimarães Rosa, por exemplo. Por que não considerá-la poema, uma vez que ela possui em alto grau aquela que para você é a virtude maior dos poemas (ser o mais escrito dos escritos)?
Antonio Cicero: Fico muito feliz de você ter gostado do Finalidades sem Fim. Concordo inteiramente com você sobre as fronteiras tradicionais entre os gêneros. Como as distinções baseadas na forma se revelaram puramente convencionais, elas se tornaram fluidas para nós. Assim, você tem toda razão em relação a Guimarães Rosa, por exemplo.
Héber Sales: Noto uma aproximação muito grande entre teu conceito de poema e a teoria de Jakobson. Refiro-me à tese de que o valor do poema não é dado pelo que ele possa dizer de alguma coisa, mas pela forma como ele o diz: nele não se pode separar significante de significado. Ora, parece-me que você está dizendo, em outras palavras, o mesmo que o russo afirmou, ou seja: que os textos poéticos distinguem-se pelo fato de terem como principal assunto a linguagem em si (o código): mesmo quando parecem dizer alguma coisa, estão, na verdade, tratando, como assunto principal, da linguagem em si e, eu acrescentaria, do poder encantatório dela. Ora, nada me parece mais verdadeiro em relação à obra de Guimarães Rosa do que isso.
Antonio Cicero: Quanto a Jakobson, você o torna mais próximo quando fala do "poder encantatório" da palavra. Mas é também possível lê-lo por um viés excessivamente formalista, que não tem tanto a ver com o que penso.
Héber Sales: Finalmente, o que a tua poesia tem a ver com o que o filósofo Antonio Cicero pensa? Em que medida ela é influenciada e moldada pelas teses que lemos nos ensaios de Finalidades sem Fim? Como se dá essa relação entre poesia e filosofia em teu trabalho? O que uma tem a dizer à outra em tua obra?
Antonio Cicero: Grande parte do que digo sobre a poesia é resultado de minhas experiências de leitura, em primeiro lugar, e de produção de poemas, em segundo lugar. Depois, em terceiro lugar, entra em jogo tudo o que li sobre a poesia, quer tenha sido por poetas, quer por teóricos, críticos, filósofos. Comparo essas teorias com minha própria experiência de ler poemas, de escrevê-los e de pensar sobre a poesia. A partir da minha formação filosófica, formulo então as minhas concepções sobre esse assunto. Naturalmente, essas concepções, retroativamente, se refletem de alguma maneira no meu modo de fazer poesia: mas penso que, em última análise, a minha experiência de leitura e de feitura de poemas é determinante em relação à teorização sobre a poesia.
Héber Sales é poeta, profissional de marketing, articulista e professor. Mantém o blog Coisas para fazer com palavras e tem textos publicados em revistas e sites como Digestivo Cultural, Portal Literal, Germina, Webinsider e Diversos Afins. E-mail: hebersales@gmail.com
Por Héber Sales
Filósofo, poeta e compositor, parceiro, entre outros, de Marina Lima, Adriana Calcanhoto, João Bosco e Lulu Santos, Antonio Cicero publicou em 2006 o livro Finalidades sem Fim, uma obra que o coloca, a meu ver, no centro de um espaço ainda muito carente na poesia brasileira: o espaço de uma reflexão unificadora e sistemática sobre a arte. Não é uma posição fácil, já que vivemos num tempo em que todo juízo é relativizado, as grande narrativas são vistas com desconfiança e debater o gosto se tornou politicamente incorreto. Talvez por esses motivos, os ensaios de Finalidades sem Fim ainda não mereceram a devida atenção entre nós, especialmente na academia brasileira, onde eles deveriam estar sendo lidos com entusiasmo. Nesta entrevista, trago a vocês a parte central de um longo bate-papo que Antonio Cicero e eu tivemos há alguns meses. O ponto de partida foi a minha inquietação diante da sua tese do fim das vanguardas. Segundo o filósofo, não há e nem haverá mais vanguardas porque elas já cumpriram o seu papel de desprovincializar a arte e afirmar a validade de toda forma de poesia - o que não significa dizer que todo poema é bom e nem que não haja mais experimentação poética. É a partir dessa afirmação que se desenvolve a nossa sabatina com Antonio Cicero. Vamos a ela.
Héber Sales: Se, como você sustenta no livro Finalidades sem Fim, a desprovincialização da poesia nos permite todas as formas, se a poesia hoje não consiste em nenhuma forma específica, o que é poesia afinal? O que a distingue de outros gêneros?
Antonio Cicero: Tanto sobre o que distingue a poesia de outros gêneros quanto sobre o valor de um poema, um dos caminhos que tenho seguido diz respeito ao grau de escritura de um texto. Considero o poema o mais escrito dos escritos.
