31.12.19

Gastão Cruz: "Saio do sonho quando só da noite"




Saio do sonho quando só da noite


Saio do sonho quando só da noite
a cúpula do céu resta indecisa
cobrindo o dia como se precisa
nos espelhos da noite a noite fosse

A noite ainda guarda
o céu do dia
Na noite reflectida
é um réptil de luz a madrugada





CRUZ, Gastão. "Saio do sonho quando só da noite". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.
 

28.12.19

Daniel Faria: "Sei bem que não mereço um dia entrr no céu"




"Sei bem que não mereço um dia entrar no céu"


Sei bem que não mereço um dia entrar no céu
Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra.






FARIA, Daniel. "Sei bem que não mereço um dia entrar no céu". In:_____. Poesia. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.

26.12.19

Carlos Drummond de Andrade: "Mãos dadas"




Mãos dadas


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.



ANDRADE, Carlos  Drummond de. "Mãos dadas". In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.




24.12.19

Pedro Mexia: "Percepção"




Percepção

Entre mergulhos
uma pedra rasa salta três vezes
na água.
E assim se divide,
assim se parte
o rio. A infância
dum lado. Do outro
a terra firme
onde isto se passou.





MEXIA, Pedro. "Percepção". In:_____. Memória. Lisboa: Gótica, 2000.

21.12.19

Tavinho Paes: "Todo santo dia (ou qualquer dia)"




TODO SANTO DIA
(ou QUALQUER DIA)


não sei mesmo
o que seria
não poder
escrever
uma nova poesia
todos os dias
não sei
como me sentiria
se não pensasse em você
todo santo dia
não sei mesmo
se escrevo poemas
para pensar em você
todo dia
ou se é
por pensar em você
que escrevo poesias
todos os dias
não sei se devo saber
se, lá na essência,
todos esses poemas
são feitos só pra você
nem sei se sem você
eu os escreveria
só sei que você
é a minha poesia
os poemas são todos seus
e, intimamente, eu desejo
que, como são para você
eles possam ser meus
um dia





PAES, Tavinho. "Todo santo dia (ou qualquer dia)". In:_____. Etéreo éter. Rio de Janeiro: Paes & Filhos Edições Ltda., 2019.

19.12.19

Constantinos Caváfis: "O quanto possas": trad. de José Paulo Paes




O quanto possas


Se não podes afeiçoar tua vida como queres,
deves ao menos tentar, o quanto
possas, isto: não a rebaixes
no excessivo comércio do mundo,
no excesso de palavras e de gestos.

Não a rebaixes levando-a para dar
passeios, exibindo-a o tempo todo
nas reuniões e comemorações
em que a tolice diária se compraz,
até fazeres dela uma estranha importuna.




CAVÁFIS, Constantinos. "O quanto possas". In: PAES, José Paulo (org e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

16.12.19

Jorge Salomão: "fogo"




fogo


falo o que falo
minha voz não treme
nem tremula o ímpeto que nela há
ela é límpida
como o sol
sobre o varal de roupas penduradas
é certa, afiada
não carrega mentiras
essa é sua estrada
não camufla verdades
nem esconde emoções
é linguagem





SALOMÃO, Jorge. "fogo". In:_____. "Alguns poemas e + alguns". In:_____. 7 em 1. Rio de Janeiro: Gryphus, 2019. 

14.12.19

Philip Larkin: "This be the verse" / "Seja assim o poema": trad. de Ruy Carvalho Homem




Seja assim o poema


Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
    Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
    E mais dois ou três, por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram fodidos
    Por tolos trajando jaquetão e coco,
Que quando não estavam piegas ou hirtos
    Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a infelicidade,
    Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
    E quanto a teres filhos — isso nem pensar.





This be the verse


They fuck you up, your mum and dad. 
    They may not mean to, but they do. 
They fill you with the faults they had
    And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
    By fools in old-style hats and coats, 
Who half the time were soppy-stern
    And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.
    It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
    And don’t have any kids yourself.






LARKIN, Philip. "This be the verse" / "Seja assim o poema". In:_____. Janelas altas. Tradução de Rui Carvalho Homem. Lisboa: Cotovia, 2004.   

12.12.19

Ana Chiara: "XXII"




XXII


Mundos esferas
Sangue passando por veias
Diluição da vida cotidiana
Nada impede o sortilégio
Trens noturnos, estação sob forte neblina
Impossível dizer se embarco
Tudo dependerá de minha fecunda imaginação
E do gosto exagerado pelo real mais erradio.
Improviso com a metade do que me foi dado ler
Assim um drama
Palavras olham para fora
Limite possível e improvável da significação
Andarilhas perdidas no caminho do sagrado
Bolhas ardentes nas solas dos pés.





CHIARA, Ana. "XXII". In:_____. Poema da travessia. Rio de Janeiro: TextoTerritório, 2019.

