30.10.20

Daniel Freidenberg: "Piu avanti

 


Piu avanti



Nem Deus nem Lúcifer, o
protagonista desta história
chora e também reza, embora
disfarce muito bem.
Hoje abriu uma porta:
um dia de sol não é
o paraíso, mas
é dia e faz sol
e ele abriu uma porta.






Piu avanti


Ni Dios ni Lucifer, el
protagonista de esta historia
llora y también reza, aunque
lo disimula muy bien
Hoy ha abierto una puerta:
un día de sol no es
el paraíso, pero
es de día, y hay sol
y él ha abierto una puerta






FREIDENBERG, Daniel. "Piu avanti". In: KOVADLOFF, Santiago (org. e trad.). In:_____. A palavra nômade. Poesia argentina dos anos 70. São Paulo: Iluminuras, 1990. 


28.10.20

T.S. Eliot: "The hollow men" / "Os homens ocos": trad. por Caetano W. Galindo

 



Os homens ocos



I


Somos os homens ocos

Somos homens empalhados

Apoiados todos juntos

Com chapéus cheios de palha. Ah!

Nossas vozes secas, dado

Sussurrarmos juntos

São mudas, sem sentido,

Como vento em capim ressequido

Ou patas de ratos nos cacos de vidro

De nossa cave seca


Forma sem corpo, sombra sem cor

Paralítica força, gesto sem impulso;


Os que tenham ido

Olhando firme, ao reino outro da morte

Recordam-nos — se tanto — não como perdidos

De almas violentas, mas apenas

Como os homens ocos

Os empalhados.


 








The Hollow Men


I


We are the hollow men

We are the stuffed men

Leaning together

Headpiece filled with straw. Alas!

Our dried voices, when

We whisper together

Are quiet and meaningless

As wind in dry grass

Or rats' feet over broken glass

In our dry cellar


Shape without form, shade without colour,

Paralysed force, gesture without motion;


Those who have crossed

With direct eyes, to death's other Kingdom

Remember us -- if at all -- not as lost

Violent souls, but only

As the hollow men

The stuffed men.





ELIOT, T.S. "The hollow Men I" / "Os homens ocos I". In: _____. "The hollow men" / "Os homens ocos". In: GALINDO, Caetano W. (org. e trad.). T.S. Eliot. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


26.10.20

Antero de Quental: "Despondency"

 



Despondency



Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram

Ninho e filhos e tudo, sem piedade. . .

Que a leve o ar sem fim da soledade

Onde as asas partidas a levaram. . .


Deixá-la ir a vela, que arrojaram

Os tufões pelo mar, na escuridade,

Quando a noite surgiu da imensidade,

Quando os ventos do Sul se levantaram. . .


Deixá-la ir, a alma lastimosa,

Que perdeu fé e paz e confiança,

À morte queda, à morte silenciosa. . .


Deixá-la ir, a nota desprendida

Dum canto extremo. . . e a última esperança. . .

E a vida. . . e o amor. . . deixá-la ir, a vida!





QUENTAL, Antero de. "Despondency". In: SÉRGIO, António (org.). Antero de Quental: Sonetos. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1963.

24.10.20

Dênis Rubra: "arte do desentendimento"

 



arte do desentendimento



            não escrevo

            sobre o que detenho.


            escrevo

                     para apropriar-me

            do que há

            no mundo.


            para inventar oceanos,

            terra,

            céu,

            gente.


            para preencher-me de vazio,

            do que não é pleno,

            do espanto inquieto

            e do questionamento

            sobre tudo o que eu penso que eu sei.


ser poeta é desentender.




RUBRA, Dênis. "arte do desentendimento". In:_____. é muito cedo pra pensar. Rio de Janeiro: Rubra Editora, 2017.


22.10.20

MARCIAL: Epigrama 1. 46

 



1. 46


Se você exclama, Edilo: “Vou gozar – 

Depressa!” – o meu tição se esfria, apaga.

Prolongue o ato que eu irei mais rápido.

Pra ir depressa, diga: “Devagar”.





MARCIAL. Epigrama 1. 46. In: PIGNATARI, Décio (org. e trad.).  31 poemas do Rigveda e Safo a Apollinaire. Campinas: UNICAMP, 2007.





I. XLVI


Cum dicis 'Propero, fac si facis,' Hedyle, languet      

Protinus et cessat debilitata Venus.  

Expectare iube: velocius ibo retentus.      

Hedyle, si properas, dic mihi, ne properem.  





MARTIALIS, Marcus Valerius. Epigramma XLVI. In:_____. Epigrammata. In: PHI Workplace 10.00. Silver Mountain Software, 2004.

19.10.20

Nelson Ascher: "Tropical"

 



Tropical



a musa teima

nas entrelinhas

deste poema

como na minha


cabeça um símio 

banal se abana

inverossímil 

entre bananas





ASCHER, Nelson. "Tropical". In: HOLLANDA,  Heloísa Buarque de (org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

17.10.20

Carlos Cardoso: "Cavalos marinhos"

 



Cavalos-marinhos



Há na palma de minha mão

um cavalo-marinho.


No fundo do que sou

mergulho

em raras profundezas.


Talvez assim entenda

que viver

não é acordar após dormir

e que não há maior beleza

que a solidão

e o fechar os olhos e partir.


Vejo que são rasas as pessoas

pelas partículas que vejo.


