30.4.22

Abel Silva: "A coisa mutante"

 



A coisa mutante

 

O tempo

é coisa mutante

e o seu emissário

o Vento

lembra sempre

a todo instante

que este “sempre”

é inconstante

e o que é, já foi

ou seria

e o que vai ser

se anuncia

num passado ancestral,

que não garante alforria

do presente ou do futuro

fruto de vez ou maduro

mas ai de quem imagina

que O domina

e na ilusão,

perde o tempo da existência

por não entender a valia

do tempo

do dia a dia.





SILVA, Abel. "A coisa mutante". In_____ O caderno vermelho das manhãs. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.

26.4.22

Manuel Bandeira: "Oceano"

 



OCEANO 


Olho a praia. A treva é densa. 

Ulula o mar, que não vejo, 

Naquela voz sem consolo, 

Naquela tristeza imensa 

Que há na voz do meu desejo. 


E nesse tom sem consolo 

Ouço a voz do meu destino: 

Má sina que desconheço, 

Vem vindo desde eu menino, 

Cresce quanto em anos cresço. 


– Voz de oceano que não vejo 

Da praia do meu desejo... 






BANDEIRA, Manuel. "Oceano". In:_____."A cinza das horas". In:_____ Estrêla da vida inteira. Poesias reunidas.Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1966.

22.4.22

Diego Mendes Sousa: "Gesta da água"

 



Gesta da água


            Há sempre um copo de mar

                 para um homem navegar”

            Jorge de Lima



Nesta grandíssima manhã 

de primavera, 

as portas 

da minha casa 

estão abertas 

para a visita

fluida da beleza.

Altair é a susana da minha poesia 

e da minha vida.

A solidão habitava o feiume 

dos meus gestos e

querençoso eu esperava 

o tempo.


Hoje caminho tardo 

pelo vento oeste.


Meu coração vagueia 

no mapa das ruínas 

e infesto o campo dos 

silêncios.


Cada ruído pressentido, 

diz da alma.


Cada rastro revelado, 

diz da vidência, essa 

alegria 

a se eternizar.


Mancham os céus de um cinza cruel 

e morrem 

os oceanos 

em mim.


Eu que sempre 

fui água, 

mansidão 

de peixes 

e de siris.



Ser líquido 

na chuva, 

rio no mar naufragado.


Eu que sempre 

fui água, 

a escorrer 

pelo sangue das marés.


Ó manhã 

devastada no belo! 

Assim é a ceia farta 

dos maremotos 

escondidos!


Queda,

quebra,

estrondo


elegia da natureza 

encantada,

sou água!








SOUSA, Diego Mendes. "Gesta da água". In:_____. Rosa numinosa. Teresina: Ed. do Autor, 2022.

21.4.22

Arthur Rimbaud: "Le coeur volé" / "Coração logrado": trad. por Ivo Barroso

 




Coração logrado



Meu coração baba na popa.

Triste e cheirando a caporal:

Vêm-lhe jogar jatos de sopa.

Meu coração baba na popa:

Sob os apupos dessa tropa

Que lança risos em geral,

Meu coração baba na popa,

Triste e cheirando a caporal!


Itifálicos, soldadescos,

Foi por insultos depravado!

Fazem, chegando a tarde, afrescos

Itifálicos, soldadescos.

Fluxos abracadabrantescos,

Salvai meu coração coitado:

Itifálicos, soldadescos,

Foi por insultos depravado!


Quando mascar não possam mais,

Como agir, coração logrado?

Serão refrães de bacanais,

Quando mascar não possam mais:

Crises tereis estomacais

Se o coração for degradado:

Quando mascar não possam mais,

Como agir, coração logrado?





Le coeur volé



Mon triste coeur bave à la poupe,

Mon coeur couvert de caporal :

Ils y lancent des jets de soupe,

Mon triste coeur bave à la poupe :

Sous les quolibets de la troupe

Qui pousse un rire général,

Mon triste coeur bave à la poupe,

Mon coeur couvert de caporal !


Ithyphalliques et pioupiesques

Leurs quolibets l'ont dépravé !

Au gouvernail on voit des fresques

Ithyphalliques et pioupiesques.

Ô flots abracadabrantesques,

Prenez mon coeur, qu'il soit sauvé!