10.12.19

Bertolt Brecht: "Die Vergessenen" / "Os deslembrados": trad. por André Vallias




Os deslembrados


Eles vivem e morrem por aí –
Numa estrangeira viela
A vida com violência os atropela
E se põe a fugir.
Viveram e morreram e lutaram duro
E criaram suas crianças
E aí na mais distante deslembrança
Terminam seu percurso.




Die Vergessenen


Sie leben und sterben irgendwo
An einem fremden Steg
Das Leben geht vorüber roh
Und über sie hinweg.
Sie lebten und starben und rangen schwer
Und zogen Kinder auf
Und dann in ferner Vergessenheit hehr
Sie enden ihren Lauf.





BRECHT, Bertolt. "Die Vergessenen" / "Os deslembrados". In:_____. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.

9.12.19

Bertolt Brecht: POESIA: Introdução e tradução de André Vallias


É hoje, na Livraria da Travessa de Botafogo, o lançamento das excelentes traduções que o poeta André Vallias fez dos maravilhosos poemas de Bertolt Brecht:




8.12.19

Jorge Luis Borges: "Spinoza": trad. de Augusto de Campos




Spinoza


As translúcidas mãos desse judeu
Em meio à sombra lavram os cristais.
É medo e frio a tarde que morreu
(E às tardes as tardes são iguais.)

Tanto as mãos como o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase inexistem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.

Nem o perturba a gloria, esse reflexo
Dos reflexos do sonho de outro espelho,
Nem o amor temeroso das donzelas.

Liberto da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa do Ser que é todas as estrelas.





Spinoza


Las traslúcidas manos del judío
Labran en la penumbra los cristales
Y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)

Las manos y el espacio de jacinto
Que palidece en el confín del Ghetto
Casi no existen para el hombre quieto
Que está soñando un claro laberinto.

No lo turba la fama, ese reflejo
De sueños en el sueño de otro espejo,
Ni el temeroso amor de las doncellas.

Libre de la metáfora y del mito
Labra un arduo cristal: el infinito
Mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.






BORGES, Jorge Luis. "Spinoza". In:_____. Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.

6.12.19

Antonio Cicero: "Elo"





Elo

Dizem ser Marcelo mar e céu
Dizem ser vão ser e ser poeta
Só sei que desde que me aconteceu
Esse horizonte azul assim sem reta
Quero ser não o poeta
Ser o verso de Marcelo
Ser a rima de Marcelo
Ser esse elo
Entre ar mar céu nome ser não ser Marcelo








CICERO, Antonio. "Elo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

4.12.19

Friedrich Hölderlin: "Die Liebenden" / "Os amantes": trad. de Paulo Quintela




Os amantes



     Queríamos separar-nos, tínhamos isso por bom e sensato;

          Quando o fizemos, por que nos assustou, como homicídio,
                                                                                          [a ação?

               Ai! Pouco nos conhecemos,

                    Pois em nós reina um Deus.








Die Liebenden



     Trennen wollten wir uns, wähnten es gut und klug;

          Da wir's taten, warum schröckt' uns wie Mord die Tat?

               Ach! Wir kennen uns wenig,

                    Denn es waltet ein Gott in uns.







HÖLDERLIN, Friedrich. "Die Liebenden" / "Os amantes". In:_____. Poemas. Org. e trad. de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1959.

1.12.19

Carlos Drummond de Andrade: "Liberdade"




Liberdade


O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.
Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.





ANDRADE, Carlos Drummond de. "Liberdade". In:_____. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996.

29.11.19

José Almino: "O descampado do ócio"




O descampado do ócio


o acanhado das ruas
e das alpercatas

a calha e o lodo
e o assento seboso

o chão de fuligem
e o árido cerrado

a nudez do quintal
 e o musgo e a cisterna

o sol e o sol
e o sol e o mormaço

o tédio feroz
e a dor do inútil

a vida prescrita
e a vida acabada





ALMINO, José. "O descampado do ócio". In:_____. Encouraçado e cosido dentro da pele. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.

27.11.19

Castro Alves: "Os três amores"




Os três amores


I
Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes...
—Tu és Eleonora...

II
Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... Teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem...seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
—E tu és Julieta...

III
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és Júlia, a Espanhola!...





ALVES, Castro. "Os três amores". In:_____. Espumas flutuantes. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.

23.11.19

Ferreira Gullar: "Flagrante"




Flagrante


o meu gato
na cadeira
se coça

corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela
estou eterno





GULLAR, Ferreira. "Flagrante". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

20.11.19

Margarida Patriota: "Luto"





Luto
Em horas pluviosas
Langorosas, baudelairianas 
Recolho-me dócil
Ao boudoir do meu spleen
Beijo a esfinge no console
Bocejo solilóquios no divã
No leque de pavão afago plumas
Aspiro com volúpia buquês murchos
Ao tilintar da sineta
Chávenas de porcelana flutuam
São os meus mortos
A tomar chá comigo






PATRIOTA, Margarida. "Luto". In:_____. Tempo de delação. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2019.

