27.2.20

Mário Quintana: "Canção da janela aberta"




Canção da janela aberta


Passa nuvem, passa estrela,
Passa a lua na janela...

Sem mais cuidados na terra,
Preguei meus olhos no Céu.

E o meu quarto, pela noite
Imensa e triste, navega...

Deito-me ao fundo do barco,
Sob os silêncios do Céu.

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o teu Poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no Céu!






QUINTANA, Mário. “Canção da janela aberta”. In: MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2012.

25.2.20

Giuseppe Ungaretti: "Eterno"




Eterno

Entre uma flor colhida e outra ofertada
o inexprimível nada




Eterno

Tra um fiore colto e l’altro donato
l’inesprimibile nulla








UNGARETTI, Giuseppe. “Eterno”. In:_____. A alegria. Trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003.

23.2.20

Diego Mendes Sousa: "Tinteiros da propensão almejada"




Tinteiros da propensão almejada

Entendido
em humanidade,
bacharel em poesia,
doutor em dor
inclinado
para o amor

(em proeminência
sobre o poema)

na obediência
à Musa.






SOUSA, Diego Mendes. “Tinteiros da propensão almejada”. In:_____. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá: Penalux, 2019.


21.2.20

Olavo Bilac: "Ora (direis) ouvir estrelas!"




"Ora (direis) ouvir estrelas!"                      


“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.




BILAC, Olavo. "Ora (direis) ouvir estrelas!". In:_____. "Via Láctea". In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Panorama da poesia brasileira, vol.III: Parnasianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.

19.2.20

Anna Akhmatova: "Поет" / "Poeta": trad. por Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev




Poeta


Tal coisa um trabalho, supões tu -
Descuidadosa maneira de viver:
Ouvir algo da música às ocultas
E dá-lo brincando como seu.

Como scherzo divertido de alguém
Em quaisquer versos colocado,
Jurar que um pobre coração
Assim geme entre o brilho das searas.

E depois ouvir o bosque às ocultas,
Os pinheiros com ar de poucas falas,
Por enquanto uma cortina de fumo
Da neblina por todo o lado.

Colho de um lugar ao outro,
E até, sem sentimento de culpa,
Um pouco de vida ardilosa,
E tudo - do silêncio noturno.






Поет


Подумаешь, тоже работа, —
Беспечное это житьё:
Подслушать у музыки что-то
И выдать шутя за своё.

И, чьё-то весёлое скерцо
В какие-то строки вложив,
Поклясться, что бедное сердце
Так стонет средь блещущих нив.

А после подслушать у леса,
У сосен, молчальниц на вид,
Пока дымовая завеса
Тумана повсюду стоит.

Налево беру и направо,
И даже, без чувства вины,
Немного у жизни лукавой,
И всё — у ночной тишины.





AKHMATOVA, Anna. "Поет" / "Poeta". In:_____. Poemas. Trad. por Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev. Lisboa: Relógio D'Água, 2003.

17.2.20

Inês Pedrosa: "Escrever num tempo de barbárie"


Um amigo me enviou o link para uma entrevista em que, em determinado ponto, a grande escritora portuguesa Inês Pedrosa me elogia. Claro que fiquei orgulhosíssimo! Mas juro que não foi por causa do elogio, mas sim porque toda a entrevista é muito brilhante, que resolvi aqui colocar aqui o tal link. O entrevistador é Álvaro Alves de Faria e a entrevista foi publicada pela Revista Caliban. Eis o link:

15.2.20

Adriano Nunes: "Como se faz uma canção"



Quando Adriano Nunes me mostrou o seguinte, belo poema, que escreveu e dedicou ao grande compositor e cantor Péricles Cavalcanti, eu lhe disse que gostaria de postá-lo no blog Acontecimentos. Agradeço-lhe por me ter autorizado a fazê-lo. 


