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3.10.10

A vida passada a limpo



O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 2 de outubro.


A vida passada a limpo


NA VÉSPERA das eleições, é natural que praticamente não se fale senão de política: e às vezes com uma histeria tanto maior quanto menos importante é o que se diz. Para variar, voltarei a escrever sobre um dos meus assuntos favoritos e inesgotáveis: "Que é a poesia?"
Outro dia, para tentar responder a essa pergunta, vali-me de um poema de Manuel Bandeira, "O Rio". Hoje aproveito o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: "A Vida Passada a Limpo".

Passar a limpo um texto é retirar-lhe tudo o que não lhe pertence por direito, modificar o que deve ser modificado, adicionar o que falta, reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser. No caso de um poema, faz-se isso até o impossível, isto é, até que ele resplandeça. O que resplandece é o que vale por si: o que merece existir.

Para tentar chegar a esse ponto, o poeta necessita pôr em jogo, até aonde não possam mais ir, todos os recursos de que dispõe: todo seu intelecto, sua sensibilidade, sua intuição, sua razão, sua sensualidade, sua experiência, seu vocabulário, seu conhecimento, seu senso de humor etc. E entre os "cetera" encontra-se a capacidade de, a cada momento, intuir o que interessa e o que não interessa naquilo que o acaso e o inconsciente ofereçam.

Em princípio, tudo num poema é arbitrário. O poeta sabe que a poesia é compatível com uma infinidade de formas e temas. Ele tem o direito de usar qualquer das formas tradicionais do verso, o direito de modificá-las e o direito de inventar novas formas para os seus poemas. Nenhuma opção lhe é vedada a priori; em compensação, nenhuma opção lhe confere garantia alguma de que sua obra venha a ter qualquer valor.

O poema se desenvolve a partir de alguma decisão ou de algum acaso inicial. Por exemplo, ocorre ao poeta, em primeiro lugar, uma frase que ouviu no metrô; a partir dela, esboça-se uma ideia: e ele começa a fazer um poema. Ou então ocorre-lhe uma ideia e ele tenta desdobrá-la e realizá-la. A cada passo, é preciso fazer escolhas. Em algum momento -seja no início, seja no meio do trabalho- impõe-se decidir a estrutura global do poema: se será longo ou curto; se será dividido em estrofes; se seus versos serão livres ou metrificados; se serão rimados ou brancos; se o poema como um todo terá um formato tradicional, como um soneto, ou uma forma "sui generis" etc. Às vezes, uma primeira decisão parece impor todas as demais, que vêm como que natural e impensadamente; às vezes, certos momentos se dão como crises que aguardam soluções.

Cada escolha que o poeta faz limita a liberdade vertiginosa de que ele dispunha antes de começar a escrever. As restrições devidas a formas autoimpostas são importantes, porque exatamente o esforço consciente e obsessivo para tentar resolver a tensão entre elas e o impulso expressivo é um dos fatores que mais propiciam a ocorrência de intervenções felizes do acaso e do inconsciente: o que, de certo modo, dissolve a dicotomia tradicional entre a inspiração, por um lado, e a arte ou o trabalho, por outro.

Assim, numa época em que "tempo é dinheiro", a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se deleita ao flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. Ora, é por essa temporalidade concreta, que se põe no lugar da temporalidade abstrata do cotidiano, que se mede a grandeza de um poema.

Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de "expressão" ou de "comunicação") para o poeta, a poesia é o seu fim. Dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, o poeta é um servo -um servo voluntário e apaixonado, é verdade, mas um servo- da poesia. Nessa relação, não é ela que se inclina às conveniências dele, mas é ele que deve dobrar-se às exigências e aos caprichos -inclusive aos silêncios- dela.

14.6.09

O clássico e o contemporâneo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada" da Folha de São Paulo, sábado, 13 de junho:


O clássico e o contemporâneo


ATRAVÉS DE e-mails e comentários no meu blog, alguns leitores atacaram aquilo que consideraram ser o conservadorismo do artigo "O desejo do contemporâneo", publicado aqui, em 28 de maio.