18.11.19

Antonio Cicero: "Amazônia"





Amazônia

Não queira, Silviano, que eu cante a selva
amazônica ou mesmo o rio Amazonas,
cujo silêncio a fluir às minhas costas
no entanto escuto às vezes, imerso em trevas.
Em minhas veias, é certo, corre o sangue
selvagem das amazonas e os meus traços
caboclos traem os maranhões; mas trago,
como herança dos ancestrais, não saudade
da floresta, mas da cidade almejada.
A Amazônia quer versos heroicos e épicos,
não os meus líricos, eróticos, céticos
e tão frívolos que nem sequer reparam
se pararam nas palavras ou nas coisas
e não raro tomam aquelas por estas
e a árvore pelas florestas e aquela
pela palavra e por fim ficam nas moitas.
É verdade que me fascinam os rios
paradoxais e a figura de Orellana,
expulso por amazonas emboscadas
muito tempo entre as florestas e os símbolos,
a cultuar Ares, o terrível deus
da guerra: terrível sim, porém não tanto
quanto Afrodite, que uma vez quis prová-lo
no leito e o domou e o dobrou e o comeu;
nem tão tremendo quanto Hefesto, o marido
da deusa, deus das técnicas e do fogo,
que, nem belo nem rápido, sendo coxo,
agarrou o adúltero Ares, o arisco,
e a dourada Afrodite na própria cama,
sobre a qual trançara inquebrantáveis fios
aracnídeos, deixando os amantes fixos
nessa fração de segundo que sonhavam
perpetuar; e que ao ser perpetuada,
virou tortura: pois como ser repouso
o gozo, movimento vertiginoso,
cheio de fervor e suor, rumo ao nada?
Convidado por Hefesto, todo o Olimpo
assistiu ao espetáculo do enlace
de Ares e Afrodite e ecoou toda a tarde
a gargalhada dos deuses. A pedido
do deus do mar, porém, Hefesto os soltou.
Ares, humilhado, fugiu para a frígida
Trácia, e ela, com um sorriso, para a ilha
de Chipre, cercada de um mar furta-cor,
onde as graças lhe prepararam um banho
perfumado, esfregaram à sua pele
o óleo ambrosíaco com que a tez dos deuses
esplende, vestiram-lhe um robe... e reparo:
terríveis são, mais do que os deuses, Demódoco
a flagrar a cena inteira com seu estro,
e Homero, a nos prender em teias de versos
entre a Feácia e o Olimpo. Recordo-os
e esqueço a que ponto me perdi da selva
dos meus ancestrais. Que não me guardem mágoa
nossas amazonas. Filho da diáspora
e dos encontros fortuitos, o poema
me esclarece: toda origem é forjada
no caminho cujo destino é o meio.
Feito o Amazonas, surjo do deserto,
mas dos afluentes eu escolho as águas.








CICERO, Antonio. "Amazônia". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

16.11.19

Jacques Prévert: "Le grand homme" / "O grande homem": trad. de Silviano Santiago




O grande homem


No ateliê do talhador de pedra

onde o encontrei

lhe tiravam medidas

para a posteridade.






Le grand homme


Chez un tailleur de pierre

où je l’ai rencontré

il faisait prendre ses mesures

pour la postérité






PRÉVERT, Jacques. "Le grand homme" / "O grande homem". In:_____. Poemas. Trad. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

14.11.19

Lêdo Ivo: "O espinho"




O espinho


Caluniado espinho na haste da rosa,
a ninguém ferirás nesta manhã
em que a rosa vermelha, a rosa airosa
oferta a sua vida à vida vã.

Neste dia de sol tudo é passagem.
E mesmo a eternidade é um caminho,
coito de luz e sombra, na viagem
entre o dia e a noite, a rosa e o espinho.




IVO, Lêdo. "O espinho". In:_____. "Plenilùnio". In:_____. Poesia completa: 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

12.11.19

Paulo Henriques Britto: "Spleen 2 ½"




Spleen 2 ½


Não se fazem mais lembranças
como as de antigamente.
Agora a memória apenas
acumula indiferente

o que logrou atrair
a atenção por um instante
e amarra tudo com o mesmo
indefectível barbante

e o joga numa gaveta
cronicamente emperrada,
a qual só será aberta
na hora errada.






BRITTO,  Paulo  Henriques. "Spleen 2 ½". In:_____. Nenhum mistério. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

10.11.19

Sandra Niskier Flanzer: "Por si"





Por si


Quem quiser passar pela vida,
que aprenda com o sol:
ele é fogo: por força de si, se impõe.
Mas nasce e morre todos os dias,
ilumina o que vinga e depois esquece
e, a um só tempo, sabe sumir e se pôr.







