Dois comentários de Aetano, um sobre o poema de Borges, e outro sobre o do Alberto Caeiro – em ambos ele se refere a Nietzsche –, provocaram-me a escrever respostas um pouco mais longas do que o normal. Achei que tanto os comentários como as respostas mereciam ser postadas aqui.
Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:
Aetano disse:
"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta
Minha resposta:
Aetano,
Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.
O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".
“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.
Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.
É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.
Antonio Cicero
Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:
Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.
Minha resposta:
Aetano,
Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:
“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.
De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.
Outro trecho:
“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”
De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.
E um trecho um pouco mais forte:
“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”
De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.
Antonio Cicero
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