Ithyphalliques et pioupiesques

Leurs quolibets l'ont dépravé !


Quand ils auront tari leurs chiques,

Comment agir, ô coeur volé ?

Ce seront des hoquets bachiques

Quand ils auront tari leurs chiques :

J'aurai des sursauts stomachiques,

Moi, si mon coeur est ravalé :

Quand ils auront tari leurs chiques

Comment agir, ô coeur volé?








RIMBAUD, Arthur_____ "Le coeur volé" / "Coração logrado". In: Poesia completa. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

17.4.22

Dênis Rubra: "escrevo em papéis"

 



escrevo em papéis

como se pixasse

os muros dos bairros

das cidades.






RUBRA, Dênis. "escrevo em papéis". In:_____ É muito cedo pra pensar. Rio de Janeiro: Rubra Editora, 2017.

10.4.22

Ricardo Vieira Lima: "Aríete"

 



Aríete

Reverbera no escudo o brlho baço

do túrgido aríete

com que distância e tempo enfureces.

              Francisco Alvim

 


Escrevo para as paredes.

O ar puro me asfixia.

Escrevo todas as vezes

que um desejo se anuncia.


Escrevo contra as paredes

que transponho em agonia.

Escrevo sempre isolado,

sem nenhuma companhia.


Escrevo sob as paredes

que me cercam, todavia,

em casa ou no trabalho.

E sem carta de alforria,


escrevo sobre as paredes.

Escrevo à noite ou de dia.

Com a ânsia de condenado

na sua hora tardia.


Escrevo todos os meses

e não vejo outra saída.

Escrevo para as paredes:

não posso escrever pra vida.






LIMA, Ricardo Vieira. "Aríete". In:_____. Aríete -- poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Circuito, 2021.

6.4.22

Cesare Pavese: "Il Paradiso sui tetti" / "O Paraíso sobre os telhados": Carlos Leite

 



O Paraíso sobre os telhados




Será um dia tranquilo, de luz fria

como o sol que nasce ou que morre, e o vidro

fechará por fora o ar sórdido.


Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,

na tepidez do último sono: A sombra

será como a tepidez. Encherá o quarto

pela grande janela um céu mais vasto.

Da escada subida um dia para sempre

não virão mais vozes nem rostos mortos.


Não será preciso deixar a cama.

Só a aurora entrará no quarto vazio.

Bastará a janela para vestir cada coisa

de uma claridade tranquila, quase uma luz.

Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.

As recordações serão coágulos de sombra

calcados quais velhas brasas

na chaminé. A recordação será a chama

que ainda ontem picava nos olhos apagados.







Il Paradiso sui tetti



Sarà un giorno tranquillo, di luce fredda

come il sole che nasce o che muore, e il vetro

chiuderà l’aria sudicia fuori del cielo.


Ci si sveglia un mattino, una volta per sempre,

nel tepore dell’ultimo sonno: l’ombra

sarà come il tepore. Empirà la stanza

per la grande finestra un cielo più grande.

Dalla scala salita un giorno per sempre

non verranno più voci, né visi morti.


 Non sarà necessario lasciare il letto.

Solo l’alba entrerà nella stanza vuota.

Basterà la finestra a vestire ogni cosa

di un chiarore tranquillo, quasi una luce.

Poserà un’ombra scarna sul volto supino.

I ricordi saranno dei grumi d’ombra

appiattiti così come vecchia brace

nel camino. Il ricordo sarà la vampa

che ancor ieri mordeva negli occhi spenti.









PAVESE, Cesare. "Il Paradiso sui tetti"/ "O paraíso sobre os telhados". In:_____Trabalhar cansa.
Título original: Lavorare stanca. Trad. de Carlos Leite. Lisboa: Ed. Cotovia, 1997.












1.4.22

Emily Dickinson: "Best Witchcraft is Geometry" / "A Geometria é a maior Magia": trad. de Augusto de Campos

 



54


A Geometria é a maior Magia

Para a imaginação do mago —

Cujos prodígios, meros atos,

A humanidade prestigia.




54


Best Witchcraft is Geometry

To the magician’s mind—

His ordinary acts are feats

To thinking of mankind.








DICKINSON, Emily. "Best Witchcraft is Geometry" / "A Geometria é a maior Magia". In:_____.  Não sou ninguém. Poemas. Trad. por Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015.