FLANZER, Sandra Niskier. "Por si". In:_____. O quinto (dos infernos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019. 

7.11.19

Diego Mendes Sousa: "Procurador de enigmas"




Procurador de enigmas

Parei o tempo.
Ele não parou por mim!
[tão de repente tão leve sono no imponderável (?)]
Nem poderia paralisar-se,
porque fiquei no tempo
como carrossel ilhado
[querendo não passar
querendo não acabar
no enigma do sonho inviolável (?)]

O tempo não parou para mim!
Ele não aparou os seus fantasmas
na vivenda dos mistérios
sempre em oferenda.

Procurador do seu destino miserável,
o tempo enterrou-se em mim.




SOUSA, Diego Mendes. "Procurador de enigmas". In:_____. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá, SP Penalux, 2019.

5.11.19

Jorge de Sousa Braga: "Dióspiros"




Dióspiros


Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder




BRAGA, Jorge de Sousa. "Dióspiros". In:_____. "O segredo da púrpura". In:_____. O poeta nu. Porto: Assírio & Alvim, 2007. 

3.11.19

Paul Verlaine: "Colloque sentimental" / "Colóquio sentimental": trad. Guilherme de Almeida




Colóquio sentimental


No velho parque frio e abandonado
Duas formas passaram lado a lado.

Olhos sem vida já, lábios tremendo,
Apenas se ouve o que elas vão dizendo.

No velho parque frio e abandonado,
Dois vultos evocaram o passado.

– Lembras-te bem do nosso amor de outrora?
– Por que é que hei de lembrar-me disso agora?

– Bate sempre por mim teu coração?
Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.


– Ah! aqueles dias de êxtase indizível
Em que as bocas se uniam! – É possível.

– Como era azul o céu, e grande, o sonho!
– Esse sonho sumiu no céu tristonho.

Assim por entre as moitas eles iam,
E só a noite escutou o que diziam.





Colloque sentimental


Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux formes ont tout à l'heure passé.

Leurs yeux sont morts et leurs lèvres sont molles,
Et l'on entend à peine leurs paroles.

Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux spectres ont évoqué le passé.

- Te souvient-il de notre extase ancienne?
- Pourquoi voulez-vous donc qu'il m'en souvienne?

- Ton coeur bat-il toujours à mon seul nom?
Toujours vois-tu mon âme en rêve? - Non.

Ah ! les beaux jours de bonheur indicible
Où nous joignions nos bouches ! - C'est possible.

- Qu'il était bleu, le ciel, et grand, l'espoir !
- L'espoir a fui, vaincu, vers le ciel noir.

Tels ils marchaient dans les avoines folles,
Et la nuit seule entendit leurs paroles.




VERLAINE, Paul. "Colloque sentimental" / "Colóquio sentimental". In: ALMEIDA, Guilherme de (org e trad.). Poetas de França. São Paulo: Babel, s.d.




1.11.19

Ricardo Silvestrin: "O último poema"




O último poema


Meu último poema talvez seja este.
Como saber quanto tempo ainda tenho,
se não há relógio, calendário, mapa
que digam o dia, o local, a hora exata
da morte que desde sempre me aguarda?

Me espreita na esquina, de tocaia,
trama uma hora branda, com cabelo branco,
pele enrugada e um ar de dever cumprido?

Já que esse é o enigma que jaz oculto,
escrevo cada poema como se fosse o último.





SILVESTRIN, Ricardo. "O último poema". In:_____. Sobre o que. São Paulo: Patuá, 2019. 

29.10.19

Lançamento de "Melancolia", de Carlos Cardoso


Hoje é o lançamento em São Paulo do belo livro de poemas de Carlos Cardoso, Melancolia. Às 19h, Carlos Cardoso, Antonio Carlos Secchin e eu apresentaremos Melancolia, na Livraria da Vila.



27.10.19

Fernando Pessoa: "Ulisses"




Ulisses


O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.




PESSOA, Fernando. "Ulisses". In:_____. Mensagem. Lisboa: Ática, 1972.

25.10.19

Cecília Meireles: "Canção"




Canção

Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
– e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo de se acabar.

Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.
 
Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa,
Chorar sem protesto.  Chorar.





MEIRELES, Cecília. "Canção". In:_____.  Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

21.10.19

Johann Wolfgang von Goethe: "Wonne der Wehmut" / "Deleite na tristeza": trad. por Paulo Quintela




Deleite na tristeza

Não sequeis, não sequeis,
Lágrimas do eterno amor!
Ai! Já aos olhos meio enxutos
Como o mundo parece ermo e morto!
Não sequeis, não sequeis,
Lágrimas do infeliz amor!





