6.7.14

Ivan Junqueira: "O poema"

O seguinte -- belíssimo -- poema abrirá a coletânea "Essa música", de Ivan Junqueira, que será lançado pela Editora Rocco em outubro. 



O poema

Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.

Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.

Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.

As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,

não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.



JUNQUEIRA, Ivan. "O poema". In:_____. O Globo. Caderno "Prosa e Verso". Rio de Janeiro, 5/7/2014.


3 comentários:

Anônimo disse...

Lindo de doer. Lição de Metapoesia e muito mais.
Valeu, Cicero!
Arsenio Meira

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

belíssimo! Salve Ivan Junqueira!


Abraço forte,
Adriano Nunes

Lupo Lobato disse...

lindo maravilhoso