Héber Sales: Qual seria então, por exemplo, a diferença entre o poema e o ditado? Enquanto textos prontos e acabados, os ditados parecem compartilhar com o poema muitas das especificidades deste: 1) neles também não se separa O QUE se diz da forma COMO se diz; 2) daí serem igualmente resistentes à paráfrase e à tradução; 3) além disso, eles são entesouráveis, ou seja, são um patrimônio da língua (não sofrem de descartabilidade). A meu ver, a única diferença entre o ditado e os poema seria que, ao contrário deste, o ditado costuma ser usado com uma finalidade cognitiva ou prática. Mas essa distinção poderia ser anulada, e um ditado elevado à condição de poema, caso ele fosse apresentado como objeto sem função específica por uma pessoa socialmente autorizada para tal: ou seja, se um poeta apresentar um ditado como poema, quem irá dizer que não o é, especialmente se o autor usar padrões reconhecidamente poéticos? Será que, no final das contas, poesia não seria simplesmente aquilo que os poetas dizem ser poesia?
Antonio Cicero: Suas observações são pertinentes, você percebeu coisas importantes. Você observa que caracterizo o poema, enquanto poema, como "um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada". De fato, para mim, essa é uma das descrições que chegam mais perto de determinar o que é um poema, SEM A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER JUÍZO DE VALOR. Entretanto, não creio que seja possível determinar totalmente o que é um poema sem a utilização de juízos de valor.
Um ditado, uma vez retirado de todo contexto utilitário ou cognitivo, poderia ser considerado como um poema. Publicado numa revista literária, mesmo sem versos ou título (como os poemas concretos), ele seria considerado como poema: o que uma revista literária faz é exatamente retirá-lo de qualquer contexto utilitário ou cognitivo e apresentá-lo à apreciação estética. O mesmo ocorre, naturalmente, quando Duchamp retira um urinol do seu contexto utilitário ou cognitivo e o expõe num museu: ele passa a ser considerado como obra de arte.
Examinemos bem o que eu disse: retirado do seu contexto utilitário ou cognitivo, um objeto (que pode ser verbal, como no caso de um poema) passa a ser CONSIDERADO como se considera uma obra de arte. Será que isso quer dizer que ele já é, então, uma obra de arte? Não necessariamente. Eu posso olhar para um pretenso poema numa revista – isto é, um texto que pede para ser considerado como um poema – e dizer: isso não é um poema; é uma bobagem. E se esse juízo se generalizar, é provável que o pretenso poema seja esquecido, que acabe sendo, realmente, considerado apenas uma bobagem por todo o mundo, e que não chegue a ser visto como obra de arte.
Héber Sales: Em que condições então podemos dizer que um texto que se diz poema é um poema, e dos bons?
Antonio Cicero: O que ocorre é que não é possível determinar de modo puramente descritivo se algo é um poema ou não. Para determinar se algo é um poema, entra em jogo, além da descrição que dei acima ("um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada"), algo que pode ser objeto de discussão, mas não pode ser objeto de prova. Refiro-me a um juízo de valor. Além de ser “um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada”, um poema é um objeto que consideramos valer por si, sem necessidade de justificativa ulterior: um objeto ao qual damos valor, sem que tenhamos nenhum interesse ulterior na existência dele.
Héber Sales: E quando é que uma obra de arte vale por si?
Antonio Cicero: Quando, mesmo sem nenhuma finalidade biológica, prática ou cognitiva, ela mobiliza, vitaliza e faz interagirem no mais alto grau as nossas faculdades, as nossas capacidades, os nossos recursos. Quando ela nos atrai e nos faz pensar nela com vários dos recursos de que dispomos: inteligência, razão, cultura, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor etc. Está justamente na provocação e na mobilização dos nossos recursos o valor dela. Um poema que não faça nada disso, ou que o faça muito pouco, não é bom, ou mesmo não é um poema.
Héber Sales: Não seria esse um conceito muito subjetivo e, portanto, relativo? Ele parece justificar a posição daqueles que dizem que cada um deve decidir o que é um poema...
Antonio Cicero: Quando digo que um texto é um poema, ou que é um poema bom, não estou dizendo meramente que gosto dele, mas que todo o mundo que o considere desinteressadamente DEVE reconhecer que se trata de um poema. Se não fosse assim, valeria aqui o ditado “gosto não se discute”. Ora, todo o mundo sabe que o que mais se discute é gosto, quando se refere a obras de arte. Por outro lado, se digo “eu gosto de abacate”, não pretendo o mesmo. Não acho que todo o mundo que seja despreconceituoso DEVA gostar de abacate. É aqui que vale o ditado “gosto não se discute”.
Há, sem dúvida, muita discussão sobre determinados textos. Mas essas discussões mesmas mostram que há alguns terrenos em comum entre os que dela participam. Não se pode provar por a + b que tal texto seja um grande poema, mas milhões de páginas têm sido escritas, há séculos, para argumentar que tais ou quais textos são (ou não são) grandes poemas. Com o tempo, alguns textos acabam sendo reconhecidos QUASE universalmente como clássicos ou canônicos. São textos que entraram para a língua.