Wonne der Wehmut

Trocknet nicht, trocknet nicht,
Tränen der ewigen Liebe!
Ach! nur dem halbgetrockneten Auge
Wie öde, wie todt die Welt ihm erscheint!
Trocknet nicht, trocknet nicht,
Thränen unglücklicher Liebe!





GOETHE, Johan Wolfgang von. "Wonne der Wehmut" / "Deleite na tristeza". In:_____. Poemas. Organização e tradução por Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.




20.10.19

Aniversário do Professor Emmanuel Carneiro Leão

No final da década de 1960, tive o privilégio ser aluno do Professor Emmanuel Carneiro Leão, no Instituto de Filosofia da UFRJ. Ele foi importantíssimo para minha formação filosófica, e fico feliz com a celebração dos seus 90 anos!



19.10.19

Antonio Cicero: "A morte de Arquimedes de Siracusa"





A morte de Arquimedes de Siracusa

Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!





CICERO, Antonio. "A morte de Arquimedes de Siracusa". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.  

17.10.19

Carlos Drummond de Andrade: "Sentimento do mundo"




Sentimento do mundo


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.





ANDRADE, Carlos Drummond de. "Sentimento do mundo". In:_____. "Sentimento do mundo". In:_____. Poesia 1930-62. São Paulo: Cosac Naify, 2012

16.10.19

Milton Nascimento recebe o Prêmio UBC 2019

Ontem, Milton Nascimento recebeu o Prêmio UBC 2019. Coube a mim o privilégio de pessoalmente entregar o Prêmio a ele. Na foto, encontram-se, à esquerda de Milton, a quem eu estou entregando o Prêmio, Ronaldo Bastos e Aloysio Reis.



14.10.19

Francisco Alvim: "Nada, mas nada mesmo"




Nada, mas nada mesmo


tem a menor importância

Nem antes
Nem depois
Nem durante





ALVIM, Francisco. "Nada, mas nada mesmo". In:_____. O metro nenhum. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

12.10.19

Wisława Szymborska: "Visto do alto": trad. de Regina Przybycien




Visto do alto


Um besouro morto num caminho campestre.
Três pares de perninhas dobradas sobre o ventre.
Ao invés da desordem da morte – ordem e limpeza.
O horror da cena é moderado,
o âmbito estritamente  local, da tiririca à mente.
A tristeza não se transmite.
O céu está azul.

Para nosso sossego, os animais não falecem,
morrem de uma morte por assim dizer mais rasa,
perdendo – queremos crer – menos sentimento e mundo,
partindo - assim nos parece - de uma cena menos trágica.
Suas alminhas dóceis não nos assombram à noite,
mantêm distância,
conhecem as boas maneiras.

E assim esse besouro morto no caminho,
não pranteado, brilha ao sol.
Basta pensar nele a duração de um olhar:
parece que nada de importante lhe aconteceu.
O importante supostamente tem a ver conosco.
Com a nossa vida somente, só com a nossa morte,
uma morte que goza de forçada precedência.






SZYMBORSKA, Wisława. "Visto do alto". In:_____. Um amor feliz. Seleção e tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

7.10.19

Fernando Pessoa: "Mar Português"




Mar Português


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.





PESSOA, Fernando. "Mar Português" In:_____. Mensagem. Org. de Cleonice Berardinelli, Maurício Matos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

4.10.19

Manuel Bandeira: "Andorinha




Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
– “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...





BANDEIRA, Manuel. "Andorinha". In:_____. "Libertinagem". In:_____. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966.

2.10.19

Vielimir Klébnikov: "Uma vez mais, uma vez mais": trad. de Augusto de Campos




Uma vez mais, uma vez mais
Sou para você
Uma estrela. Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.




KLÉBNIKOV, Vielimir. "Uma vez mais, uma vez mais". Trad. de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (organizadores e tradutores). Poesia russa moderna. São Paulo: Perspectiva, 2012.

29.9.19

Christovam de Chevalier: "Horizonte"




Horizonte


Eu vi o mar calar
quando tudo berrava ao redor.

Eu vi o mar serenar
tudo o que em mim era dor.

Eu vi o mar
com olhos baços de amor.





CHEVALIER, Christovam de. "Horizonte". In:_____. Marulhos, outros barulhos a alguns silêncios. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

27.9.19

Encontro com Dominique Boyer e David Jobert


O encontro com Dominique Boyer e David Jobert, terá lugar na próxima segunda-feira, às 19h30, na Aliança Francesa de Botafogo, que fica à rua Muniz Barreto 730.



24.9.19

Luis Miguel Nava: "O azul do mar"




O azul do mar

O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.