Se assim creio, assim crio

nesse mar selvagem

e apenas sumo

entre os redemoinhos

e os cavalos-marinhos


entre ondas

que abrigam e afogam

para dentro me jogam

me deixando lá.





CARDOSO, Carlos. "Cavalos marinhos". In:_____. Melancolia. Rio de Janeiro: Record, 2019.

15.10.20

Antonio Cicero: "As Musas, a Memória e o esquecimento"

 



As Musas, a Memória e o esquecimento

  

Vivemos numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.

Acontece que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.

E como ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas, como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.

Pois bem, penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.

A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, ao princípio do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.

Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.

Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana e nos libertarmos da prisão utilitária do mundo do desempenho é quando nos deixamos levar a viajar por uma obra de arte: a viajar, por exemplo, através de um poema. Ao viajar por um poema, deixamos de lado o princípio do desempenho e apreendemos a vida em si.

As Musas eram tidas pelos gregos como filhas da deusa Memória. Normalmente, supõe-se que isso signifique que elas guardam o passado. Penso que a leitura dos poetas gregos mostra o contrário. O que o fato de que as Musas sejam filhas da Memória significa é que aquilo que elas produzem seja inesquecível: seja memorável. Assim são os grandes poemas. É isso que permite que, por exemplo, o poeta romano Horácio (que, aliás, estudou em Atenas) possa dizer, na sua Ode III.xxx, (que se encontra também em latim aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html) sobre sua poesia:

Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o Pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
 Melpómene, com o délfico louro.

 


Antonio Cicero

13.10.20

Antonio Carlos Secchin: "Disk-Morte"

 



Disk-Morte



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SECCHIN, Antonio Carlos. "Disk-Morte". In:_____. Desdizer. Rio de Janeiro: Topbooks, 2017.

11.10.20

Rogério Batalha: "Não há pontes de regresso"

 



Não há pontes de regresso



no primeiro

ciscar do dia

o galo anuncia


a inaudível

ciranda 

das coisas


à noite verde

sua morte amarela

ao jatobá verde

seu graveto seco.


o galo

anuncia


às labaredas

jovens

e velhos:


não há pontes de regresso.






BATALHA, Rogério. "Não há pontes de regresso"

9.10.20

Antonio Cicero: "Templo"

 



Templo


 

Para que as Musas residentes lá no Olimpo

façam meus poemas palavras que desejem,

eu que, à sombra de um deus muito mais triste, habito

a fralda de uma montanha muito mais verde,

 

declaro não serem os versos que escrevo obras

de arte mas bases, paredes e donaires

de templos construídos com mãos e com sobras

de paixões, mergulhos, fodas, livros, viagens

 

(precário material com o qual é elaborado

tudo o que merece aspirar a eterna glória)

e -- ainda com os seus andaimes -- os consagro

a elas, às filhas alegres da Memória,

 

deusa que não é, como querem crer os néscios,

a guardiã do passado, com o qual pouco

se importa, mas antes a que nos oferece o

esquecimento quando canta o imorredouro.






CICERO, Antonio. "Templo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record,  1996.

7.10.20

Ricardo Silvestrin: "a fera do tempo nunca se sacia"

 



a fera do tempo nunca se sacia

tudo se perde, se cria

e nada muda o seu movimento

almas, ânimos, sinas

da minha cara ao que ninguém imagina

o que sobra é esse momento

joguem-se os relógios ao vento

queimem-se os calendários

o tempo não mais se conta

a fera que ande às tontas

 




SILVESTRIN, Ricardo. "a fera do tempo nunca se sacia". In:_____. Quase eu. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

6.10.20

5.10.20

Millôr Fernandew: "Não é segredo"

 



Não é segredo.

Somos feitos de pó, vaidade

E muito medo.





FERNANDES, Millôr. "Não é segredo". In:_____. CALCANHOTTO, Adriana (org.). Haicai do Brasil. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.

3.10.20

Diogo Bernardes: "Cantiga III"

 



Cantiga III



No meu peito o meu desejo

Da razão se fez tirano,

Vejo nele certo dano,

Incerto remédio vejo.



Voltas


Para de todo perder-me 

Este mal por passar tinha, 

Ir eu contra a razão minha 

Que morre por defender-me. 

Da parte do meu desejo 

Me passo, para meu dano, 

Vejo que nisso m'engano, 

Mas nenhum remédio vejo.

Se lhe quero resistir, 

Trata-me com mais crueza, 

Ou com força ou natureza 

Sua lei me faz seguir. 

Imigo mortal o vejo 

De razão e desengano, 

Dele me vem todo o dano,

E eu por ele me rejo.




BERNARDES, Diogo. "Cantiga III". In: SILVEIRA, Francisco Maciel (org.). Poesia clássica. São Paulo: Global Editora, 1988. 

1.10.20

Antonio Cicero: "Huis clos"

 



Huis clos

 

Da vida não se sai pela porta:

só pela janela. Não se sai

bem da vida como não se sai

bem de paixões jogatinas drogas.

E é porque sabemos disso e não

por temer viver depois da morte

em plagas de Dante Goya ou Bosh

(essas, doce príncipe, cá estão)

que tão raramente nos matamos

a tempo: por não considerarmos

as saídas disponíveis dignas

de nós, que, em meio a fezes e urina

sangue e dor, nascemos para lendas

mares amores mortes serenas.





CICERO, Antonio. "Huis clos". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2012.