Sobre isso, quero comentar uma vez mais a sua observação sobre os ditados populares, o que pode ajudar a compreender o que quero dizer. Os gregos arcaicos, que ainda não empregavam a escrita, como Homero, usavam a mesma palavra – epos – para denominar poema épico, palavra, ditado, gnoma, canção curta etc. (Falo disso no ensaio Epos e mythos em Homero, publicado no meu livro Finalidades sem Fim). O que tinham essas coisas todas em comum? Elas eram memorizadas e, por isso, reiteráveis, ao contrário das falas cotidianas: elas faziam, por isso, parte da língua. Por que eram memorizadas? Com exceção, é claro, dos poemas e das canções, essas coisas eram memorizadas porque se considerava que tinham uma função utilitária na língua. Quem decidia? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Quem decide, ainda hoje se um sintagma qualquer entra para a língua? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Eu posso resolver inventar uma palavra nova e defini-la. Ela pode parecer muito com as outras palavras. Entretanto, não sou eu nem ninguém em particular quem decide se ela vai ser uma palavra ou não, mas o fato de que ela "pegue": de que seja, em geral, usada como uma palavra. O mesmo ocorre com um ditado.
Pois um poema entra para a língua quando se considera, QUASE universalmente, que ele vale por si.
Héber Sales: O teu livro Finalidades sem fim descortina um horizonte muito amplo para o poema. Ele nos convida a penetrar no território da poesia de maneira direta, sem que confundamos os meios (formas/modelos poéticas) com o fim (provocar o livre jogo entre as faculdades do conhecimento). Por outro lado, o conceito de poema defendido nele me parece às vezes tão largo ao ponto de confundir as fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre os gêneros. A prosa de Guimarães Rosa, por exemplo. Por que não considerá-la poema, uma vez que ela possui em alto grau aquela que para você é a virtude maior dos poemas (ser o mais escrito dos escritos)?
Antonio Cicero: Fico muito feliz de você ter gostado do Finalidades sem Fim. Concordo inteiramente com você sobre as fronteiras tradicionais entre os gêneros. Como as distinções baseadas na forma se revelaram puramente convencionais, elas se tornaram fluidas para nós. Assim, você tem toda razão em relação a Guimarães Rosa, por exemplo.
Héber Sales: Noto uma aproximação muito grande entre teu conceito de poema e a teoria de Jakobson. Refiro-me à tese de que o valor do poema não é dado pelo que ele possa dizer de alguma coisa, mas pela forma como ele o diz: nele não se pode separar significante de significado. Ora, parece-me que você está dizendo, em outras palavras, o mesmo que o russo afirmou, ou seja: que os textos poéticos distinguem-se pelo fato de terem como principal assunto a linguagem em si (o código): mesmo quando parecem dizer alguma coisa, estão, na verdade, tratando, como assunto principal, da linguagem em si e, eu acrescentaria, do poder encantatório dela. Ora, nada me parece mais verdadeiro em relação à obra de Guimarães Rosa do que isso.
Antonio Cicero: Quanto a Jakobson, você o torna mais próximo quando fala do "poder encantatório" da palavra. Mas é também possível lê-lo por um viés excessivamente formalista, que não tem tanto a ver com o que penso.
Héber Sales: Finalmente, o que a tua poesia tem a ver com o que o filósofo Antonio Cicero pensa? Em que medida ela é influenciada e moldada pelas teses que lemos nos ensaios de Finalidades sem Fim? Como se dá essa relação entre poesia e filosofia em teu trabalho? O que uma tem a dizer à outra em tua obra?
Antonio Cicero: Grande parte do que digo sobre a poesia é resultado de minhas experiências de leitura, em primeiro lugar, e de produção de poemas, em segundo lugar. Depois, em terceiro lugar, entra em jogo tudo o que li sobre a poesia, quer tenha sido por poetas, quer por teóricos, críticos, filósofos. Comparo essas teorias com minha própria experiência de ler poemas, de escrevê-los e de pensar sobre a poesia. A partir da minha formação filosófica, formulo então as minhas concepções sobre esse assunto. Naturalmente, essas concepções, retroativamente, se refletem de alguma maneira no meu modo de fazer poesia: mas penso que, em última análise, a minha experiência de leitura e de feitura de poemas é determinante em relação à teorização sobre a poesia.
Héber Sales é poeta, profissional de marketing, articulista e professor. Mantém o blog Coisas para fazer com palavras e tem textos publicados em revistas e sites como Digestivo Cultural, Portal Literal, Germina, Webinsider e Diversos Afins. E-mail: hebersales@gmail.com
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14.6.07
Inês Pedrosa: O lance do poema
Peço desculpas aos caríssimos frequentadores deste blog por não ter sido capaz, nos últimos dez dias, de fazer novas postagens ou de responder aos inúmeros comentários sobre o artigo “Poesia e filosofia”. É que, após pronunciar uma conferência em Lisboa, a convite da Fundação Gulbenkian, intitulada “Da atualidade do conceito de civilização”, fui ver amigos na França e na Bélgica, de modo que tanto me ficou escasso o tempo para escrever quanto precário o meu acesso à Internet. Espero, nos próximos dias, recuperar o tempo perdido.
Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.
Inês Pedrosa
O lance do poema
Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.
O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.
Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.
A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.
Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.
Inês Pedrosa
O lance do poema
Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.
O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.
Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.
A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.
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