NAVA, Luís Miguel. "O azul do mar". In:_____. "O céu sob as entranhas". In:_____. Poesia completa. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

22.9.19

Adonis: "Árvore do dia e da noite": trad. por Michel Sleiman





Árvore do dia e da noite

Antes que o dia venha chego
antes que se pergunte pelo sol ilumino
árvores vêm correndo atrás de mim
andam à minha sombra cálices de flor
e o delírio em meu rosto ergue
ilhas e penhascos de silêncio cujas portas a palavra desconhece
se ilumina a noite amiga e se esquecem
no meu leito os dias,

depois, quando as fontes rolarem no meu peito
desabotoarem as vestes e dormirem
acordarei a água e os espelhos, e reluzirei
como eles, a lâmina das visões

então eu durmo.





ADONIS. "Árvore do dia e da noite". In:_____. Adonis [poemas]. Org. e trad. por Michel Sleiman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

20.9.19

Arthur Nogueira canta "Consegui"



Arthur Nogueira canta, em show, a canção "Consegui", parceria dele comigo.
                                                                                               Antonio Cicero


17.9.19

Carlos Cardoso: "O passado"




O passado

Passadas as horas ficou o passado
e o vago que é a lagoa Rodrigo de Freitas
e seus peixes mortos a boiarem.

É nele que me fixo.

O passado é fonte de riqueza
é nele que busco o saber
é nele que encontro o que busco,

o passado é mais hoje que o presente
que quando ausente
é no passado que eu volto.

O futuro que vejo é refém do passado que eu sei,

como uma couve que brota do seu broto
como uma árvore que um dia foi semente,

o passado é melancolia,
e de repente

isso é tudo o que eu queria.





CARDOSO, Carlos."O passado". In:_____. Melancolia. Rio de Janeiro: Record, 2019.

15.9.19

Antero de Quental: "Sepultura romântica"




Sepultura romântica

Ali, onde o mar quebra, num cachão
Rugidor e monótono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se há-de enterrar meu coração.

Queimem-no os sóis da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos;
Depois, no Inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o árido chão…

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpável pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar…

Com suas lutas, seu cans ado anseio,
Seu louco amor, dissolva-se no seio
Desse infecundo desse amargo mar!”






QUENTAL, Antero de. "Sepultura romântica". In: GULLAR, Ferreira (org. e trad.). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.


12.9.19

Georg Trakl: "Die Sonne" / "O sol": trad. de João Barrento




O sol

Diariamente, o sol amarelo vem por cima do monte.
Bela é a floresta, o animal sombrio,
O homem: caçador ou pastor.

Fulvo, emerge o peixe no lago verde.
Sob  a curva do céu
Desliza levemente o pescador no barco azul.

Lentamente, amadurece a uva, o trigo.
Quando, no silêncio, declina o dia,
Obras boas e más estão preparadas.

Quando chega a noite
O viajante ergue levemente as pesadas pálpebras;
De sombrio abismo jorra sol.





Die Sonne

Täglich kommt die gelbe Sonne über den Hügel.
Schön ist der Wald, das dunkle Tier,
Der Mensch; Jäger oder Hirt.

Rötlich steigt im grünen Weiher der Fisch.
Unter dem runden Himmel
Fährt der Fischer leise im blauen Kahn.

Langsam reift die Traube, das Korn.
Wenn sich stille der Tag neigt,
Ist ein Gutes und Böses bereitet.

Wenn es Nacht wird,
Hebt der Wanderer leise die schweren Lider;
Sonne aus finsterer Schlucht bricht.






TRAKL, Georg. "Die Sonne" / "O sol". In: BARRENTO, João (seleção e tradução). A alma e o caos: 100 poemas expressionistas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2001.


9.9.19

Diego Mendes Sousa: "Ser do mar"




Ser dor mar

Cosmonave de um coração costeiro
que navega na preamar da dor
na maré do amor
no mar do ser
meu alterego
a dor-mar
a domar
os sargaços
de um sal salgado
de um sol solstício
de uma lua lunática
que passa na alma
de enseada

Meu coração aberto
nas praias do sonho
litoral de aberturas
ao mundo





SOUSA, Diego Mendes. "Ser dor mar". In:_____. "Opus II: Coração Costeiro". In:_____.  Velas náufragas. Guaratinguetá, SP.: Penalux, 2019.

7.9.19

Jacques Prévert: "Le discours sur la paix" / "Discurso sobre a paz": trad. de Silviano Santiago




Discurso sobre a paz

Já no final de um discurso extremamente importante
o grande homem de Estado engasgando
com uma bela frase oca
escorrega
e desamparado com a boca escancarada
sem fôlego
mostra os dentes
e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
deixa exposto o nervo da guerra:
a delicada questão do dinheiro.






Le discours sur la paix

Vers la fin d'un discours extrêmement important
le grand homme d'Etat trébuchant
sur une belle phrase creuse
tombe dedans
et désemparé la bouche grande ouverte
haletant
montre les dents
et la carie dentaire de ses pacifiques raisonnements
met à vif le nerf de la guerre
la délicate question d'argent.




