O seguinte -- belíssimo -- poema abrirá a coletânea "Essa música", de Ivan Junqueira, que será lançado pela Editora Rocco em outubro.
O poema
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
JUNQUEIRA, Ivan. "O poema". In:_____. O Globo. Caderno "Prosa e Verso". Rio de Janeiro, 5/7/2014.
6.7.14
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Lindo de doer. Lição de Metapoesia e muito mais.
Valeu, Cicero!
Arsenio Meira
Cicero,
belíssimo! Salve Ivan Junqueira!
Abraço forte,
Adriano Nunes
lindo maravilhoso
Postar um comentário