Em primeiro lugar, há os que supõem conservadora a minha crítica à obsessão de grande parte dos intelectuais brasileiros pelo "dernier cri" europeu ou americano. "Mal se conhece o "dernier cri'", eu dizia, "e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde". Observei, ademais, que "quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos". Também essa implícita defesa da leitura dos clássicos foi tida por conservadora.

Ora, "um clássico é um clássico", como afirma o poeta Ezra Pound, "não porque se conforme a certas regras estruturais ou se enquadre em certas definições (das quais o seu autor provavelmente nunca ouviu falar), mas porque possui certo eterno e irreprimível frescor". É clássica a obra que permanece sempre nova.

No caso da filosofia, isso ocorre quando, independentemente de concordarmos ou não com as teses defendidas por uma obra, ela nos solicita a questionar e a pensar de modo mais claro e mais profundo aquilo que realmente pensamos. É assim que podemos, à primeira vista, não concordar em nada com "A República", de Platão, ou com "Ser e Tempo", de Heidegger, por exemplo; entretanto, a leitura de tais livros enriquece o nosso modo de pensar. Nenhuma paráfrase, explicação ou interpretação de tais obras jamais seria capaz de substituir a leitura delas. Além disso, é a partir de semelhantes leituras que sabemos o que é ou o que deve ser a filosofia.

É claro que, quando consideramos determinado problema filosófico hoje, devemos conhecer o "status quaestionis", isto é, o estado em que se encontra a discussão sobre esse problema, e isso significa que é preciso saber o que pensam sobre ele também os nossos contemporâneos. Estes, ademais, exatamente por serem nossos contemporâneos, são capazes de levar em conta certas preocupações que só se tenham manifestado ou tornado prementes exatamente na nossa época. Por isso, no meu artigo anterior não critiquei o interesse, mas a obsessão que os brasileiros demonstram ter pelos contemporâneos. E o fiz porque observo que ela chega ao ponto de ter como contrapartida o desprezo pelos clássicos.

Essa obsessão pelos contemporâneos corresponde, é claro, ao desejo de superação do provincianismo. Sentido-se "atrasados", os brasileiros se esforçam por se livrar do passado, de modo a alcançar o tempo presente, que imaginam pertencer aos outros. Em tal esforço, dado que a tradição filosófica lhes parece pertencer ao passado, os brasileiros a alienam. É assim que perdem a posse direta dos clássicos que, por direito, é tanto deles quanto de qualquer outro povo contemporâneo. Fugindo do provincianismo espacial, caem no provincianismo temporal.

Mas meu artigo foi considerado conservador também por outra razão. É que a referência que nele fiz às "bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs" foi tida como um ataque a Nietzsche. Associando esse pretenso ataque ao autor de "Genealogia da Moral" com a crítica que eu havia feito, no artigo anterior, a certas teses de Foucault, houve quem pensasse detectar uma mudança para o conservadorismo na minha orientação filosófica, sintetizada do seguinte modo: "Antes Nietzsche e Foucault; agora Hegel e Aristóteles".

Na verdade, nem antes fui discípulo dos primeiros nem sou agora dos segundos; além do que há dúvidas sobre se os segundos são mais conservadores do que os primeiros. Em Foucault, critiquei sua defesa incondicional do regime reacionário instaurado pelo aiatolá Khomeini, bem como o relativismo cultural com o qual racionalizou essa defesa.

Quanto a Nietzsche, longe de atacá-lo, cheguei a emulá-lo. No ensaio "Sobre o Uso e o Abuso da História para a Vida", ele mesmo acusa os seus contemporâneos de "adaptarem o passado às trivialidades contemporâneas". É o que penso que alguns dos meus contemporâneos fazem com o próprio Nietzsche. Este, aliás, não tinha admiração nenhuma pelos seus contemporâneos, de modo que se considerava, sobretudo, extemporâneo. "Ao procurar biografias", aconselhava ele, "não queiram as que tragam o refrão "Fulano de Tal e o seu tempo", mas as que na página de título tenham que dizer "Um lutador contra o seu tempo'".

31.5.09

O desejo do contemporâneo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 30 de maio:


O desejo do contemporâneo


O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".

Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.

Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.

Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.

Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.

Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo.

Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.

E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.