PRÉVERT, Jacques. "Le discours sur la paix" / "Discurso sobre a paz". In:_____. Poemas. Seleção e tradução por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

5.9.19

Adriano Nunes: "Melhor um poema"

Agradeço a Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte, belo poema:



Melhor um poema

                         para Antonio Cicero


Melhor um poema
Do que prisões, penas,
Pedras e problemas.
Melhor um poema

Do que algum dilema,
Propósito. Apenas
Em ser sol se antena.
Melhor um poema!

Que a querela extrema
Política, em cena,
Que se concatena,
Melhor um poema!

Do que algoz algema,
Do que vãs sistemas,
Do que a práxis plena...
Melhor? Um poema!

Eis que nos acena
O poema: gema
Raríssima! Apenas
Em ser é, se esquema.






3.9.19

Giuseppe Ungaretti: "Se tu mio fratello" / "Se tu, meu irmão": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti




Se tu, meu irmão


Se, vivo, regressasses ao meu encontro,
Com a mão estendida,
Poderia ainda,
No elã de esquecer, apertá-la,
Irmão.

Mas de ti, de ti já nada me envolve
Senão sonhos, vislumbres,
O fogo sem foco do passado.

A memória não me traz senão imagens
E para mim mesmo, eu mesmo
Já não sou mais
Que o vazio nada de meu pensamento.






Se tu mio fratello


Se tu mi rivenissi incontro vivo,
Con la mano tesa,
Ancora potrei,
Di nuovo in uno slancio d'oblio, stringere,
Fratello, una mano.

Ma di te, di te più non mi circondano
Che sogni, barlumi,
I fuochi senza fuoco del passato.

La memoria non svolge che le immagini
E a me stesso, io stesso
Non sono già più
Che l'annientante nulla del pensiero.






UNGARETTI, Giuseppe. "Se tu mio fratello" / "Se tu, meu irmão". In:_____. Poemas. Seleção e traduções por Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: Edusp, 2017. 


1.9.19

Antonio Carlos Secchin: "Soneto veloz"




Soneto veloz

O poema sai correndo à minha frente,
desse jeito jamais vou segurá-lo.
Fingia estar aqui, mas de repente
se intrometeu no trote de um cavalo.

Na estrofe dois passou em disparada.
No espaço esvaziado eu arremeto
inútil rede, a recolher o nada:
o poema escapuliu deste quarteto.

Consigo enfim laçá-lo, ele se faz
inteiro e hostil, à minha revelia.
E se revela, súbito, capaz

de me livrar do laço que o prendia.
Livres nós dois, agora ele já fala
na voz que nasce quando o autor se cala.





SECCHIN, Antonio Carlos. "Soneto veloz". In:_____. Desdizer e antes. Rio de Janeiro: Topbooks, 2017.

30.8.19

André Frenaud: "Parade" / "Parada": trad. de Mário Laranjeira




Parada

Ele achou sua fonte,
Ele pôs pão na sopa,
Ele dormiu à mesa,
Ele saciou-se em sonho,
Ele botou um ovo,
Ele se aviva em cisma,
Ele se ativa em força,
Ele se acopla à lira,
Ele se cumpre em voto
Do sopro do Espírito.

Esse homem é um poeta.





Parade

Il a trouvé sa source,
Il a trempé sa soupe,
Il s’assoupit à table,
Il s’assouvit en rêve,
Il s’accroupit pour pondre,
Il s’avive à songer,
Il s’active à pousser,
Il s’accouple à la lyre,
Il s’accomplit par vœu
Du souffle de l’Esprit.

Cet homme est un poète.




FRÉNAUD, André. “Parade” / “Parada”. In: LARANJEIRA, Mário (org. e trad.). Poetas de França hoje: 1945-1995. Rio de Janeiro: São Paulo: Edusp, 1996. 

26.8.19

Al Berto: "Os amigos"




Os amigos

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência




AL BERTO. "Os amigos". In:REIS-SÁ, Jorge e LAGE, Rui. Antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Porto: Porto Editora, 2009.

21.8.19

Waly Salomão: "Cobra-coral"




Cobra-coral

Para de ondular, agora, cobra-coral:
a fim de que eu copie as cores com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
a fim de que tua beleza
                    teu langor
                    tua elegância
                              reinem sobre as cobras não corais





SALOMÃO, Waly. "Cobra-coral". In:_____. "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

18.8.19

Antonio Cicero: Sobre "A poesia e a crítica"

Falo um pouco de poesia e da ABL na seguinte entrevista que dei para o Canal Curta, por ocasião do lançamento do meu livro A poesia e a crítica, em 2017:


15.8.19

Carlos Pena Filho: "Chope"




Chope


Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.