Como se faz uma canção

              para Péricles Cavalcanti

Como se faz uma canção?
Dize-me então!
Será que é com a voz do agora,
Do que em ser mais se comemora?
Será que não?

Como fazer esta canção
Ser a canção de toda hora?
Como tecê-la
Para que não mesmo pareça
Apenas bela?

Como compô-la além da estética,
Sem quaisquer regras,
Ritmos, melodias ou métricas?
Como entregar-me
Todo, espírito, osso e carne?

Vingará canção de verdade?
Como escrevê-la
Sem medo de vir a esquecê-la
Numa gaveta,
Dada ao Olvido? Quem bem sabe?

Como se faz uma canção?
Só saberão
As Musas? Os músicos não?
Como perceber que está feita,
Pronta, perfeita?

Pela letra e sentido à mão?
Como, sem trauma, pô-la à prova
Do público que tudo cobra?
Como dar mil asas a ela,
Para que seja só canção?


12.2.20

Carlos de Oliveira: "Soneto fiel"




Soneto fiel


Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.




OLIVEIRA, Carlos de. "Soneto fiel". In:_____. "Sobre o lado esquerdo". In:_____. Trabalho poético. Porto: Assírio & Alvim, 2003.

10.2.20

Flávio Castro: "JCMN"




JCMN


enquanto céu se transforma
escreve palavras nódoas
no branco árido da página
escuta a visão do vento
assoviar noutro pavimento
entreabrem-se então palavras
raras fáceis inexistentes
até que à página se enfrasem
com sua sintaxe riocorrente




CASTRO, Flávio. "JCMN". In:_____. Galeria. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

8.2.20

Ingeborg Bachmann: "Nach dieser Sintflut" / "Depois deste dilúvio": trad. por Vera Lins e Friedrich Forsch




Depois deste dilúvio


Depois deste dilúvio
queria ver a pomba,
e nada senão a pomba
salva outra vez.

Me afundaria nesse mar!
Se ela não voasse,
se não trouxesse
na última hora a folha.






Nach dieser Sintflut


Nach dieser Sintflut
möchte ich die Taube,
und nichts als die Taube,
noch einmal gerettet sehn.

Ich ginge ja unter in diesem Meer!
flög' sie nicht aus,
brächte sie nicht
in letzter Stunde das Blatt.





BACHMANN, Ingeborg. "Nach dieser Sintflut" / "Depois deste dilúvio". Trad. por Vera Lins e Friedrich Forsch. In: LINS, Vera. Ingeborg Bachmann. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013. 

5.2.20

FONTES DOS TEXTOS COMENTADOS NA PALESTRA “O QUE É A POESIA?”






ANDRADE, Carlos Drummond de. “Coração numeroso”. In:_____. “Alguma poesia”. In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “José”. In:_____. “José”. In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

BANDEIRA, Manuel. "Libertinagem". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

BRITTO, Paulo Henriques. “Horácio no Baixo”. In:_____. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

CAMÕES, Luís de. Lírica. “Tanto de meu estado me acho incerto”. In:_____.  Lírica. São Paulo: Cultrix, 1981.

CAMPOS, Augusto de. « Não”. In:_____. Não. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2009.


CAMPOS, Augusto de. » ferida ». Op.cit..

CAMPOS, Haroldo de. “horácio contra horácio”. In:_____. Crisantempo: No espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CICERO, Antonio. "A mulher dos crisântemos". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

CICERO, Antonio. “Dilema”. In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

CICERO, Antonio. “Guardar”. In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.


CORNEILLE, Pierre. „Stances à la Marquise“. In:_____. La poésie française du moyen âge à nos jours. Org. por Emmanuel de Waresquiel et Benoît Laudie. Paris: Larousse-Bordas, 1977.

COSTA, Sosígenes. “Pavão vermelho”. In:_____. Poesia completa. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2001.

FREITAS FILHO, Armando. “Caçar em vão”. In:_____. Máquina de escrever: poesia reunida e revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

GULLAR, Ferreira. “Anoitecer em outubro”. In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

HORACE. “Ode I.xi”. In:_____. Odes and epodes. Org. por Paul Shorey. New York: Sanborn, 1919.

HORACE: “Ode III.xxx”. In:_____. Odes and epodes. Org. Por Paul Shorey. New York: Sanborn, 1919.

JIMÉNEZ, Juan Ramón. “No era nadie”. In:_____. Jardines lejanos.Madrid: Taurus, 1982.

JUNQUEIRA, Ivan. "O poema". In:_____. Poesia completa. Edição por Jorge Reis-Sá. Org. por Ricardo Vieira Lima. Lisboa: Glaciar, 2019.

MELO NETO, João Cabral de. “Catar feijão”. In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

MORAES, Vinícius de.”Poética I”. In:_____. Nova antologia poética. Org. de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


MORAES, Vinícius de. “Poética II”. In:_____. Nova antologia poética.. Org. de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.



PENA FILHO, Carlos. "A vertigem lúcida". In:_____.  Livro geral. Olinda: Gráfica Vitória, 1977.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. Petrópolis: Vozes, 2015.

VARELLA, Alex. “Nosso mito”. In:_____. Céu em cima mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.


3.2.20

Antonio Cicero: "A mulher dos crisântemos"





A Mulher dos crisântemos
(sobre um quadro de Degas)

As flores transbordam do seu vaso à mesa,
um pouco à esquerda da tela cujas beiras
por pouco não ultrapassam, invadindo
a moldura. Também o seu colorido
quase abandona a paleta da pintura
(é que o jovem mestre ostenta sprezzatura),
mas apenas quase. O olhar passa por elas,
pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha,
visita, à esquerda do vaso, um jarro d´água,
nota um lenço largado sobre a toalha
bordada da mesa e ruma ao lado oposto
da tela, para uma mulher cujos olhos
ignoram-no, atraídos talvez por algo
que se acha fora não somente do quadro
em que ela se encontra, mas também daquele
em que nos perceberia, se quisesse.
Sem saber por que, o olhar não mais a quer
largar. Diga-se a verdade: essa mulher
deixa a desejar. Ela não se compara
aos crisântemos que lhe deram a fama
a que mal faz jus, já que se encontra à margem
do quadro, e nem sequer inteira, só em parte.
Se é que ela sorri, sorri com um sorriso
Em parte encoberto, duvidoso e esquivo.
Dela está bem mais presente ali a ausência
que a presença. E, dado que a ausência é proteica
e tudo nada, o olhar mal mergulha em sua
vertiginosa superfície e flutua
de volta às flores sobre o fundo castanho
do papel de parede; depois, da capo.







CICERO, Antonio. "A mulher dos crisântemos". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

1.2.20

Cesare Pavese: "La notte" / "A noite": trad. de Carlos Leite




A noite


Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

As vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada.






La notte


Ma la notte ventosa, la limpida notte
che il ricordo sfiorava soltanto, è remota,
è un ricordo. Perdura una calma stupita
fatta anch'essa di foglie e di nulla. Non resta,
di quel tempo di là dai ricordi, che un vago
ricordare.

Talvolta ritorna nel giorno
nell'immobile luce del giorno d'estate,
quel remoto stupore.

Per la vuota finestra
il bambino guardava la notte sui colli
freschi e neri, e stupiva di trovarli ammassati:
vaga e limpida immobilità. Fra le foglie
che stormivano al buio, apparivano i colli
dove tutte le cose del giorno, le coste
e le piante e le vigne, eran nitide e morte
e la vita era un'altra, di vento, di cielo,
e di foglie e di nulla.

Talvolta ritorna
nell'immobile calma del giorno il ricordo
di quel vivere assorto, nella luce stupita.






PAVESE, Cesare. "La notte" / "A noite". In: Trabalhar cansa. Trad. de Carlos Leite. Lisboa: Cotovia, 1997.