PENA FILHO,  Carlos. "Chope". In:_____. Livro geral. Olinda: Secretaria de Patrimônio e Cultura da Prefeitura de Olinda, s.d.

12.8.19

Luis Turiba: "Desacontessências"




Desacontessências

desaconteci
(mentavelmente)
tudo acontece para
desacontecer em si

anoitece para amanhecer
nascer viver crescer morrer
tecer escrituras em silêncios
semânticas em pura seda

desconstruir óbvios
reconstruir amálgamas
experimentos ordinários
holografias d’almas




TURIBA, Luis. "Desacontessências". In:_____. Desacontecimentos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.

10.8.19

Antonio Cicero: "O fim da vida"



O fim da vida

Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.





CICERO, Antonio. "O fim da vida". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

5.8.19

Mário Faustino: "Ego de mona kateudo"




Ego de mona kateudo

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.





FAUSTINO, Mário. "Ego de mona kateudo". In:_____. Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.




Observo que o título desse poema é a transcrição para caracteres latinos do último verso do fragmento 168b de um poema de Safo. "Ego de mona kateudo" significa "E eu durmo sozinha". O poema de Safo e sua tradução podem ser lidos neste blog desde 2008, aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2008/02/safo-fr-168b.html

2.8.19

J.W. Goethe: "An die Günstigen" / "Aos leitores amigos": trad. de Paulo Quintela




Aos leitores amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há-de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sub rosa
No calmo bosque das Musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo – aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.




An die Günstigen

Dichter lieben nicht zu schweigen,
Wollen sich der Menge zeigen.
Lob und Tadel muß ja sein!
Niemand beichtet gern in Prosa;
Doch vertraun wir oft sub rosa
In der Musen stillem Hain.

Was ich irrte, was ich strebte,
Was ich litt und was ich lebte,
Sind hier Blumen nur im Strauß;
Und das Alter wie die Jugend,
Und der Fehler wie die Tugend
Nimmt sich gut in Liedern aus.





GOETHE, Johann Wolfgang von. "An die Günstigen" / "Aos leitores amigos". In: Poemas. Antologia bilingue. Versão portuguesa de Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.

29.7.19

Dorothy Parker: "Résumé" / "Em suma": trad. de Nelson Ascher






Em suma

Navalhas doem,
ácido mancha,
o rio molha,
drogas dão cãibra;
arma é ilegal,
laço desfaz-se,
gás cheira mal.
Viva: é mais fácil.





Résumé

Razors pain you –
Rivers are damp:
Acids stain you;
And drugs cause cramp.
Guns aren’t lawful;
Nooses give;
Gas smells awful;
You might as well live.





PARKER, Dorothy. "Resumé" / "Em suma". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Trad. de Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

24.7.19

Alex Varella: "Pedro do Rio"





PEDRO DO RIO
                À Memória De Lygia Pape


Pedro cuidava
Do rio e do passarinho
À beira da estrada
União E Indústria
Pedro era o rio
Pedro do Rio





VARELLA, Alex. "Pedro do Rio". In:_____. Em Ítaca. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1985. 

19.7.19

Manuel Bandeira: "Céu"




Céu

A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha.
Quer tocar o céu.

Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.





BANDEIRA, Manuel. "Céu". In:_____. "Belo belo". In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

17.7.19

Augusto Frederico Schmidt: "Paz dos túmulos"




Paz dos túmulos

Ó paz dos túmulos
Ó frio das tardes invernais nos cemitérios
Ó mármores gelados, rosas frias, Cristos de gêlo, como vos espero!
Quando serei silêncio e frio apenas?
Quando serei apenas o íntimo da terra?
Quando, enfim, dormirei na paz – na álgida paz?
Ó vento que matais as rosas, vento frio!
Quando me levareis mudando em poeira?
Quando me levareis pelas ruas
Quando me levareis em mim mesmo mudando
Para o grande mar, o grande mar, o grande mar...





SCHMIDT, Augusto Frederico. "Paz dos túmulos". In: BANDEIRA, Manuel (org.). Apresentação da poesia brasileira: seguida de uma antologia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

15.7.19

Guillermo Boido: "Déjà vu": trad. de Santiago Kovadloff




Déjà vu

eu vi essa província onde
a sombra de meu corpo fala
do meu corpo como de uma sombra






Déjà vu

he visto esa provincia donde
la sombra de mi cuerpo habla
de mi cuerpo como de una sombra






BOIDO, Guillermo. "Déjà vu". In: KOVADLOFF, Santiago. A palavra nômade: Poesia argentina dos anos 70. São Paulo: Iluminuras, 1990. 

13.7.19

Gastão Cruz: "Corda"




Corda

Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento

de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele





CRUZ, Gastão. "Corda". In:_____. Óxido. Porto: Assírio & Alvim, 2015.